artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
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30 de novembro de 2010

o modo teórico de produção teórica

[Rothko] 

Nesta comunicação, formulo um argumento sobre as razões explícitas e sobre as razões implícitas da proverbial complicação dos escritos de Poulantzas, insistindo, e esse é o problema central que desejo destacar, sobre a influência que os procedimentos e os pressupostos da filosofia impõem à prática teórica dos marxistas no âmbito das ciências sociais.

O ponto aqui é antes sugerir que demonstrar que a forma de redação dos textos de Poulantzas é menos uma questão do “estilo” do autor (o vocabulário incomum, a fraseologia arrevesada, a falta de clareza de certos conceitos e a desorganização dos argumentos); ou mesmo uma questão do “nível” do discurso (um discurso necessariamente abstrato para tratar de problemas abstratos); e sim uma questão do “tipo” de “ciência social” defendida e praticada pelo estrutural-funcionalismo francês como um todo (Althusser, Balibar, Badiou, etc.).

A hipótese é que a prosa filosofante característica desse gênero de marxismo encurrala e encerra o discurso e a prática sociológica em três mundos, que os dirigem e passam a defini-los: i) a política, ii) a teoria e iii) as lutas políticas no domínio exclusivo da teoria. Invertendo a formulação de Althusser (“a filosofia é luta de classes na teoria”), creio que se deveria dizer que essa teoria é, antes de qualquer coisa, um produto da luta teórica no domínio da filosofia (marxista).

Meu argumento central é o seguinte: esse gênero de “ciência social” que Poulantzas exemplifica tira proveito da fusão do discurso político com o discurso científico sob a proteção e a garantia do discurso filosófico. Essa é a razão do alegado teoricismo de Nicos Poulantzas, cujo efeito (e não a causa) é um dialeto abstrato. A causa fundamental dessa forma de conceber o trabalho teórico e a prática científica está, antes de qualquer coisa, na recusa dos procedimentos convencionais da ciência convencional. 

para ler a versão
completa, clique aqui [pdf]
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25 de fevereiro de 2010

Dostoiévski em três novelas de juventude

[Typ Euro Russia. 
1900.
Life]

por Renato M. Perissinotto
Novos Estudos CEBRAP,
São Paulo, n. 85, dez. 2009.

Este artigo analisa três novelas de juventude escritas por Fiódor Dostoiévski: Pobre gente, O duplo e Coração frágil .

O texto tem dois objetivos fundamentais: primeiro, recusar a tese de que o autor russo, proverbial analista da alma humana, teria se despreocupado com os condicionantes sociais da ação dos seus personagens; em segundo lugar, pretende-se defender que a sociedade se faz presente nesses escritos por meio de uma "intuição sociológica" que Dostoiévski opera quando analisa os baixos funcionários da Rússia do século XIX.

O texto está dividido em três partes: na primeira, descrevo a estrutura estatal da sociedade russa no século XIX; na segunda, apresento a descrição das condições de vida dos personagens e, por fim, analiso a forma pela qual o autor russo apresenta as interações sociais em que eles estão inseridos.

para ler o texto integral,
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10 de janeiro de 2010

as elites políticas: questões de teoria e método

[Praça do Patriarca, 2003.
Tuca Vieira.
Pirelli/MASP]

Em dezembro de 2009, Renato Perissinotto lançou, pela Editora IBPEX, de Curitiba, o livro
As elites políticas: questões de teoria e método

Abaixo, leia a "Apresentação" do volume:

Este livro pretende apresentar ao leitor as principais características daquilo que ficou conhecido na teoria social e política como “teoria das elites”. Não é nossa intenção esgotar o assunto e nem mesmo tangenciar todas as questões que esta teoria suscitou nos últimos cem anos. Como se trata de uma obra introdutória, o autor procurou identificar os fundamentos da teoria das elites, suas principais proposições e, por fim, os seus desenvolvimentos posteriores.

Para tanto, o livro está organizado da seguinte forma. Na primeira parte, o leitor encontrará a exposição das idéias principais dos pais fundadores da teoria das elites. O primeiro capítulo é dedicado à obra de Gaetano Mosca, o segundo, à de Vilfredo Pareto, e o terceiro capítulo discute a sociologia de Robert Michels. A segunda parte do livro dedica-se a analisar os desenvolvimentos posteriores realizados pelos cientistas políticos do século XX. Apesar do número de autores que lidaram com as questões típicas da teoria das elites ao  longo do século passado ser muito grande, resolvemos, por razões didáticas e por problema de espaço, reduzir essa segunda parte aos estudiosos que protagonizaram um dos mais importantes e profícuos debates metodológicos da ciência política contemporânea, a saber, o debate entre elitistas, pluralistas e teóricos da não-decisão. Ainda nesta segunda parte, apresentamos a crítica dos sociólogos e cientistas políticos de inspiração marxista aos pressupostos da teoria das elites. Por fim, à guisa de conclusão, apresentamos alguns argumentos segundo os quais, apesar das críticas e dos problemas encontrados na teoria das elites, justifica-se, do ponto de vista científico, estudar as minorias que comandam as sociedades humanas.

O espírito que orientou a elaboração deste livro foi o de revelar ao leitor os pressupostos normativos e ideológicos por detrás das proposições teóricas dos diversos autores aqui analisados. Ao mesmo tempo, porém, esforçamo-nos para colocar em destaque o valor científico de suas contribuições. Afinal, apesar de o sociólogo estar inescapavelmente mergulhado no mar de preconceitos e ideologias que inunda as sociedades humanas, só faz sentido se referir à Sociologia como uma ciência se o conhecimento que ela produz trás consigo ao menos algum grau de objetividade. Cada um a sua maneira, os autores aqui analisados sempre se guiaram por essa preocupação.

para comprar o livro,
clique aqui [Editora IBPEX]
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9 de janeiro de 2010

ainda a teoria das classes sociais

[Avenida Paulista, 1983
Carlos Fadon Vicente.
Pirelli/MASP]


O CONCEITO DE CLASSES SOCIAIS E A LÓGICA DA AÇÃO COLETIVA
Bruno P. W. Reis

Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 34 (3): 415-41. 1991.

O artigo sustenta que a formulação olsoniana da lógica da ação coletiva, ao demonstrar a indeterminação da conduta política dos membros de uma mesma classe social, lança um grave desafio sobre a teoria marxista das classes sociais, pois impede qualquer afirmação conclusiva sobre a inevitabilidade da revolução proletária. Em seguida examinam-se as contribuições ao assunto feitas por autores como G. A. Cohen, John Roemer, Jon Elster e Adam Przeworski, buscando captar em que medida cada um se inclina por uma concepção “objetivista” (ênfase na classe “em si”) ou “subjetivista” (ênfase na classe “para si”) do conceito de classe social. Ao final, o artigo conclui reconhecendo o caráter incontornável da indeterminação da conduta política dos membros de uma classe e rechaçando as tentativas – especialmente a de Przeworski – de se contornar o problema através de redefinições do conceito de classe social que redundam na redução do nexo causal entre classe e conflito a uma circularidade tautológica. Preserva-se, não obstante, a relevância do conceito de classes sociais na análise sociológica – em termos muito próximos, senão idênticos, às formulações de Max Weber sobre o tema – como base freqüente, embora não necessária, da ação comunal.

para ler o artigo
completo, clique aqui
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7 de janeiro de 2010

entendendo as classes sociais

[Série A Várzea do Carmo, 1979-1980
São Paulo, SP
Raul Garcez.
Pirelli/MASP]



Eis um exemplo das grandes descobertas da sociologia política marxista contemporânea.
Erik Olin Wright publicou no último número da New Left Review o artigo UNDERSTANDING CLASS.
NLR, n. 60 nov./dec. 2009

Ele sustenta, basicamente, que uma nova teoria das classes deve combinar três modelos de análise social: o marxista, o weberiano e as teorias da estratificação social.

Abaixo, a introdução do bruto.

Towards an Integrated Analytical Approach

When I began writing about class in the mid-1970s, I viewed Marxist and positivist social science as foundationally distinct and incommensurable warring paradigms. I argued that Marxism had distinctive epistemological premises and methodological approaches which were fundamentally opposed to those of mainstream social science. In the intervening period I have rethought the underlying logic of my approach to class analysis a number of times. [1] While I continue to work within the Marxist tradition, I no longer conceive of Marxism as a comprehensive paradigm that is inherently incompatible with ‘bourgeois’ sociology. [2]

Having previously argued for the general superiority of Marxist class analysis over its main sociological rivals—especially Weberian approaches and those adopted within mainstream stratification research—I now take the view that these different ways of analysing class can all potentially contribute to a fuller understanding by identifying different causal processes at work in shaping the micro- and macro- aspects of inequality in capitalist societies. The Marxist tradition is a valuable body of ideas because it successfully identifies real mechanisms that matter for a wide range of important problems, but this does not mean it has a monopoly on the capacity to identify such mechanisms. In practice, then, sociological research by Marxists should combine the distinctive Marxist-identified mechanisms with whatever other causal processes seem pertinent to the explanatory task at hand. [3] What might be called a ‘pragmatist realism’ has replaced the ‘grand battle of paradigms’.

For the sake of simplicity, in what follows I will focus on three clusters of causal processes relevant to class analysis, each associated with a different strand of sociological theory. The first identifies classes with the attributes and material life conditions of individuals. The second focuses on the ways in which social positions afford some people control over economic resources while excluding others—defining classes relative to processes of ‘opportunity hoarding’. The third approach conceives of classes as being structured by mechanisms of domination and exploitation, in which economic positions accord some people power over the lives and activities of others. The first is the approach taken in stratification research, the second is the Weberian perspective, and the third is associated with the Marxist tradition.
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5 de janeiro de 2010

Jon Elster e a democracia

[Fazenda de Itu,
1973.

Stefania Bril.
Pirelli/MASP]

ENTREVISTA
JON ELSTER
A
CLAUDIA ANTUNES

Folha de S. Paulo,
17 jun. 2007

Essa entrevista de Elster à Folha, embora antiga, toca em dois pontos importantes, a meu ver: a necessidade de pensar a democracia deliberativa a partir de seus "mecanismos", e não apenas de valores; e a dificuldade do socialismo em manter as pessoas mobilizadas e interessadas em política todo o tempo.

FOLHA - Como vai a democracia no mundo, em sua opinião?
JON ELSTER - Eu considero que hoje só há uma escolha, entre democracia e ditadura; a possibilidade de um governo da elite ou da oligarquia está morta para sempre. Ninguém pode reivindicar superioridade em termos de riqueza, nascimento ou educação. Agora, o que vemos em alguns países como a Rússia é uma forma especial de democracia, que é autoritária. Embora baseada em eleições, é difícil dizer o quanto isso importa. Para uma democracia verdadeira, é preciso ter partidos políticos que se alternem no poder. É o teste para sabermos se estamos diante de um arremedo de democracia ou de uma democracia verdadeira. A Quinta República Francesa só provou ser uma democracia em 1981, quando os socialistas chegaram à Presidência.

FOLHA - Há o argumento de que partidos diferentes governam igual por causa da influência de oligarquias econômicas não eleitas.
ELSTER - Em primeiro lugar, eu não acho que isso se aplique à política externa. Um governo democrata nos EUA possivelmente não estaria numa guerra no Iraque. De maneira geral, há alguma correção no raciocínio de que, numa economia de mercado globalizada, há restrição às ações dos governos. Mas ela é muito ou pouco importante? Depende do país, das políticas. Não dá para generalizar.

FOLHA - O senhor defenderia o voto obrigatório em países onde a abstenção é alta, como os EUA?
ELSTER - Acho que dependeria de quais seriam as sanções para quem não votasse, ou a recompensa para quem votasse. É verdade que existe nos EUA um problema de participação democrática - o último presidente foi eleito por 29% dos eleitores, uma base popular muito pequena. Isso é perigoso.

FOLHA - O senhor diz que chegar a governos estáveis deve ser uma meta dos sistemas eleitorais. Como combinar representação justa e estabilidade?
ELSTER - Com compromissos. Para ter justiça, você pode ter representação proporcional; para ter alguma estabilidade, precisa ter uma cláusula de barreira de 3% ou até 5% dos votos, de modo que os pequenos partidos não possam chegar ao Parlamento. O voto proporcional pode gerar menos estabilidade do que o majoritário, mas pode levar a mais justiça.

FOLHA - O Congresso brasileiro debate a introdução de listas partidárias fechadas. É democrático?
ELSTER - Um sistema em que só os partidos podem designar a ordem dos eleitos é antidemocrático. O sistema ideal tem que combinar algum papel dos partidos na criação das listas mas também a possibilidade de os eleitores modificarem-na.

FOLHA - Que importância o senhor dá ao equilíbrio de poder entre as instituições do Estado?
ELSTER - Tanto a separação dos Poderes quanto a existência de pesos e contrapesos são importantes. Mas nos EUA, por exemplo, há contrapesos demais. O Senado americano é, acredito, uma instituição ridícula por causa do modo como é eleita, dando a todos os Estados o mesmo peso. Hoje, a Alemanha apresenta um bom equilíbrio. Embora tenha um modelo federativo, não dá poder igual a todos os Estados no Senado; há certa proporcionalidade.

FOLHA - O senhor é próximo de proponentes da chamada "democracia deliberativa", que enfatiza o consenso por meio do debate público mais do que a disputa político-eleitoral entre grupos de interesse. Qual a influência do alemão Jürgen Habermas em sua obra?
ELSTER - O meu trabalho sobre a democracia foi de certa maneira inspirado por Habermas. Mas há uma diferença fundamental: Habermas está mais preocupado com princípios normativos da deliberação e eu com os mecanismos de causa e efeito na deliberação e como características institucionais podem melhorar a qualidade da deliberação. Acho que as idéias de Habermas até certo ponto tolhem o debate de fato; quer dizer, as pessoas têm que falar e agir como se fossem "habermasianas".

FOLHA - Como se fossem neutras?
ELSTER - É, imparciais. Isso é o que chamo no meu trabalho de "a força civilizadora da hipocrisia". Então tento usar as idéias de Habermas para explicar o comportamento de pessoas de verdade que são constrangidas pelo meio público. Mesmo se as pessoas estão motivadas apenas pelos seus interesses individuais, as regras e mecanismos do debate público vão forçá-las a justificar suas posições em termos de interesse público. Isso limita o interesse particular, em alguma medida.

FOLHA - O que o senhor acha da idéia da democracia participativa, muito popular na América Latina?
ELSTER - Oscar Wilde disse que o problema do socialismo é que a semana só tem sete noites. Do mesmo modo, a democracia participativa às vezes parece exigir mais compromisso e mais recursos do que é razoável esperar das pessoas.
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4 de janeiro de 2010

papers produzidos pela oficina de pesquisa em sociologia histórica


[Buraco na Parede.
Barcelona, 1993.
Miguel Rio Branco.
Pirelli/MASP]

Em fins de 2008 iniciamos a oficina de pesquisa em sociologia histórica vinculada ao Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira da UFPR.

Ao longo do ano produzimos uma série de papers.

Nosso objetivo é a construção de uma plataforma de pesquisa para aplicação a objetos empíricos determinados com um viés comparativo e generalizante.

Abaixo, os links para os textos.

1a. sessão (27.nov.2008): Renato Perissinotto: Indução, comparação e compreensão nas ciências sociais

2a. sessão (18.dez.2008): Hugo Loss: síntese metodológica de Pierre Bourdieu: As regras da arte

3a. sessão (27.fev.2009): Fernando Leite: síntese metodológica de Barrington Moore Jr.: As origens sociais da ditadura e da democracia

4a. sessão (22.mai.2009): Pedro Leonardo Medeiros: síntese metodológica de Reinhard Bendix: Construção nacional e cidadania

5a. sessão (19 ago. 2009): Hugo Loss: síntese metodológica de Theda Skocpol: Estado e revoluções sociais

6a. sessão (30 set. 2009): Paulo Costa: síntese metodológica de Max Weber: A ética protestante e o espírito do capitalismo

7a. sessão (26 fev. 2009): Adriano Codato: síntese metodológica de Charles Tilly: Coerção, capital e Estados europeus [em breve]

8a. sessão (9 dez. 2009): Renato M. Perissinotto: síntese metodológica de Theda Skocpol: Vision and Method in Historical Sociology

9a. sessão (30 abr. 2010): Paulo Costa: síntese metodológica de Perry Anderson: Linhagens do Estado absolutista [em breve]
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3 de dezembro de 2009

o conceito de elite (I)

[Nina Leen. 1943.
Life]

Adriano Codato

As posições de comando no espaço social – ao menos as posições políticas – estão repartidas entre as classes economicamente dominantes e as classes politicamente dirigentes.

A elite política, ou a “classe política” (tomadas aqui como sinônimos, portanto), são, conforme a distinção tradicional proposta por Gaetano Mosca em Sulla teorica dei governi e sul governo parlamentare, apenas uma parte daquele conjunto designado comumente pelo nome “classe dirigente”.

Apesar do emprego ambíguo dos dois termos por Mosca, como James Burnham notou (1) , a expressão ‘classe dirigente’ englobaria também, além da elite política, todos aqueles agentes que estão fora do Estado e fora do governo, mas que poderiam influenciar as decisões políticas, sem exercer diretamente, como a primeira, o poder.

Esse grupo incluiria várias “minorias” (politicamente desiguais entre si, note-se), como as econômicas, as religiosas, as intelectuais, as sociais. A classe política, ou a elite política, seria, por sua vez, uma subespécie da classe dirigente: é a parte da classe dirigente que estaria incumbida da tarefa de governar (2) .

Tal como eu penso que deva ser utilizada, a noção de elite (política) não substitui o conceito de classe (dominante), já que não são termos intercambiáveis (3) ; nem o emprego da expressão “classe política” deve significar, necessariamente, uma adesão do analista a todos os pressupostos teóricos da “teoria das elites” (ou do autor aos princípios normativos dos elitistas).

Notas:

1. Ver James Burnham. Los maquiavelistas: defensores de la libertad. 2ª. ed. Buenos Aires: Emecé, 1953, p. 99.

2. Ver James H. Meisel, The Mith of the Ruling Class: Gaetano Mosca and the “Elite”. Michigan: Ann Arbor Paperbacks; The University of Michigan Press, 1962, p. 37 e p. 160-161. Ver também Ettore A. Albertoni. Doutrina da classe política e teoria das elites. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 68.

3. Ver Tom B. Bottomore, As elites e a sociedade. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 14 e segs. Para a mesma ideia, conferir Anthony Giddens, A estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 145 e segs.
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o conceito de elite (II)

[Nina Leen. 1943.
Life]

Adriano Codato

Esses dois termos – ‘classe’ e ‘elite’ – apenas assinalam, com nomes diferentes, coisas diferentes. Eles também não precisam ser opostos ou incompatíveis (4) .

Uma forma produtiva de evitar o ecletismo teórico e acatar a coabitação das duas ideias num mesmo discurso científico (ou mais propriamente, das duas dimensões da realidade social que os dois vocábulos delimitam e descrevem: estratificação social, no primeiro caso, e hierarquia política, no segundo), é ter presente, na análise dos processos de recrutamento para posições de elite e na análise dos processos de tomada de decisões por parte dessa elite, aquilo que Anthony Giddens designou por “mediação institucional do poder”, isto é, a forma geral do Estado (o “jurídico-político”, na terminologia dos marxistas) e o estado geral da economia (o “econômico”, idem) e suas influências sobre o exercício do poder (5) .

Essa exigência implica em considerar na análise tanto do alistamento quanto do comportamento da classe política, uma série de assuntos incontornáveis já devidamente enfatizados, entre outros autores, por Offe e Wiesenthal.

As condições sociais de acesso a postos de elite, o controle desigual de recursos de poder e o grau variável de influência de um grupo político específico estão condicionados (ainda que não exclusivamente) por sua posição na estrutura social (6) .

Em termos “geográficos”: esses grupos podem estar em posições mais altas ou mais baixas na estrutura social; mais próximos ou mais distantes dos centros de poder político, dentro ou fora dos sistemas de propriedade econômica etc. Isso determina de antemão a estrutura de oportunidades políticas (7) e qualifica desde logo quem pode e quem não pode ascender a posições de elite.

Por outro lado, nem todos aqueles que fazem parte da “classe dominante” integram a “classe política”. Essas diferenciações podem ser ora pressupostos da análise, ora objeto de uma demonstração lógica ou empírica.

Notas:

4. Para uma análise da relação entre o conceito de elite e o conceito de classe dominante, tanto no marxismo “elitista” (T. Bottomore, R. Miliband), quanto no elitismo renovado (Wright Mills, G. W. Domhoff) ver Danilo Enrico Martuscelli, Para uma crítica ao marxismo elitista. Paper apresentado no 31º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu (MG), 2007, p. 14-19.

5. Ver Anthony Giddens, Preface. In: Stanworth, Philip e Giddens, Anthony (eds.), Elites and Power in British Society, op. cit., p. xi-xii.

6. Ver Claus Offe e Helmut Wiesenthal, Duas lógicas da ação coletiva: anotações teóricas sobre classe social e forma organizacional. In: Offe, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 56-118.

7. Para a expressão, ver Sidney Tarrow, Power in Movement: Collective Action, Social Movements, and Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
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o conceito de elite (III)

[Nina Leen. 1943.
Life]

Adriano Codato

O uso recorrente no discurso científico da palavra “elite” – e da expressão “elite política”, ou mais raramente, “classe política” – pode ter um sentido apenas descritivo.

Com elas, o cientista social refere-se a uma unidade empírica sujeita a observação e medição (8) .

Através desse termo, cujo sentido traz (e trai) consigo três ideias: a de minoria, a de hierarquia e a de distinção (no sentido sociológico, não social), eu penso que se deva designar o grupo especializado de políticos profissionais (se se quiser, os políticos de carreira) que controlam recursos políticos (posições institucionais no Estado, por exemplo), comandam organizações políticas (partidos, por exemplo) e exercem as funções de governo (no Executivo e no Legislativo).

Eles têm na atividade política seu meio de vida e o poder político como seu objetivo exclusivo, como Max Weber já definiu (9) .

Ainda que esteja de acordo com o mais singelo senso comum, não custa lembrar que “alguém que participe ativamente da política luta pelo poder e pode fazê-lo de duas maneiras: como um meio para atingir outros fins (que podem ser altruístas ou egoístas), ou como um meio de alcançar o ‘poder pelo poder’, isto é, para desfrutar da sensação de prestígio que decorre da sua posse” (10) .

O poder pode ser um meio, como na relação de representação, ou um fim, como na situação, mais frequente do que se imagina, de auto-representação.

Em ambos os casos, os profissionais da política são uma unidade de análise (um grupo funcional) ligados às classes, camadas ou categorias sociais (por suas “origens”), mas separados delas por suas funções e papéis no sistema de dominação.

Michel Offerlé possivelmente exagera um pouco, mas não contradiz o aspecto que quero ressaltar aqui, ao afirmar que as posições políticas “não são mais analisáveis a partir das propriedades [sociais] de seus ocupantes, mas pelas propriedades posicionais e situacionais que permitem defini-las” (11) .

Notas:

8. Ver Ricardo Cinta, Estructura de clases, élite del poder y pluralismo político. Revista Mexicana de Sociologia, vol. 39, n. 2, abr.-jun. 1977, p. 443.

9. Anthony King propõe uma definição mais melodramática: “políticos de carreira par excellence” são “homens e mulheres que comem, dormem e até sonham com política”. Ver The Rise of the Career Politician in Britain and its Consequences. British Journal of Political Science, vol. 11, n. 3, jul. 1981, p. 269.

10. Max Weber, The Profession and Vocation of Politics. In: Lassman, Peter & Speirs, Ronald (eds.), Weber: Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 311.

11. Michel Offerlé (dir.), La profession politique, XIXe-XXe siècles. Paris: Belin, 1999, p. 10.
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20 de outubro de 2009

O retorno do mestre: Keynes

[Xmas Shopping, 1955.
Grey Villet. Life]


Folha de S. Paulo,
18 de outubro de 2009


LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

DIZEM POR aí que Keynes voltou à moda.

Autor de três volumes sobre a vida e obra do célebre economista, Robert Skidelsky entregou à praça recentemente o livro "The Return of the Master".

Digo ao leitor que o livro, um ensaio, nos apresenta um Keynes mais revolucionário e inovador do que revelado na alentada biografia. Nos três magníficos volumes da biografia, Skidelsky cuidou de demonstrar que a crítica de Keynes ao capitalismo liberal era menos radical do que parece.

A responsabilidade pela transfiguração do economista-defunto nas mãos de seu biógrafo mais badalado cabe à derrocada intelectual da teoria econômica dominante nas última quatro décadas.

Os "economistas clássicos" criticados por Keynes em tantas ocasiões eram tão razoáveis quanto modestos se comparados aos desatinos "científicos" das últimas quatro décadas. A escola Nova Clássica, por exemplo, levou ao paroxismo, para não dizer ao ridículo, as hipóteses construídas a partir do comportamento racional e da tendência ao reequilíbrio "espontâneo" dos mercados.

Na concepção dos novos economistas, a sociedade é formada por indivíduos racionais e maximizadores, partículas obcecadas pelo cálculo utilitarista, que jamais alteram seu comportamento na interação com outras partículas carregadas de racionalidade.

Skidelsky vai fundo ao argumentar que os economistas definem o comportamento racional como aquele consistente com seus próprios modelos. Todas as outras formas de comportamento são tratadas como irracionais, configurando um enorme projeto ideológico incumbido de redefinir os humanos como pessoas que acreditam nas coisas que os economistas pensam sobre eles.

Keynes construiu uma teoria das decisões privadas em condições de incerteza. Alegava que não é possível a avaliação inequívoca dos resultados mais vantajosos mediante o cálculo de probabilidade. As pessoas, diz o economista Athol Fitzggibons, agem movidas pelo autointeresse inteligente, mas apoiadas no conhecimento não quantificável; as teorias do comportamento racional pressupõem que os agentes são movidos pelo autointeresse e pelo conhecimento quantificável. Eles fazem escolhas inteligentes entre vários futuros possíveis, o que permite à teoria das expectativas racionais concluir que eles podem convergir para apenas um futuro possível.

Na vida real dos mercados, os empresários tangidos pelo otimismo quanto aos resultados dos novos empreendimentos atropelam o medo do futuro incognoscível e decidem produzir nova riqueza. Mas o sucesso não aplaca, senão excita o desejo, suscitando a febre de investimentos, o crédito imprudente e bolhas especulativas.

Por isso, Keynes insistia "na direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados". A instabilidade inerente à economia monetária da produção só pode ser amenizada mediante a ação jurídica e política do Estado e pela atuação de "corpos coletivos intermediários", como um Banco Central dedicado à gestão consciente e socialmente responsável da moeda e do crédito.

*LUIZ GONZAGA BELLUZZO, 66, é professor titular de Economia da Unicamp.
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14 de outubro de 2009

Sociologia, de Gilberto Freyre

[Carnaval, 1988, Olinda, PE.
Carlos Humberto TDC.

Pirelli / MASP]







Apresentação do livro
Sociologia, de Gilberto Freyre
(Editora É Realizações)

por Simone Meucci (UFPR)

Sociologia: uma introdução aos seus princípios, cuja primeira edição é de 1945, é uma obra única no conjunto da produção intelectual de Gilberto Freyre. Trata-se de um compêndio elaborado por um autor que, com frequência, se autodefinia como pouco vocacionado para atividades didáticas e acadêmicas.

Em Sociologia, Freyre esforça-se por apresentar, num texto didaticamente orientado, a natureza e o lugar da sociologia no quadro geral das ciências e suas ramificações temáticas. O livro consiste numa espécie de organograma a partir do qual o autor inscreve, além das atribuições da sociologia, as inter-relações, os limites e as limitações de seus campos de investigação. Trata-se, portanto, de uma obra importantíssima para conhecer a ossatura do pensamento sociológico de Gilberto Freyre.

Esta nova edição de Sociologia chega às nossas mãos num momento em que ocorre um balanço acerca do legado de Freyre para as ciências sociais no Brasil. Há, com efeito, o resgate do papel de Freyre no processo de sistematização da sociologia e o reconhecimento de sua contribuição para a compreensão da dinâmica de dominação social na sociedade brasileira.[1]

A leitura de Sociologia pode, com efeito, ajudar os estudiosos de sua obra a mapear algumas de suas influências teóricas; compreender, no seu pensamento, as relações entre as “variáveis” raça, cultura e geografia; identificar os fundamentos teóricos da sua interpretação.

Esses aspectos se tornam mais visíveis nas páginas de Sociologia porque a orientação didática do livro obrigou o autor a explicitar categorias, conceitos, posições e pressupostos que não se encontram assim revelados em suas principais obras, conhecidamente ensaísticas.

Sociologia é, como não poderia deixar de ser, produto de uma longa artesania das ideias sociológicas de seu autor. Remotamente, essa artesania foi iniciada no período compreendido entre os anos de 1918 e 1923. Nessa época, Freyre realizou seus estudos de Ciências Jurídicas e Sociais nas Universidades de Baylor, Texas (graduação) e Columbia, Nova York (mestrado).[2]

Esse período de estudos nos Estados Unidos, especialmente na Universidade de Columbia (onde se dedicou às disciplinas de História, Antropologia e Sociologia), tornou-o o único brasileiro de sua geração com acesso aos conhecimentos avançados em ciências sociais desenvolvidos naquele ambiente onde ocorriam profundas transformações urbanas, demográficas e industriais.

Segundo o testemunho do próprio Freyre, o livro Sociologia tem, mais imediatamente, origem relacionada às suas experiências docentes no ensino da Sociologia, especialmente na Universidade do Distrito Federal, instituição onde lecionou no período compreendido entre os anos de 1935 e 1937. [3]

É possível que o trabalho docente no início da carreira intelectual de Freyre, além de investi-lo da condição de portador especializado do conhecimento sociológico entre nós, tenha mobilizado esforços mais sistemáticos para organização de ideias sociológicas que foram dispersamente acessadas no período de estudos nos Estados Unidos.

A base para a publicação do livro foi um precioso conjunto de laudas que resultaram da transcrição de suas aulas na Universidade.[4]

E ainda que Sociologia seja uma versão mais “amadurecida” desses manuscritos, seu conteúdo não deixa de ser um testemunho importante acerca das condições de institucionalização e difusão do conhecimento sociológico naquela instituição.

Freyre procura demarcar com destaque que Sociologia é, de fato, resultado de sua única experiência docente mais ou menos regular numa Universidade no Brasil.Isso fica evidente nas dedicatórias ao livro. Na primeira edição, o autor oferece a obra aos estudantes de Sociologia e Antropologia da Universidade, e a Heloísa Alberto Torres, sua colega na instituição. Na segunda edição, presta homenagem à memória de Roquette-Pinto, que foi também professor da universidade, responsável pelo laboratório de rádio da instituição.

Embora Sociologia seja uma obra única no conjunto da produção intelectual de Gilberto Freyre, esse tipo de esforço pela sistematização didática do conhecimento sociológico não foi isolado, nem mesmo inédito. Somou-se a uma mobilização notável pela formação de um acervo significativo de periódicos, dicionários e manuais de sociologia.

A rigor, esforços para formação desse acervo foram inaugurados por Pontes de Miranda em 1926, com a publicação do livro Introdução à Sociologia.[5]

Não obstante, apenas nos anos 30 do último século esse fenômeno de constituição de um conjunto de manuais sociológicos adquiriu contornos notáveis. Vivia-se, na indústria editorial brasileira, uma espécie de boom de livros didáticos de sociologia.

Compõem esse conjunto de obras os livros: Iniciação à Sociologia (1931) de Alceu Amoroso Lima, Sociologia experimental (1935) de Delgado de Carvalho, e Princípios de Sociologia (1935) de Fernando de Azevedo.[6]

Os livros publicados nesse período são espécies de sínteses enciclopédicas da história do pensamento sociológico. Alguns deles, concebidos à imagem e semelhança de compêndios estrangeiros. Eram, sobretudo, voltados aos alunos das Escolas Normais (que formavam professores) e dos Cursos Complementares (dedicados ao preparo dos alunos para o ingresso nas faculdades).

Diante da enorme repercussão dos livros didáticos de sociologia para a indústria editorial brasileira, após o início das aulas de Gilberto Freyre na Universidade do Distrito Federal, os editores já aguardavam a publicação de seu compêndio sociológico. Prova disso é uma carta enviada a Freyre em 1936, na qual o educador paulista Fernando de Azevedo [7] pediu-lhe que reservasse a publicação do livro resultante de suas aulas na Universidade para a série “Iniciação Científica”da Biblioteca Pedagógica Brasileira, coleção de livros da Companhia Editora Nacional (que, na época, era dirigida por Azevedo) de São Paulo.[8]

Parecia, portanto, ser grande a expectativa em relação à publicação do manual sociológico de um dos mais promissores e jovens cientistas sociais brasileiros, que recentemente havia surpreendido o meio intelectual com a publicação do polêmico Casa grande & senzala.[9]

Freyre, como sabemos, publicou o manual didático apenas nove anos depois do pedido de Fernando de Azevedo. Quais teriam sido as razões que explicam a longa espera dos editores e leitores pelo livro novo de sociologia?

Ao observar a produção bibliográfica de Freyre nesse período, constata-se que não houve um só ano sem que ele tivesse publicado uma obra. Observemos a cronologia:

1936: Sobrados e mucambos
1937: Nordeste
1938: Conferências na Europa
1939: Açúcar
1940: Um engenheiro francês no Brasil
1941: Região e tradição
1942: Ingleses no Brasil
1943: Problemas brasileiros de Antropologia
1944: Perfil de Euclides da Cunha e outros perfis.

Notemos que o autor priorizou a elaboração de obras analíticas e interpretativas em detrimento da formulação de um compêndio didático. A exceção é problemas brasileiros de Antropologia, no qual Freyre dedicou-se à publicação dos manuscritos de suas aulas de Antropologia na Universidade do Distrito Federal (ainda assim, apenas em 1943, cerca de oito anos após a realização do curso na Universidade).[10]

É possível que essa aparente “opção” pelas obras interpretativas esteja relacionada ao processo de formação e amadurecimento do campo das ciências sociais e, também, dos primeiros portadores do conhecimento sociológico entre nós.

Não se deve ignorar que a elaboração de um compêndio científico original requer um esforço de conversão da “prática” interpretativa num “sistema conceitual” passível de ser transmitido a especialistas e futuros especialistas no ramo de conhecimento em questão. Trata-se de uma conversão nada fácil que exige a formação de agentes capazes de realizar essa síntese, de um público leitor especializado e, também, de certo padrão discursivo. E isso só ocorreu de fato, a partir dos anos 1940 no Brasil.

Sociologia aparece, portanto, após notável experiência do autor como analista da realidade brasileira. Freyre escreveu antes sobre receitas, alcovas e regiões do Brasil; elaborou biografias de estrangeiros e brasileiros dedicados à interpretação da realidade social brasileira: parece ter optado por desvendar um pouco do Brasil antes de sistematizar o conhecimento sociológico.

Nesse sentido, o livro Sociologia de Freyre se distingue da primeira “safra” dos livros didáticos da matéria sociológica, redigidos por autores com pou ca experiência na análise social. Sociologia faz parte de novo conjunto de compêndios surgido no Brasil nos anos 1940, do qual Teoria e pesquisa em Sociologia (também publicado em 1945) de Donald Pierson é também um exemplar paradigmático. [11]

De certa maneira, esses dois livros – de Freyre e Pierson –, mais do que mera reconstituição histórica e escolástica das etapas do pensamento sociológico, procuraram realizar síntese original distinta das dezenas de livros didáticos de sociologia que até então ocupavam as estantes das livrarias brasileiras.

Muitos saudaram o aparecimento de Sociologia exatamente pela originalidade e sua capacidade de despertar interesse pela disciplina nova. Aos olhos dos leitores, Sociologia parecia romper com o padrão discursivo da literatura didática na matéria sociológica. Críticos destacavam o fato de que Freyre expôs o conteúdo de maneira saborosa e instigante. Roger Bastide afirmou que a grande qualidade do livro é que seu autor foi capaz de despertar e interessar o leitor.[12]

Anísio Teixeira, igualmente, num comentário pessoal ao autor, destacou a narrativa de Sociologia: “é o primeiro grande livro didático que leio. [...] Com tais livros, Gilberto, se poderia talvez dispensar a escola. Porque o saber precisa, para ser comunicado, de ser tornar assim pessoal, humano, quente, imaginativo”.[13]

O livro interessante é também monumental: a primeira edição de Sociologia tem cerca de 800 páginas divididas em dois volumes. Tantas páginas procuram revelar ao leitor a posição do autor em relação às perspectivas sociológicas atuantes no meio intelectual brasileiro. Freyre se contrapõe ao marxismo, à sociologia cristã, ao evolucionismo mais vulgar.

Nesse sentido, podemos dizer que o livro de Freyre atendia a uma demanda muito distinta daquela que mobilizou os esforços dos autores de compêndios sociológicos que surgiram no período compreendido entre o final dos anos 1920 e a década de 1930. É síntese original, caracterizada pelo empenho do autor em distinguir com cuidado a sua posição no ambiente intelectual e diferenciar a sociologia das outras áreas de conhecimento.

Simone Meucci, mestre e doutora em Sociologia pela Unicamp, é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPR.

Notas:

[1] Souza, J. A atualidade de Gilberto Freyre. In: Kosminski, E.; Peixoto, F.; Lepine, C. (Org.) Gilberto Freyre em quatro tempos. São Paulo: Editora Unesp; Bauru: Edusc, 2003. p. 65-82.

[2] Para compreender o período de estudos de graduação e pós-graduação de Freyre nos Estados Unidos e Europa, ver: Pallares-Burke, M. L. Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São Paulo: Editora Unesp, 2005.

[3] A Universidade do Distrito Federal foi fundada em 1935, a partir de um projeto pedagógico inovador, elaborado pelo então diretor de instrução do Distrito Federal, o educador Anísio Teixeira. Teve, não obstante, uma vida breve: em 1939, durante o Regime do Estado Novo, foi arbitrariamente fechada. Seus alunos e parte do corpo docente foram incorporados à recém-fundada Universidade do Brasil. A história dessa instituição é emblemática do embate entre os educadores e os setores católicos no Brasil nesses período. Sobre a Universidade do Distrito Federal, ver: Barbosa, R. N. de C. O projeto da UDF e a formação dos intelectuais. Rio de Janeiro, 1996. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vicenzi, L. J. B. de. A fundação da Universidade do Distrito Federal e seu significado para a educação no Brasil. In: Fórum Educacional. Rio de Janeiro, v. 10, n. 3, jul./set. 1986.

[4] Os manuscritos de Freyre relativos às suas aulas de sociologia na Universidade do Distrito Federal são mantidos no acervo do Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre. Ver análise desse material em: Meucci, S. Gilberto Freyre e a sistematização da sociologia no Brasil. Campinas, 2006. Tese (Doutorado) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas.

[5] Pontes de Miranda, F. Introdução à sociologia. São Paulo: Pimenta de Melo, 1926.

[6] Amoroso Lima, A. Preparação à sociologia. Rio de Janeiro: Centro D. Vital, 1931. Azevedo, F. Princípios de Sociologia. São Paulo: Nacional, 1935. Delgado de Carvalho, C. M. Sociologia experimental. Rio de Janeiro: Sauer, 1934.

[7] Carta enviada por Fernando de Azevedo a Gilberto Freyre em 9 maio 1936. Acervo do Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre. Recife/PE.

[8] Freyre havia, na época, acabado de publicar Sobrados e mucambos pela Editora Nacional por intermédio de Fernando de Azevedo.

[9] Freyre, G. Casa grande & senzala. São Paulo: Global, 2002. (1ª edição de 1933).

[10] Freyre, G. Problemas brasileiros de antropologia. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1943.

[11] Pierson, D. Teoria e pesquisa em sociologia. São Paulo: Melhoramentos, 1945.

[12] Roger Bastide, Diários Associados, 5 dez. 1945. Recorte do Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre – Recife/PE.

[13] Carta de Anísio Teixeira a Gilberto Freyre, datada de 2 de fevereiro de 1946. Acervo do Centro de Documentação da Fundação Gilberto Freyre – Recife/PE.
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13 de outubro de 2009

Introdução: A Sociologia e as identidades sociais

[Alice Brill, Viaduto do Chá, 1954.
Pirelli / MASP]


[trecho da introdução ao volume Diferenças, igualdade / Heloisa Buarque de Almeida, José Eduardo Szwako (orgs.) — São Paulo : Berlendis & Vertecchia, 2009 — (Coleção sociedade em foco : introdução às ciências sociais)]

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães

Formas de identidade e diferenciação social

"Esta coletânea de textos introdutórios à sociologia faz um recorte particular que é preciso deixar claro aos iniciantes e docentes da disciplina.

O presente volume procurou concentrar-se em cinco categorias – as classes sociais, raças e etnias, gênero, sexualidade e juventude – que permitem entender problemas sociais fundamentais do mundo contemporâneo.

Além disso, essas categorias operam como formas de identidade social que embasam o surgimento, bastante recorrente nos últimos cinquenta anos, de agentes e movimentos sociais responsáveis pela mudança social.

As classes sociais foram introduzidas na sociologia por um precursor da disciplina, Karl Marx, no século 19, quando já era um conceito corrente entre os historiadores e economistas. Em carta a Joseph Weydmeyer de 1852, Marx esclarece o que pensa ser a sua contribuição:

“No que me diz respeito, não me cabe o mérito de ter descoberto nem a existência das classes na sociedade moderna nem a sua luta entre si. Muito antes de mim, historiadores burgueses tinham exposto o desenvolvimento histórico desta luta das classes, e economistas burgueses a anatomia econômica das mesmas. O que de novo eu fiz, foi: 1) demonstrar que a existência das classes está apenas ligada a determinadas fases de desenvolvimento histórico da produção; 2) que a luta das classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) que esta mesma ditadura só constitui a transição para a superação de todas as classes e para uma sociedade sem classes [...].”

As palavras de Marx demonstram claramente o rígido determinismo científico do século 19 em que está inserido. E, ainda, que esta primeira teoria sociológica das classes só faz sentido numa teoria da história mais abrangente (o materialismo histórico). No século 20, boa parte desta teoria já havia sido posta à prova pelo transcorrer da própria história social, inclusive a previsão marxista de uma inevitável revolução proletária nos países mais desenvolvidos da Europa. Nesse mesmo sentido, a filosofia da ciência abandonou os esquemas deterministas rígidos em favor de outras abordagens – instrumentalista, probabilística, compreensiva etc.

Foi neste novo contexto, no fim do século 19, que se fez um grande esforço intelectual para dotar a sociologia de maiores recursos analíticos. Entre os que contribuíram para tanto, podemos citar Ferdinand Tönnies (1855-1936), Georg Simmel (1858-1918) e Max Weber (1864-1920), na Alemanha. Este último autor refinou a noção de classe social como pertencente à esfera da economia, distinguindo-a de associações ou comunidades como os partidos (esfera da política) e os grupos de prestígio. Quanto ao materialismo histórico de Marx, para Weber, este seria apenas um tipo ideal, ou seja, uma construção intelectual que projetava uma trajetória histórica possível, a partir de referências empíricas reais, mas totalmente exageradas.

Mas o fato é que, ao menos na Europa ocidental (em países como Inglaterra, França, Alemanha e, principalmente, Itália), a luta de classes entre trabalhadores e patrões (fossem eles burgueses ou empresas públicas) e também as ações de classe continuaram a marcar decisivamente a vida social e político-partidária. Esses movimentos, junto com as ações do Estado, determinaram, direta ou indiretamente, o desenvolvimento social e histórico. No entanto, o desenvolvimento dos Estados-nação e o aparecimento do nacionalismo enquanto ideologia política contrabalançaram a importância das classes. Ainda assim, durante muito tempo na Europa, a teoria marxista de classes sobreviveu, com pretensões universalistas, junto com a expectativa de que as outras sociedades capitalistas industriais nas Américas e na Ásia desenvolvessem, com o tempo, as mesmas características.

Todavia, nos Estados Unidos, a luta de classes cedeu importância, durante o crescimento industrial, para a competição entre os grupos étnicos, à medida que o mercado capitalista americano crescia baseado principalmente na imigração estrangeira. Junto ao recrudescimento da consciência étnica, cresceu também o racismo contra os povos não europeus, principalmente os de origem africana que buscavam integrar-se na moderna sociedade capitalista norteamericana. [...]"
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7 de outubro de 2009

diferenças, igualdades (col. sociedade em foco)


Berlendis & Vertecchia
editora

Sociedade em foco é uma coleção de introdução à Sociologia e às Ciências Sociais para o ensino médio e os anos iniciais do ensino superior. O objetivo é contribuir para uma compreensão da sociedade contemporânea em sua complexidade.

Parte-se da realidade à nossa volta: os fatos e agentes sociais, seus dilemas, conflitos e desafios. Trata-se de introduzir o leitor aos métodos e abordagens das Ciências Sociais, com exemplos concretos que permitem visualizar e entender as teorias envolvidas.

Este volume, diferenças, igualdade, trata das formas de hierarquia e diferenciação social. O leitor é convidado a refletir sobre alguns dos conceitos centrais da disciplina: classes sociais, raça, gênero, sexualidade e geração.




Berlendis & Vertecchia
Rua Moacyr Pisa, 63
01421-030 | São Paulo - SP
Tel 11 3085-9583
Fax 11 3085-2344
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2 de outubro de 2009

A causa da ciência:

[fotografia: Estação da Luz, 1981.
Antonio Carlos D'Ávila.
Pirelli / MASP]

Política & Sociedade,
Vol. 1, No 1 (2002)

Pierre Bourdieu








como a história social das ciências sociais pode servir ao progresso das ciências

O campo das ciências sociais se distingue dos outros campos científicos na
medida em que cada um dos especialistas está em concorrência não somente
com outros cientistas, mas também com o conjunto de agentes sociais que se
esforçam para impor suas próprias visões do mundo. Ele está assim atravessado
por duas lógicas contrárias, a do campo político e a do campo científico,
que fundamentam princípios de hierarquia opostos. Trata-sede mostrar como
uma ciência social que tem por objeto seu próprio fundamento pode fornecer
os princípios de uma Realpolitik científica cujo objetivo é o progresso da razão
científica. Esses princípios referem-se, por um lado, à epistemologia e à Sociologia
dos campos de produção, quando favorecem uma confrontação de pontos
de vista que se percebem como tais no conhecimento dos determinantes
sociais de suas diferenças. Eles dizem respeito também à transformação da
organização social da produção e da circulação científicas, tanto em escala
nacional quanto internacional, no sentido de um working dissensus fundado no
reconhecimento crítico de compatibilidades e de incompatibilidades explícitas,
estabelecidas cientificamente e não socialmente.

Texto Completo: PDF
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24 de setembro de 2009

a Sociologia como ciência da sociedade


[Estação da Luz, 1981.
Antonio Carlos D'Ávila.
Col. Pirelli/MASP]



A Sociologia é um ofício que se recusa a ver o universo social tal como ele se apresenta diante de nós: definitivo e imutável.

O senso comum, aquela visão herdada e reiterada sobre o mundo social, quer fazer crer que as coisas são como são, isto é: que as desigualdades são naturais, nosso modo de vida é universal, nossa forma de organização social é superior, nossos valores específicos são aplicáveis a tudo ou a quase tudo que existe, as hierarquias são necessárias para que as coisas funcionem, as diferenças culturais nunca são bem-vindas e o poder é legítimo por que é, afinal, o poder estabelecido.

O sociólogo, a fim de pôr em devida perspectiva essas miragens arrogantes, deve ser capaz de superar ao menos duas coisas: o conformismo intelectual – para buscar as causas, as conexões entre as causas e o sentido oculto dos processos e instituições sociais, tornando-os compreensíveis a todos; e seu assombro moral diante dos fatos mais esquisitos, longínquos ou excêntricos, principalmente quando elas estão em desacordo com os seus valores e ideais. É preciso compreender, ao invés de julgar.

Assim, o propósito das Ciências Sociais é procurar dizer como o mundo social é, e não como ele deveria ser. Nesse sentido, a Sociologia não é uma terapia coletiva, que pretende curar a sociedade dos seus males, nem uma engenharia social, que deseja reorganizá-la de um modo mais racional, eficaz ou justo.

Há uma confusão em torno das Ciências Sociais, muitas vezes alimentada e difundida pelos próprios cientistas sociais: a Sociologia teria uma missão, que é, imodestamente, a de consertar o mundo. De acordo com esse entendimento, mais comum e mais persistente do que se imagina, a disciplina seria uma espécie de introdução à discussão sobre os “problemas sociais”. Daí se seguiria, quase que automaticamente, uma tomada de consciência coletiva da desigualdade e da injustiça existentes no mundo. Cumprida essas etapas, deveríamos passar à assistência social (ou, nas visões mais radicais, à revolução social).

A Sociologia, ao contrário, é uma atividade intelectual, não uma atitude moral; é uma disposição crítica, não uma ideologia política. É, acima de tudo, um ponto de vista privilegiado, capaz de examinar e considerar minuciosamente tanto um conjunto de valores quanto um costume, tanto um comportamento quanto uma instituição social ou política, restituindo a eles sua verdade histórica e seu sentido social.

Essa atividade tem um traço específico e é isso o que caracteriza o empreendimento sociológico. A Sociologia, afirmou Émile Durkheim, deve ser capaz de explicar o social pelo social.

Isso não é uma redundância. Significa, em outras palavras, que a cultura, os valores, os costumes, a tradição, os comportamentos, os procedimentos e as instituições devem ser entendidos a partir de suas causas (ou funções) sociais, e não em razão de motivos psicológicos, morais, religiosos, políticos, ideológicos, econômicos, etc. Na realidade, é a psicologia, a moralidade, a religião, a política, a ideologia e a economia que devem ser explicadas pela Sociologia – isto é, pelas condições sociais que as tornam possíveis ou necessárias. Cabe à ciência social, por exemplo, observar à psicanálise que Freud esqueceu-se de uma verdade fundamental, que Édipo era um rei, como enfatizou Pierre Bourdieu. Ou seja, a analogia derivada do mito e sua potência explicativa e curativa dependem antes de tudo do reconhecimento das determinações sociais dos comportamentos individuais.

A introjeção desse modo peculiar de ver e dizer o mundo social exige, como qualquer outra habilidade, treino e técnica. A inclusão da Sociologia nos currículos do ensino médio é a oportunidade para exercitar essa prática desde cedo. A aprendizagem dos conceitos e das teorias sociais é, por sua vez, o pré-requisito indispensável para a aquisição desse método de análise.

Adriano Codato

[Este texto foi escrito como introdução
ao projeto pedagógico da disciplina Sociologia
do colégio Positivo; set. 2009]

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21 de setembro de 2009

sobre o papel do indivíduo na história

[Lewis Hine]




Mais!
Folha de S. Paulo
20 set. 2009

"Um por todos"

JORGE COLI

No Mais! de domingo passado, Boris Fausto lembrou a importância das biografias. Elas foram desconsideradas por estudiosos convencidos de que a história é fundada apenas em grandes movimentos coletivos, com razões e agentes ultrapassando de muito as individualidades.
Ora, o gênero biográfico permite que o historiador se infiltre na cultura de uma época, nos comportamentos sociais amplos, e os ilumine, por assim dizer, de dentro.
Marcados pelas inflexões que os formaram, profissionais da história valorizaram as determinantes teóricas, que tendem, sobretudo nos incautos, a levar as análises para uma forte abstração. A biografia é um antídoto contra esses raciocínios menos concretos, mais mecânicos e esquemáticos.

Como os universitários, de modo geral, desdenharam a biografia, certos jornalistas dedicaram-se a ela. Com espírito rigoroso, com inteligência, com o faro que a profissão refinou, produziram obras de referência. É o caso de Fernando Morais. "Olga" e "Chatô - O Rei do Brasil" são livros necessários para compreender tantos aspectos do que ocorreu no Brasil durante largos períodos do século 20.

Uma coisa, porém, é reconsiderar o valor da biografia, que os historiadores verdadeiramente grandes sempre souberam, e pensá-la como digno meio para o conhecimento.
Outra é acreditar que alguns indivíduos devem ser estudados porque suas ações foram determinantes para os caminhos da humanidade.

Considerar que uma única pessoa possa alterar o curso da história é o velho mito do nariz de Cleópatra. Nariguda, seria menos sedutora; Marco Antônio e Júlio César não se apaixonariam. Os destinos de Roma, do Egito e do Ocidente teriam sido outros.
Que um nariz possa ser responsável por tanta coisa é implausível. A história séria não pode dar valor a uma frivolidade assim. Mas o caso é que ela reduz também todas as ações pessoais à irrelevância do nariz.

Daí os ataques que sofreu Paul Veyne, grande especialista em Antiguidade, com seu livro "Quando o Nosso Mundo se Tornou Cristão" (Texto & Grafia, Lisboa, 2009).

Veyne tem velha formação marxista. No entanto, intuiu que o imperador Constantino [século 4º] foi o único responsável pela cristianização do Ocidente. Apenas ele, como indivíduo. Sua tese, demonstrada de modo admirável, faz tremer as convicções. Historiadores cristãos ou marxistas veem em Constantino um instrumento de algo muito maior. Veyne, ao contrário, percebe nele uma causa. Não contente, lança-se num ensaio teórico provocador e convincente: "A Ideologia Existe?". Na contracapa do livro, suas teses são dissimuladas para não chocar o leitor. Também no título, que disfarça o pivô individual.

Escreve Veyne: "No total, a cristianização do mundo antigo foi uma revolução desencadeada por um indivíduo, Constantino, cujos motivos eram exclusivamente religiosos. Nada teve de necessário, de inelutável ou de irreversível. O cristianismo começou a se impor a todos porque Constantino, sinceramente convertido, favoreceu-o e o sustentou; e porque essa religião estava eficazmente organizada numa igreja. Constantino converteu-se por razões ignotas e julgou que o cristianismo era digno de ser a religião do trono porque sua superioridade religiosa era evidente aos seus olhos; e que o cristianismo, embora minoritário, tinha se tornado o grande problema religioso do século. Foi só por Constantino que a história universal alterou-se de maneira irreversível...".
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13 de setembro de 2009

o ensino de economia (a disciplina) e a crise do capitalismo - II


[Custom-made Havana cigar banded
"Specials for Professor Erhard,"
W. German Economics
Min. 1960. Life]

Folha de S. Paulo 13 set. 2009

Há alternativas, novos temas ou enfoques que devam ser incorporados ao ensino de economia?

Sociedade, instituições e história
LEDA PAULANI

Recentemente, a rainha da Inglaterra visitou a lendária London School of Economics e perguntou aos doutos docentes por que ninguém lograra prever a profundidade da crise que se avizinhava.

Os professores, cultores da teoria ortodoxa, crédulos do mercado e de suas divertidas utopias (autorregulação, eficiência, ótimo social), responderam que, contando embora com as mais brilhantes mentes matemáticas, o cálculo do risco enfocara apenas fatias do mercado. O sistema como um todo não fora considerado.

O que eles não disseram é que, formados na doxa econômica, os economistas jamais conseguiriam fazer esse tipo de análise totalizadora.

A formação hoje dominante põe ênfase apenas na matemática, nas técnicas de modelagem, olhando com enfado quaisquer considerações não passíveis de matematização.

Sociedade, instituições, história não cabem nessa visão, são anticientíficas.

A filosofia também não tem lugar, pois é com fastio igual que se encaram as questões metodológicas.

Economistas heterodoxos se deram conta dessa lacuna na resposta desses professores e lembraram a acusação, feita em 1991, por uma comissão da Associação Americana de Economia, sobre os cursos de pós-graduação em economia, os quais estariam formando "sábios idiotas", treinados na técnica, mas "inocentes" do mundo real.

A crise, porém, não estancará a produção de sabichões. Uma formação que desdenha a mais abrangente e consistente teoria do capital só pode continuar a fazer o que tem feito: vender ideologia como ciência.

LEDA PAULANI é professora titular da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP e autora de "Brasil Delivery" (ed. Boitempo).
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o ensino de economia (a disciplina) e a crise do capitalismo - I


[TIME cover: Ronald Reagan
Sept. 21, 1981

David Hume Kennerly]


Folha de S. Paulo 13 set. 2009

Há alternativas, novos temas ou enfoques que devam ser incorporados ao ensino de economia?

Repor a razão na história
LUIZ GONZAGA BELLUZZO

Ao longo do século 19, a economia abandonou definitivamente os constrangimentos da política e inventou o Homo oeconomicus.

Dotado de conhecimento perfeito, esse ser, produto da mais absurda abstração, busca maximizar sua utilidade ou os seus ganhos, diante das restrições de recursos que lhe são impostas pela natureza ou pelo estado da técnica.

Os sistemas sociais nascidos desse paradigma dominante em economia não dispõem de uma estrutura intrínseca, isto é, esgotam-se nas propriedades atribuídas aos indivíduos racionais e maximizadores, partículas que definem a natureza da ação utilitarista e que jamais alteram seu comportamento na interação com as outras partículas carregadas de "racionalidade".
Os manuais de economia mais badalados acatam as chamadas teorias novo-clássicas, com expectativas racionais.

Elas afirmam que a estrutura do sistema econômico no futuro já está determinada agora. Isso porque a função de probabilidades que governou a economia no passado tem a mesma distribuição que a governa no presente e a governará no futuro. A historicidade da vida social vaza pelo ralo.

Para os que dissentem dessa visão, a economia é um saber que está obrigado a formular suas hipóteses levando em consideração o tempo histórico, dimensão em que se desen- rola a ação humana.

Ela deve se entregar ao estudo do comportamento dos agentes privados em busca da riqueza, no marco de instituições sociais e políticas construídas pelas ações e decisões coletivas do passado, ou seja, pela história.

LUIZ GONZAGA BELLUZZO é economista e professor aposentado da Unicamp. É autor de "Ensaios Sobre o Capitalismo no Século 20" (ed. Unesp).
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12 de setembro de 2009

capitalismo: uma definição histórica

[Portrait of British banker
Nathan Meyer Rothschild.

October 1817. Life]




adriano codato

Capitalismo é, na linguagem marxiana, um "modo de produção".

Marx caracteriza com isso mais uma sociedade (a sociedade burguesa) do que um sistema econômico específico. Isto é, mais uma forma de organização social (e os seus correlatos: uma política burguesa, uma ideologia burguesa) do que um regime definido por certos indicadores econômicos: taxa de investimento, produção per capita, renda global etc.

O início do capitalismo pode ser situado no século XVI, na Europa ocidental. Sua etapa “clássica” foi a etapa industrial (séculos XVIII e XIX) que sucedeu a mercantil (ou comercial). Ela correspondeu a uma revolução na forma de produzir a partir da introdução da máquina a vapor nas fábricas de tecidos na Inglaterra (primeira Revolução Industrial).

No livro mais conhecido de Marx e Engels, O manifesto do partido comunista (1848), onde a expressão “capitalismo” todavia não consta, pode-se ler uma das mais fascinantes – e desassombradas – descrições desse sistema social.

Através da ação da BURGUESIA, essa classe cujo papel histórico foi revolucionário, ficamos sabendo que o que distingue “a época da burguesia”, ou a época capitalista, “de todas as outras épocas anteriores” é uma disposição particular para “revolucionar constantemente a produção, abalar sem cessar todas as condições sociais” e promover “a incerteza eterna e o movimento eterno”. Nesse regime social, em que todas as antigas instituições feudais foram afogadas “nas águas geladas do cálculo egoísta”, nada dura para sempre. Nesse movimento de transformação contínua, “tudo que é sólido desmancha no ar”.

A inovação – tecnológica, científica – sucessiva é, para Marx, um imperativo do próprio sistema, que se orienta pela acumulação infinita do capital, não resultado da livre-iniciativa.

A característica básica desse modo de produção é, conforme o Dicionário do pensamento marxista (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988), a propriedade privada do capital (capital esse que pode assumir a forma de terras, dinheiro, máquinas, fábricas) nas mãos de uma classe, a classe dos capitalistas. Hoje, um elemento importante dessa definição, ao lado da propriedade do capital, é o controle sobre o capital (isto é, o poder de decisão sobre os investimentos, por exemplo).

Outras características a serem agregadas a essa definição e que caracterizam o capitalismo são: produção de mercadorias; universalização das trocas e, portanto, estabelecimento das relações sociais através da mediação do dinheiro; força de trabalho (“mão de obra”) assalariada; ausência de controle dos trabalhadores sobre o processo de trabalho. Veja que “lucro” não é um traço definidor desse sistema.

A definição mais sucinta é possivelmente esta: o capitalismo é um regime onde a produção é coletiva e a apropriação (do que é produzido), privada.

Há duas descrições bem ilustrativas do capitalismo industrial no século XIX na tradição marxista. A etnografia de Friedrich Engels sobre a vida dos operários ingleses: A situação da classe trabalhadora na Inglaterra em 1844 (1845) e o capítulo XIII de O capital (1867), de Karl Marx, intitulado “Maquinaria e grande indústria”.
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