[Maynard Owen Williams Self-Portrait
National Geographic Image Collection]
Quando menos é mais
Resenha de: Jon Elster, Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Editora Unesp, 2009.
Adriano Codato
Filósofo social teoriza sobre a imposição racional de restrições ao comportamento de indivíduos e sociedades
Numa entrevista recente, Jon Elster resumiu assim sua teoria social: “eu encontrei minhas hipóteses nas obras dos filósofos moralistas franceses do século XVII e procurei verificá-las na psicologia e na economia do século XX”.
Essa legenda tem justificado os cursos que passou a ministrar no Colégio da França desde que assumiu uma cadeira, na seção de Ciências filosóficas e sociológicas, intitulada por ele “Racionalidade e ciências sociais”, em junho de 2006. Elster já falou sobre ‘O desinteresse’, ‘A irracionalidade’ e ‘As decisões coletivas’. Atualmente, seu curso trata da Convenção federal americana de 1787, das escolhas políticas que ela exigiu e da invenção institucional que ela promoveu.
Jon Elster “sucedeu” Pierre Bourdieu no Colégio da França (1982-2001), que por sua vez havia “sucedido” Claude Lévi-Strauss e a cadeira de Antropologia Social (1959-1982). Na instituição, não há a prática de ocupar a vaga de, já que se permite que sejam criadas outras cadeiras conforme a orientação e as pesquisas do novo titular. De toda maneira, nada mais diferente do que os interesses desse filósofo social norueguês (que foi orientado de Raymond Aron e escreveu uma tese sobre Marx na Sorbonne) em relação ao primeiro e ao segundo dessa linhagem que tem em Marcel Mauss e na cadeira de Sociologia (1931-1942) sua origem, por assim dizer.
O livro de Elster, Ulisses liberto, publicado originalmente em 2000, a que agora os leitores brasileiros têm acesso, é uma espécie de continuação e de revisão do seu Ulisses e as sereias (1979). A questão de fundo é a mesma: compreender, a partir de um mapa das emoções humanas (razão, desrazão, paixão, interesse, altruísmo, conformismo, etc.), o que motiva a ação social. Tudo isso deve ser lido na chave do individualismo metodológico. São os indivíduos, suas crenças, seus sentimentos e seus propósitos que explicam o mundo social. E não grandes coletivos como “as classes” e seus interesses, “os militares” e sua organização, “o Estado” e suas funções, etc.
A economia do comportamento social – a área de estudos de Jon Elster – pretende, na contramão da explicação estrutural, descobrir como pessoas e grupos definem prioridades, fazem escolhas, tomam decisões.
Para destrinchar isso, é preciso investigar quais são os motores das ações individuais. Esse é um passo a mais na teorização da escolha racional: trata-se agora de completar o modelo original e saber como se formam as preferências; e não apenas como é possível simplesmente ajustar meios e fins. A mitologia do Homo Oeconomicus, tão abalada pelos comportamentos dos agentes que conduziram à última crise financeira mundial, dá lugar assim a uma espécie de psicologia social do ator.
A história de Ulisses que inspira os dois livros é bem conhecida: ele ordenou a seus marinheiros que tapassem os ouvidos com cera e o acorrentassem ao mastro do seu navio para não ceder ao canto fatal das sereias. Essa decisão subjetiva implica, como se percebe, numa renúncia: nem sempre é melhor satisfazer imediatamente nossos impulsos. Essa é, ainda por cima, uma renúncia voluntária, uma escolha. Mas uma escolha que traz (ou pode trazer) benefícios tangíveis.
A partir dessa imagem, Elster argumenta que às vezes é mais racional (no sentido de que é mais vantajoso em função dos objetivos a serem atingidos) ter menos que mais. Fumantes poderiam ter mais prazer com o tabaco se fumassem menos. Decidir entre poucas alternativas pode ser mais útil do que ter muitas à disposição. Renunciar ao uso do poder total pode ser mais sábio que poder decidir sobre tudo. É o caso dos governos que abdicaram do controle da moeda em favor de um Banco Central independente em nome dos riscos que o partidarismo e a politização excessiva da política econômica poderiam trazer. Saber cada vez mais sobre alguma coisa não é necessariamente bom. A manipulação genética é um exemplo. Por isso, argumenta Elster, impor a si mesmo restrições benéficas tem lá suas razões de ser.
Há dois tipos de restrições benéficas. Principalmente por causa da utilização frequente da explicação funcional em ciências sociais (depois disso, logo, por causa disso) é preciso diferenciá-las.
Há as restrições acidentais. Elas beneficiam o agente que as sofre, mas não são racionalmente escolhidas por ele por causa desses benefícios. Podem até ter sido escolhidas por ele, sim, mas por outro motivo; podem ter sido escolhidas por alguém; ou simplesmente não terem sido escolhidas: são um fato da vida com o qual temos de lidar.
Há também outro tipo de impedimento. São as restrições essenciais. Elas são restrições que um agente impõe a si mesmo em nome de algum benefício esperado para si. O ato de criá-las pode ser chamado de auto-restrição. Esse é o assunto do livro.
Com base nessa caracterização, Elster irá estabelecer um modelo bastante complexo (e excessivamente complicado) a partir de uma segunda diferenciação. Uma teoria geral dos constrangimentos da ação precisa separar logicamente motivos individuais, de um lado, e, de outro, dispositivos, mecanismos de compromisso com uma determinada coisa a fim de elucidar as várias formas de auto-restrição que um ator pode se fixar.
O mesmo raciocínio pode ser usado para compreender e explicar os mecanismos de interação que permitem decisões coletivas. Nesse sentido, não se trata apenas de classificar normas de conduta, mas de definir os acordos tácitos ou explícitos que estão na base dos contratos e até mesmo da elaboração das Constituições.
Esse é um ponto que interessa bastante os cientistas sociais, especialmente os cientistas políticos. Tomando como exemplo os processos de criação de novas Constituições políticas no Leste Europeu após o 1989, Elster procura pensar sobre as soluções dadas às complexas equações nacionais. A constitucionalização desses países deveria impedir, por exemplo, que os partidos comunistas voltassem rapidamente ao poder. Os próprios comunistas, que pretendiam preservar sua influência política e alguma capacidade de veto durante o período de transição para o capitalismo de mercado, gostariam de garantir imunidade total pelos crimes políticos cometidos durante os anos de vigência do “socialismo real”. Como escolher o melhor caminho para tanto? Que estratégias essas escolhas exigem? Do que se deve abrir mão para consegui-las?
O estilo argumentativo de Elster é erudito e vistoso, mas nem sempre persuasivo. O recurso à linguagem conotativa torna a leitura mais arejada, mas tem um preço: algumas analogias e exemplos são um tanto forçados (e às vezes improcedentes). Idas e vindas entre registros muito distintos – filosofia clássica, literatura moderna, economia política, compêndios de mágicos, teoria social contemporânea, fatos banais do quotidiano, etc. – não é um recurso estilístico desprezível. Mas às vezes nos questionamos sobre a capacidade de persuasão sócio-lógica do autor e a potência de seus argumentos.
Tratar de constrangimentos e restrições nesse nível de abstração conviria mais a uma psicologia do ator social independente do que a uma ciência do social. Afinal, como lembraram Levine, Sober e Wright, o fato de que se não houvesse pessoas não haveria sociedade, não implica que o indivíduo deve ser sempre a variável fundamental em explicações sociológicas.
Adriano Codato é doutor em Ciência Política pela Unicamp, professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e editor da Revista de Sociologia e Política (www.scielo.br/rsocp).
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