Adriano Codato
[escrevi esse pequeno texto com objetivos puramente didáticos sobre a história do conceito de ideologia e seus usos diferentes pelas diferentes tradições marxistas, dos clássicos à primeira formulação de Raymond Williams, em Marxism and Literature (1977)]
Originalmente, a noção de “ideologia” designava, conforme a crença materialista, apenas aquilo que sua etimologia indicava: uma ciência das idéias ou mais propriamente, o estudo científico das idéias. Por oposição à metafísica, Destutt de Tracy argumentou, em princípios do XIX, que as idéias procediam das percepções sensoriais do mundo exterior à consciência, e não de raciocínios a priori, sendo elas, portanto, as idéias, o resultado da interação entre os organismos vivos e o meio ambiente.
Pouco tempo depois, quatro outros significados bastante diferentes desse primeiro surgiram e emprestaram ao termo uma conotação crítica e negativa que o acompanharia até hoje.
Bonaparte reprovou a atividade política dos “ideólogos” (o círculo de colaboradores do Institut Nationale, de que fazia parte o autor de Eleménts d’idéologie, de 1801) e registrou que a ação reformadora desses agentes, inspirada nos ideais do Iluminismo, consistia de fato na manipulação das idéias (matéria-prima dessa “metafísica obscura”) para edificar “um governo de homens sanguinários” (1). Como a doutrina dos ideólogos estava em desacordo com o sentimento dos homens e as lições da História, “ideologia” passou também a nomear toda teoria abstrata, imaginativa, irrealizável na prática (ou, para falar como Antonio Gramsci, “ideologias arbitrárias”, por oposição a “ideologias historicamente orgânicas”).
Na tradição marxista clássica, o termo, mais freqüente nos textos de polêmica política do que no discurso teórico, foi utilizado por Engels e Marx para qualificar os pensamentos tomados enquanto entidades independentes da realidade material, enquanto juízos puramente especulativos, tais como os sistemas de filosofia e a religião – como se o mundo social pudesse ser reduzido a uma batalha imaginária de “frases contra frases” (2).
Engels, mais adiante, agregou um outro significado à noção de ideologia e ela passou a compreender todos os motivos falsos ou aparentes, todas as concepções ilusórias (“falsa consciência”) que concorriam para ocultar do próprio sujeito suas condições materiais e as contradições sociais em que estava enredado.
No século XX a palavra ideologia conservou, na língua comum, aquela acepção de “conjunto de convicções filosóficas, sociais, políticas etc. de um indivíduo ou grupo de indivíduos” (Houaiss), mas também, note, ainda segue designando freqüentemente qualquer pensamento doutrinário, sectário, parcial, dogmático.
Paralelamente, o conceito assumiu, na tradição dos marxistas, um sentido mais descritivo (V. I. Lênin) ou mais explicativo (A. Gramsci) e menos pejorativo. Para o primeiro, ideologia tornou-se a forma de consciência política das classes sociais (a “consciência de classe”); para o segundo, a consciência teórica (ou subjetiva) dos processos sociais.
Em Lênin, ideologia é o sistema ou conjunto de idéias, principalmente políticas, produto de um grupo ou classe social, que, através dele, representa, manifesta, justifica e racionaliza seus interesses (daí sua fraseologia característica: “ideologia proletária”, “ideologia burguesa”).
Já em Gramsci, ideologia indica a totalidade das formas de consciência social ou, de maneira mais direta, visões e concepções de mundo dominantes transformadas em “senso comum”, e que concorrem para a coesão (“cimento”) social. Por ordem de complexidade: filosofia, religião, senso comum e folclore (3). Assim, as ideologias (no plural) funcionam, na teoria de A. Gramsci, como forças organizadoras, e não como concepções intelectuais que podem ser verdadeiras ou falsas per se. São elas que, no limite, circunscrevem o espaço social onde os agentes sociais “atuam, lutam e adquirem consciência de suas posições sociais” (4).
O novo conceito, ou a formulação diferente do antigo, exigiu, nessa tradição, uma reinterpretação da relação de determinação entre o ‘ser social’ e a ‘consciência social’, o que empurrou toda discussão para o reexame da relação entre base e superestrutura – com a condição do edifício social ser pensado agora in totum e não mais a partir das relações, simples ou complexas (sobredeterminações; determinações), das mediações e das oposições entre suas partes.
Gramsci, e depois Williams, irão vindicar, para uma teoria materialista da ideologia (‘hegemonia’, no primeiro caso; ‘cultura’, no segundo), o estatuto do “ideológico” (termo tradicional que preferem abandonar) como constituinte, criador e (re)produtor da realidade social – e não simplesmente reprodutor de significados e valores.
notas:
(1) Apud John B. Thompson, Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. 2ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 47.
(2) Karl Marx e Friedrich Engels, L’ideologie allemande (« Conception matérialiste et critique du monde »). In: Karl Marx, Œuvres. Éd. établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, 1982, vol. III: Philosophie. Bibliothèque de La Pléiade, p. 1 054.
(3) Ver, para esse resumo, Raymond Williams, Palavras-chave: um vocabulário de cultura e sociedade. São Paulo: Boitempo, 2007, p. 212-217. Ver igualmente Tom Bottomore (org.), Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988, verbete Ideologia [por Jorge Larrain], p. 183-187.
(4) Terry Eagleton, Ideologia: uma introdução. São Paulo: Ed. Unesp, 1997, p. 109.