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Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
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9 de abril de 2010

O DEM e a razão escravista

[Mario Cravo Neto.
Mona Lisa, 1989.
Pirelli/MASP]

Folha de S. Paulo, 7 de abril de 2010.
   
ELIO GASPARI

De Cazemiro@edu para Demóstenes.Torres@gov

ILUSTRE SENADOR Demóstenes Torres,
Quem lhe escreve é Cazemiro, um Nagô atrevido. Faço-o porque li que o senhor, um senador, doutor em leis, sustenta que a escravidão brasileira foi uma instituição africana. Referindo-se aos 4 milhões de negros trazidos para o Brasil, vosmicê disse o seguinte: "Lamentavelmente, não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos, mas chegaram..."

Vou lhe contar o meu caso. Eu cheguei ao Rio de Janeiro em julho de 1821 a bordo da escuna Emília, junto com outros 354 africanos. O barco era português e o capitão, também. Fingia levar fumo para o Congo, mas foi buscar negros na Nigéria e, na volta, acabou capturado pela Marinha inglesa. Desde 1815, um tratado assinado por Portugal e Grã Bretanha proibia o tráfico de escravos pela linha do Equador.

Quando a Emília atracou no Rio, fomos identificados pelas marcas dos ferros. A minha, no peito, parecia um arabesco. Viramos "africanos livres". Livres? Não, o negro confiscado a um traficante era privatizado e concedido a um senhor, a quem deveria servir por 14 anos. O Félix Africano, resgatado em 1835, penou 27 anos. Doutor Demóstenes, essa lei era brasileira.

A turma da Emília trabalhou na iluminação das ruas e no Passeio Público. Algumas mulheres tornaram-se criadas. A gente se virou, senador. Havia senhores que compravam negros mortos, trocavam nossas identidades e não nos liberavam. As marcas a ferro nos ajudaram.

Alguns de nós conseguiram juntar dinheiro. Como estávamos sob a supervisão dos juízes ingleses, em 1836 compramos lugar num barco. Dos 354 que chegaram, talvez 60 retornaram à África.

Como doutor em leis, vosmicê sabe que o Brasil se comprometeu a acabar com todo o tráfico em 1830. Entre 1831 e 1856 chegaram 760 mil negros, os confiscados devem ter sido 11 mil, ou 1,5%. Aquela propriedade da Marinha, na Marambaia, onde às vezes o presidente brasileiro descansa, era um viveiro de escravos contrabandeados. Não apenas a escravidão do Império era uma instituição brasileira, como assentava-se no ilícito, no contrabando.

Outro dia eu encontrei o Mahommah Baquaqua, mais conhecido nos Estados Unidos do que no Brasil. Ele foi capturado no Benin, lá por 1840, vendido a um padeiro em Pernambuco e revendido no Rio ao capitão do navio "Lembrança".

Em 1847, o barco fez uma viagem ao porto de Nova York e lá o Baquaqua fugiu. Teve a proteção dos abolicionistas, razoável cobertura jornalística, estudou e escreveu um livro contando sua história (inédito em português, imagine).

Fazia tempo que eu queria perguntar ao Baquaqua por que, em suas memórias, não contou que, de acordo com as leis brasileiras, o seu cativeiro era ilegal. Ele diz que esqueceu, mas que, se tivesse lembrado, não faria a menor diferença.

Senador Demóstenes, a escravidão foi brasileira, assim como é brasileira uma certa dificuldade para lidar com os negros livres. Eu que o diga.

Axé,
Cazemiro

P.S.: Há uma referência ao caso da Emília no artigo "A proibição do tráfico atlântico e a manutenção da escravidão", da professora Beatriz Gallotti Mamigonian, publicado recentemente na coletânea de ensaios "O Brasil Imperial". Que Xangô apresse a publicação de seu livro sobre os "africanos livres" no Brasil.
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5 de janeiro de 2010

Jon Elster e a democracia

[Fazenda de Itu,
1973.

Stefania Bril.
Pirelli/MASP]

ENTREVISTA
JON ELSTER
A
CLAUDIA ANTUNES

Folha de S. Paulo,
17 jun. 2007

Essa entrevista de Elster à Folha, embora antiga, toca em dois pontos importantes, a meu ver: a necessidade de pensar a democracia deliberativa a partir de seus "mecanismos", e não apenas de valores; e a dificuldade do socialismo em manter as pessoas mobilizadas e interessadas em política todo o tempo.

FOLHA - Como vai a democracia no mundo, em sua opinião?
JON ELSTER - Eu considero que hoje só há uma escolha, entre democracia e ditadura; a possibilidade de um governo da elite ou da oligarquia está morta para sempre. Ninguém pode reivindicar superioridade em termos de riqueza, nascimento ou educação. Agora, o que vemos em alguns países como a Rússia é uma forma especial de democracia, que é autoritária. Embora baseada em eleições, é difícil dizer o quanto isso importa. Para uma democracia verdadeira, é preciso ter partidos políticos que se alternem no poder. É o teste para sabermos se estamos diante de um arremedo de democracia ou de uma democracia verdadeira. A Quinta República Francesa só provou ser uma democracia em 1981, quando os socialistas chegaram à Presidência.

FOLHA - Há o argumento de que partidos diferentes governam igual por causa da influência de oligarquias econômicas não eleitas.
ELSTER - Em primeiro lugar, eu não acho que isso se aplique à política externa. Um governo democrata nos EUA possivelmente não estaria numa guerra no Iraque. De maneira geral, há alguma correção no raciocínio de que, numa economia de mercado globalizada, há restrição às ações dos governos. Mas ela é muito ou pouco importante? Depende do país, das políticas. Não dá para generalizar.

FOLHA - O senhor defenderia o voto obrigatório em países onde a abstenção é alta, como os EUA?
ELSTER - Acho que dependeria de quais seriam as sanções para quem não votasse, ou a recompensa para quem votasse. É verdade que existe nos EUA um problema de participação democrática - o último presidente foi eleito por 29% dos eleitores, uma base popular muito pequena. Isso é perigoso.

FOLHA - O senhor diz que chegar a governos estáveis deve ser uma meta dos sistemas eleitorais. Como combinar representação justa e estabilidade?
ELSTER - Com compromissos. Para ter justiça, você pode ter representação proporcional; para ter alguma estabilidade, precisa ter uma cláusula de barreira de 3% ou até 5% dos votos, de modo que os pequenos partidos não possam chegar ao Parlamento. O voto proporcional pode gerar menos estabilidade do que o majoritário, mas pode levar a mais justiça.

FOLHA - O Congresso brasileiro debate a introdução de listas partidárias fechadas. É democrático?
ELSTER - Um sistema em que só os partidos podem designar a ordem dos eleitos é antidemocrático. O sistema ideal tem que combinar algum papel dos partidos na criação das listas mas também a possibilidade de os eleitores modificarem-na.

FOLHA - Que importância o senhor dá ao equilíbrio de poder entre as instituições do Estado?
ELSTER - Tanto a separação dos Poderes quanto a existência de pesos e contrapesos são importantes. Mas nos EUA, por exemplo, há contrapesos demais. O Senado americano é, acredito, uma instituição ridícula por causa do modo como é eleita, dando a todos os Estados o mesmo peso. Hoje, a Alemanha apresenta um bom equilíbrio. Embora tenha um modelo federativo, não dá poder igual a todos os Estados no Senado; há certa proporcionalidade.

FOLHA - O senhor é próximo de proponentes da chamada "democracia deliberativa", que enfatiza o consenso por meio do debate público mais do que a disputa político-eleitoral entre grupos de interesse. Qual a influência do alemão Jürgen Habermas em sua obra?
ELSTER - O meu trabalho sobre a democracia foi de certa maneira inspirado por Habermas. Mas há uma diferença fundamental: Habermas está mais preocupado com princípios normativos da deliberação e eu com os mecanismos de causa e efeito na deliberação e como características institucionais podem melhorar a qualidade da deliberação. Acho que as idéias de Habermas até certo ponto tolhem o debate de fato; quer dizer, as pessoas têm que falar e agir como se fossem "habermasianas".

FOLHA - Como se fossem neutras?
ELSTER - É, imparciais. Isso é o que chamo no meu trabalho de "a força civilizadora da hipocrisia". Então tento usar as idéias de Habermas para explicar o comportamento de pessoas de verdade que são constrangidas pelo meio público. Mesmo se as pessoas estão motivadas apenas pelos seus interesses individuais, as regras e mecanismos do debate público vão forçá-las a justificar suas posições em termos de interesse público. Isso limita o interesse particular, em alguma medida.

FOLHA - O que o senhor acha da idéia da democracia participativa, muito popular na América Latina?
ELSTER - Oscar Wilde disse que o problema do socialismo é que a semana só tem sete noites. Do mesmo modo, a democracia participativa às vezes parece exigir mais compromisso e mais recursos do que é razoável esperar das pessoas.
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16 de outubro de 2006

Revista de Sociologia e Política n. 25 - Dossiê Democracias e Autoritarismos

[caricatura de
Ernesto Geisel, 1982]


Sumário
Rev. Sociol. Polit. n.25 Curitiba nov. 2005

Dossiê Democracias e Autoritarismos
Apresentação: outras abordagens de dois velhos conhecidos
Adriano Codato

Democracias

Por um modelo agonístico de democracia
Mouffe, Chantal

Impasses da accountability: dilemas e alternativas da representação política
Miguel, Luís Felipe

A contribuição de Alain Touraine para o debate sobre sujeito e democracia latino-americanos
Gadea, Carlos A.; Scherer-Warren, Ilse

Participação e influência política no conselho municipal de saúde de Curitiba
Fuks, Mário

Autoritarismos

Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária
Camargo, Geraldo Leão Veiga de

Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia
Codato, Adriano Nervo

A fragilidade do Ministério da Defesa brasileiro
Zaverucha, Jorge

Violência e segurança: um olhar sobre a França e o Brasil
Neme, Cristina

[para acessar este número, clique aqui]
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26 de setembro de 2006

ditadura militar e governo civil

[foto: Encontro do general Geisel
com a seleção brasileira de futebol, 1978. Fonte: CPDOC]


Para uma análise mais extensa e mais aprofundada, acesse o artigo:
Codato, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Rev. Sociol. Polit., Nov 2005, no.25, p.83-106.

Adriano Codato
Gazeta do Povo
, Curitiba (PR),
19 dez. 2004, p. 8.


A controvérsia em torno da abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira é um exemplo modesto de um problema maior: que fazer do nosso passado? Essa não é uma questão “acadêmica” ou assunto exclusivo dos historiadores. Ela diz respeito à forma de controle do Estado pela sociedade.

Em 2005 o Brasil completa vinte anos de governos civis. Quando e como poderemos lidar com a questão das prerrogativas das Forças Armadas no contexto de um regime democrático? O episódio da saída do ministro da Defesa, José Viegas, as declarações do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, a polêmica em torno das indenizações, as notícias sobre a Operação Condor e o Caso Pinochet expuseram à opinião pública um dos pontos mais complicados da última década: o tipo de democracia que temos e a que queremos.

Em que medida os governos dos anos noventa contribuíram para transformar as instituições e as práticas herdadas da ditadura militar (1964-1989) e a cultura política que a acompanhou? Muito pouco. Os minimalistas que me perdoem, mas nossa democracia é uma democracia eleitoral. Isso tem a ver com a história política recente do País e com as opções institucionais dos governos civis.

No Brasil fala-se de “transição” de um regime a outro através de mudanças pontuais introduzidas nas instituições políticas e não de “transformação” do regime ditatorial em outro regime político completamente diferente (por exemplo: democrático). Por que isso? Porque o restabelecimento de formas democráticas de governo, é bom lembrar, configura-se somente como um dos resultados possíveis da transformação dos regimes ditatoriais preexistentes. Em segundo lugar, porque a revogação dos regimes políticos autoritários não é alcançada necessariamente através de sua derrubada (como foram os casos, diferentes entre si, de Portugal nos anos 70 e da Argentina nos anos 80). Ela pode resultar também de processos evolutivos de mudança. A diferença nesse aspecto entre o caso brasileiro e o caso espanhol é eloqüente, ainda que os dois países sejam o melhor exemplo da “transição pela transação”. Enquanto na Espanha a transição política seguiu uma via condicional (cada instituição democrática introduzida no sistema político exigia – condicionava – uma outra instituição democrática), no Brasil a via da mudança política foi seqüencial: foram reintroduzidos certos direitos liberais clássicos, seguindo uma estratégia incrementalista e moderada, com a colaboração da oposição, a fim de evitar os riscos de uma regressão autoritária. A legenda do governo Geisel (1974-1979) foi: uma distensão política lenta, gradual e segura, continuada no governo Figueiredo (1979-1985) sob o nome de “política de abertura”. Esse processo, que somente terminaria no governo Sarney (1985-1990), foi tão demorado que consagrou a suprema ironia da política brasileira recente: nós assistimos a uma fase de transição (1974-1989) que durou mais do que o regime ditatorial propriamente dito (1964-1974).

O que os militares pretendiam promover era uma liberalização do regime ditatorial-militar, e não exatamente uma a democratização do sistema político. A abertura política deveria ser suficientemente ampla para produzir uma nova legitimação do poder do Estado, mas tão gradual e controlada quanto possível para que não desse pretextos nem para o retorno da extrema-direita, dominante no governo Médici (1969-1974), nem abrisse o caminho para uma ofensiva oposicionista (via MDB) que conduzisse à ruptura democrática. Só assim se compreende a estratégia pendular de Geisel: ora à direita (cassações), ora à esquerda (eleições).

Mas esse é o lado político da estratégia. Há que se considerar também o lado militar. Uma das tarefas mais importantes (e difíceis) na mudança do regime foi o gradual desengajamento das Forças Armadas da condução dos negócios de Estado e o seu retorno à condição usual de guardiã da ordem interna (da “paz social”). Um dos principais ingredientes dessa política era o fortalecimento do Presidente da República e a afirmação de sua autoridade sobre os vários grupos e facções que agiam como um poder paralelo dentro do Estado. Como o jornalista Elio Gaspari demonstrou em seu último livro sobre a ditadura, a vitória do Presidente militar sobre a corporação militar deu-se mediante um acréscimo de autoritarismo e não o seu contrário.

Ora, todas as contas feitas, quando se considera a natureza (conservadora) do processo de transição política no Brasil, seus objetivos (restritos) e seus meios (autocráticos), não surpreende o excepcional continuísmo do autoritarismo nas novas formas constitucionais pós-1988; nem o fato de que todo o processo tenha sido dirigido pela mesma associação política. A longevidade da tríade ARENA-PDS-PFL não nos deixa esquecer que não houve substituição dos grupos no poder, mas uma reacomodação no universo das elites.

O governo Sarney foi a expressão máxima desse círculo de ferro que controlou com sucesso a mudança política no Brasil. Recorde-se que as palavras de ordem da Aliança Democrática, “conciliação” e “pacto social”, conseguiram neutralizar tanto os ensaios de oposição (greves de trabalhadores, protestos empresariais, movimentos sociais), quanto a campanha pelas “Diretas-Já”. O resultado foi uma forma de governo previsível, onde o regime de partidos e a rotina eleitoral não pusesse em xeque a “representação política”, nem desse oportunidade para os “excessos” do período populista. A década de oitenta consumou os sonhos dos generais: uma “democracia relativa”.

Como essa história pesa sobre o arranjo institucional (isto é: os partidos, o regime eleitoral, o Estado etc.)? Qual a herança dessas instituições políticas (e da cultura política) sobre os governos dos anos noventa e o atual?

Considere a notável supremacia do Executivo no sistema político brasileiro. Ela se expressa no aumento exponencial de edições e reedições de medidas provisórias. Esse seqüestro de funções governativas que deveriam ser, segundo os princípios liberais, repartidas, se dá com base nas mesmíssimas justificativas “tecnocráticas” da ditadura militar: urgência (trata-se, freqüentemente, de medidas de “salvação nacional”), segredo (as decisões devem causar “impacto”: Plano Cruzado, Plano Collor I, Plano Real) e monopólio da competência técnica (vide, por exemplo, o tratamento dado pelo Executivo à “questão orçamentária” e às emendas “clientelistas” dos deputados). O discurso dominante teima em identificar o Executivo como o foco da “racionalidade” e o Legislativo como a sede do “desperdício”. A contra face dessa extrapolação de competências é a diminuição da capacidade de controle e supervisão do Parlamento. A manutenção de uma relação clientelista do Executivo com a base de apoio do governo e o desequilíbrio da representação eleitoral entre os estados (instituto do “Pacote de Abril” de 1977) tende a agravar esse quadro. Suas conseqüências para o sistema partidário são conhecidas: fragmentação, dispersão e impossibilidade de formação de maiorias estáveis. É exatamente em função da ausência de instituições (partidos, Parlamento) “fortes”, isto é, democráticas, que a cena política tende a aparecer polarizada entre figuras individuais.

Uma segunda dimensão importante da herança institucional da ditadura militar sobre os governos da década de noventa, herança que não só não foi corrigida mas, pior, foi aprofundada, foi a permanência de núcleos de poder específicos no Estado brasileiro dotados de grande independência e nenhum controle político (isto é, parlamentar) ou social (isto é, público). Há três expressões desse fenômeno. Na área econômica, agora como antes, continuou vigorando o esquema do superministério (representado atualmente pela santíssima trindade nacional: o Banco Central, o Conselho de Política Monetária e o Ministério da Fazenda). Na área militar, há três feudos burocráticos intocáveis: o Gabinete de Segurança Institucional (antiga casa Militar), a Agência Brasileira de Informação (ex-SNI) e a Justiça Militar. Por fim, na área empresarial, isto é, naqueles aparelhos de Estado onde se administram os “interesses do mercado”, a regra é o contato direto de representantes influentes com decisores estratégicos, um mecanismo muito pouco transparente. Os “esqueletos do BNDES”, na expressão de Carlos Lessa, são o exemplo.

Por quê isso ocorre? Penso que todo esse “entulho autoritário”, para retomar uma expressão dos anos oitenta, permanece por uma razão básica. Quando se inspeciona a agenda dos governos Collor, FHC e Lula, destacam-se as medidas de “estabilização” e as famosas reformas “orientadas para o mercado”, isto é, privatizações de empresas estatais, desregulamentações de esferas antes vigiadas pelo Estado, controle rigoroso da inflação e do déficit público, redimensionamento dos gastos sociais (nas áreas de educação, saúde e previdência), abertura comercial e financeira etc. Ora, as reformas neoliberais prescindiram de uma verdadeira “reforma política”. Ou melhor: as reformas econômicas tiveram como pré-condição o arranjo autoritário da “distribuição de poderes” e a ausência de responsabilidade dos governantes. Daí que sua implementação não combinou com as exigências de ampliação da cidadania e controle social sobre o Estado, suas burocracias e seus aparelhos de poder.

Há portanto uma complementaridade entre o discurso ideológico (liberal) e as práticas políticas (autoritárias), que se expressa na insistência em dedicar-se a construir somente a hegemonia social do capitalismo neoliberal e não formas novas de legitimação política democrática. Não se compreende a questão militar no Brasil sem uma referência a essa história e à sua solução. Edificar instituições democráticas e práticas republicanas é mais do que garantir eleições periódicas. A Argentina e o Chile já sabem disso.

Referência:
CODATO, Adriano Nervo. Ditadura militar e governo civil. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, cad. Mundo, p. 8, 19 dez. 2004.
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