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19 de novembro de 2008

Poulantzas, o Estado e a Revolução

[Mark Rothko, 
Red and Orange]

Adriano Codato

Crítica Marxista (São Paulo), v. 27, p. 65-85, 2008.

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Este artigo apresenta uma periodização possível – mas não consensual – da obra de Nicos Poulantzas entre 1968 e 1978 (os anos da edição de Poder político e classes sociais e O Estado, o poder, o socialismo) tendo como ponto de referência o conceito de “Estado capitalista”.
Estabeleço três princípios de leitura dos seus textos: o contexto intelectual a partir do qual foram escritos, a problemática teórica em função da qual foram pensados e a estratégia política que se poderia derivar deles. Dois temas servem para ilustrar essa discussão: a função do Estado capitalista e a destruição do Estado capitalista.

Antes de expor e explicar a periodização que divide suas idéias em três fases (“Poulantzas 1, 2 e 3”, para simplificar), recordo sua vizinhança com e sua ascendência sobre a teoria do Estado. A produção teórica de Poulantzas e a renovação terminológica que ela produziu só são compreensíveis, todavia, quando se tem presente suas divergências com a Ciência Política e com a Sociologia não-marxista. O fundamental aí é o modo como ele vê e a maneira como ele se diferencia dos problemas tradicionais e dos protocolos convencionais da corrente anglo-saxã, principalmente. A partir de relação, ou mais propriamente, da não relação dessa filosofia com a ciência social não marxista, e com base naqueles três critérios de interpretação (a política, a teoria e as lutas políticas no domínio da teoria), apresento as noções sucessivas de Estado capitalista como estrutura, como aparelho e como relação.

As diferenças entre uma noção e outra e a passagem de uma para outra podem ser explicadas em razão de dois determinantes: a heteronomia dessa teoria política em relação às lutas teóricas e às dissensões políticas no campo político; e a autonomia dessa teoria em relação à Sociologia e à Ciência Política como práticas científicas “puras”. Esse jogo duplo é tão ou mais necessário quanto menos se pode prescindir, nesse momento de (re)fundação da doutrina marxista do Estado, dos dividendos decorrentes de dois princípios de consagração: a autoridade universitária, disputada contra a ciência social “burguesa” pela imposição da teoria marxista da política como a teoria legítima da política; e a autoridade política, transmitida pelo partido teórico e/ou pelo projeto social no qual se está implicado.

Para seguir os sucessivos desvios, desenvolvimentos e arrombamentos do autor no campo da teoria do Estado dividi esse ensaio, que é uma espécie de indexação temática de seus escritos, em três partes.

Na primeira, menciono o contexto intelectual com o qual e contra o qual seus livros, em especial o primeiro, merecem ser lidos. Como Perry Anderson argumentou, o “marxismo ocidental” manteve-se, até o final dos anos sessenta, pelo menos, indiferente às questões clássicas que mobilizaram o materialismo histórico: o “exame das leis econômicas da evolução do capitalismo como modo de produção, a análise da máquina política do Estado burguês [e da] estratégia da luta de classes necessária para derrubar” esse Estado . Poulantzas foi uma honrosa exceção e seus ensaios podem ser lidos como uma via que contribuiu para reencontrar a disposição original dos fundadores.

Na segunda parte, apresento e justifico a pertinência dos três indicadores de leitura – o intelectual, o conceitual e o político – a fim de apurar as respostas de Poulantzas a dois problemas atinentes ao conceito de Estado capitalista: o problema da função do Estado, tópico ligado à questão da reprodução do capitalismo; e o problema da demolição do Estado, tema ligado, por sua vez, à questão da transição ao socialismo. Bob Jessop alega que “As concepções de Poulantzas a respeito da estratégia política” de transformação social “mudaram pari passu com as mudanças nas suas concepções sobre a natureza do Estado capitalista” . Na realidade, pode-se pensar que o inverso seja tão ou mais verdadeiro.

Na terceira parte, comento a primeira teorização de Poulantzas (“Poulantzas 1”) e seu projeto de construir uma teoria geral do nível político no modo de produção capitalista – ou, mais especificamente, produzir o conceito de Estado relativo a esse modo de produção. Ainda que essa formulação não postule nem imponha um programa de transição ao socialismo, traz implícita um modelo “leninista” de derrubada do Estado capitalista. Em seguida, resumo a idéia do Estado como um feixe de aparelhos (“Poulantzas 2”) elaborada a partir da análise de dois tipos de “regimes de exceção”: o fascismo e a ditadura militar. No final, procuro destrinçar a última formulação poulantziana (“Poulantzas 3”) e suas conseqüências políticas. O Estado passa a ser pensado tal qual o capital, não como um objeto que se possui e se dispõe, ou como um sujeito com vontade própria, situado acima ou ao lado das classes, mas como uma relação social, fórmula aparentemente enigmática, mas plenamente compreensível quando se tem presente a trajetória ideológica do autor, suas reorientações filosóficas no âmbito do marxismo e as sucessivas conversões políticas em direção ao “eurocomunismo de esquerda” .

I. ESTADO E TEORIA DO ESTADO

As questões relativas ao poder e ao Estado foram reintroduzidas na tradição marxista por dois trabalhos bastante desiguais, na forma e no conteúdo: Pouvoir politique et classes sociales, de Nicos Poulantzas (publicado em Paris em 1968) e The State in Capitalist Society, de Ralph Miliband (publicado em Londres em 1969). Durante os setenta o tema recebeu um impulso considerável a partir da polêmica entre os autores nas páginas do periódico radical inglês New Left Review a propósito de três tópicos: como haver-se com o legado teórico de Marx; como proceder no trabalho intelectual nas ciências sociais; e como compreender, tanto de um ponto de vista conceitual como de um ponto de vista empírico, a relação entre o Estado capitalista, as classes dominantes e a burocracia (ou a elite) estatal.

São também desse período, além do influente livro de Jürgen Habermas, A crise de legitimação do capitalismo tardio (1973), a série de artigos de Claus Offe sobre a afinidade entre o Estado capitalista e as questões da acumulação e legitimação que apareceram regularmente a partir de 1972 em uma série de periódicos acadêmicos (International Journal of Sociology, Politics and Society, Kapitalistate etc.). O trabalho de Habermas foi publicado quase simultaneamente aos debates da Escola Lógica do Capital conduzidos por Wolfgang Müller, Christel Neusüss, Elmar Altvater e Joachim Hirsch na Alemanha. Os temas e as teses dos derivacionistas foram retomados e contestados, nos Estados Unidos, por James O’Connor (em A crise fiscal do Estado). Ao mesmo tempo na França, à parte os escritos de Poulantzas, o estímulo para reconsiderar a problemática tradicional do marxismo – em duas palavras: o Estado e a economia – viria primeiro dos estudos filiados ao PCF sobre o Capitalismo Monopolista de Estado (de Paul Boccara e outros) e, logo em seguida, da proposição da Teoria da Regulação por Michel Aglietta, Alain Lipietz, Robert Boyer e Bruno Théret.

Assumindo o marxismo de Marx e disputando sua decodificação, ora através da sua Economia (basicamente O Capital), ora por meio de sua Política (os escritos históricos e os textos de polêmica ideológica), todos retornaram ao catálogo consagrado das obras clássicas com a disposição tanto para extrair uma teoria específica do Estado capitalista (Miliband), quanto para elaborar uma teoria geral do nível jurídico-político (Poulantzas), ou mesmo para reconstruir o materialismo histórico (Habermas). Com graus de sofisticação variados, essa literatura propôs uma fileira de conceitos para compreender e explicar as novas afinidades entre o Estado e as relações de produção (i.e., a estrutura social) e o Estado e as formas de acumulação (i.e., a economia capitalista). Foi o caso das locuções bloco no poder (Poulantzas), elite estatal (Miliband), seletividade estrutural (Offe), tecnologia organizativa (Therborn), capitalismo estatal (E. Olin Wright), regime de acumulação (Lipietz), forma Estado (Hirsch).

Um dos assuntos mais importantes e que constituiu ora o ponto de partida, ora o ponto de chegada de muitas dessas proposições foi a questão da “autonomia relativa” do Estado, expressão fabricada por Nicos Poulantzas para pensar três problemas diferentes: a relação concreta entre o pessoal do Estado (a burocracia) e as classes e frações dominantes; a relação peculiar, ou a separação característica, entre o Estado (ou o político) e as relações de produção (o econômico) no modo de produção capitalista; e, em termos mais abstratos, a especificidade “do político” (isto é, a superestrutura jurídico-política do todo social, instância que compreende o Estado) como um objeto real e como um objeto de conhecimento de direito próprio . A teoria marxista do Estado capitalista pautou-se em grande parte exatamente por essas questões.
[trecho do artigo]

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Crítica Marxista é publicada pela editora da Unesp
http://www.editoraunesp.com.br/


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outros posts sobre N. Poulantzas:
  • o gênero teórico do discurso teórico [aqui]
  • elitismo versus marxismo? por uma agenda empírica de pesquisa [aqui]
  • quem vence? classes sociais e processo decisório [aqui]
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