[foto: Encontro do general Geisel
com a seleção brasileira de futebol, 1978. Fonte: CPDOC]
Para uma análise mais extensa e mais aprofundada, acesse o artigo:
Codato, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Rev. Sociol. Polit., Nov 2005, no.25, p.83-106.
Adriano Codato
Gazeta do Povo, Curitiba (PR),
19 dez. 2004, p. 8.
A controvérsia em torno da abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira é um exemplo modesto de um problema maior: que fazer do nosso passado? Essa não é uma questão “acadêmica” ou assunto exclusivo dos historiadores. Ela diz respeito à forma de controle do Estado pela sociedade.
Em 2005 o Brasil completa vinte anos de governos civis. Quando e como poderemos lidar com a questão das prerrogativas das Forças Armadas no contexto de um regime democrático? O episódio da saída do ministro da Defesa, José Viegas, as declarações do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, a polêmica em torno das indenizações, as notícias sobre a Operação Condor e o Caso Pinochet expuseram à opinião pública um dos pontos mais complicados da última década: o tipo de democracia que temos e a que queremos.
Em que medida os governos dos anos noventa contribuíram para transformar as instituições e as práticas herdadas da ditadura militar (1964-1989) e a cultura política que a acompanhou? Muito pouco. Os minimalistas que me perdoem, mas nossa democracia é uma democracia eleitoral. Isso tem a ver com a história política recente do País e com as opções institucionais dos governos civis.
No Brasil fala-se de “transição” de um regime a outro através de mudanças pontuais introduzidas nas instituições políticas e não de “transformação” do regime ditatorial em outro regime político completamente diferente (por exemplo: democrático). Por que isso? Porque o restabelecimento de formas democráticas de governo, é bom lembrar, configura-se somente como um dos resultados possíveis da transformação dos regimes ditatoriais preexistentes. Em segundo lugar, porque a revogação dos regimes políticos autoritários não é alcançada necessariamente através de sua derrubada (como foram os casos, diferentes entre si, de Portugal nos anos 70 e da Argentina nos anos 80). Ela pode resultar também de processos evolutivos de mudança. A diferença nesse aspecto entre o caso brasileiro e o caso espanhol é eloqüente, ainda que os dois países sejam o melhor exemplo da “transição pela transação”. Enquanto na Espanha a transição política seguiu uma via condicional (cada instituição democrática introduzida no sistema político exigia – condicionava – uma outra instituição democrática), no Brasil a via da mudança política foi seqüencial: foram reintroduzidos certos direitos liberais clássicos, seguindo uma estratégia incrementalista e moderada, com a colaboração da oposição, a fim de evitar os riscos de uma regressão autoritária. A legenda do governo Geisel (1974-1979) foi: uma distensão política lenta, gradual e segura, continuada no governo Figueiredo (1979-1985) sob o nome de “política de abertura”. Esse processo, que somente terminaria no governo Sarney (1985-1990), foi tão demorado que consagrou a suprema ironia da política brasileira recente: nós assistimos a uma fase de transição (1974-1989) que durou mais do que o regime ditatorial propriamente dito (1964-1974).
O que os militares pretendiam promover era uma liberalização do regime ditatorial-militar, e não exatamente uma a democratização do sistema político. A abertura política deveria ser suficientemente ampla para produzir uma nova legitimação do poder do Estado, mas tão gradual e controlada quanto possível para que não desse pretextos nem para o retorno da extrema-direita, dominante no governo Médici (1969-1974), nem abrisse o caminho para uma ofensiva oposicionista (via MDB) que conduzisse à ruptura democrática. Só assim se compreende a estratégia pendular de Geisel: ora à direita (cassações), ora à esquerda (eleições).
Mas esse é o lado político da estratégia. Há que se considerar também o lado militar. Uma das tarefas mais importantes (e difíceis) na mudança do regime foi o gradual desengajamento das Forças Armadas da condução dos negócios de Estado e o seu retorno à condição usual de guardiã da ordem interna (da “paz social”). Um dos principais ingredientes dessa política era o fortalecimento do Presidente da República e a afirmação de sua autoridade sobre os vários grupos e facções que agiam como um poder paralelo dentro do Estado. Como o jornalista Elio Gaspari demonstrou em seu último livro sobre a ditadura, a vitória do Presidente militar sobre a corporação militar deu-se mediante um acréscimo de autoritarismo e não o seu contrário.
Ora, todas as contas feitas, quando se considera a natureza (conservadora) do processo de transição política no Brasil, seus objetivos (restritos) e seus meios (autocráticos), não surpreende o excepcional continuísmo do autoritarismo nas novas formas constitucionais pós-1988; nem o fato de que todo o processo tenha sido dirigido pela mesma associação política. A longevidade da tríade ARENA-PDS-PFL não nos deixa esquecer que não houve substituição dos grupos no poder, mas uma reacomodação no universo das elites.
O governo Sarney foi a expressão máxima desse círculo de ferro que controlou com sucesso a mudança política no Brasil. Recorde-se que as palavras de ordem da Aliança Democrática, “conciliação” e “pacto social”, conseguiram neutralizar tanto os ensaios de oposição (greves de trabalhadores, protestos empresariais, movimentos sociais), quanto a campanha pelas “Diretas-Já”. O resultado foi uma forma de governo previsível, onde o regime de partidos e a rotina eleitoral não pusesse em xeque a “representação política”, nem desse oportunidade para os “excessos” do período populista. A década de oitenta consumou os sonhos dos generais: uma “democracia relativa”.
Como essa história pesa sobre o arranjo institucional (isto é: os partidos, o regime eleitoral, o Estado etc.)? Qual a herança dessas instituições políticas (e da cultura política) sobre os governos dos anos noventa e o atual?
Considere a notável supremacia do Executivo no sistema político brasileiro. Ela se expressa no aumento exponencial de edições e reedições de medidas provisórias. Esse seqüestro de funções governativas que deveriam ser, segundo os princípios liberais, repartidas, se dá com base nas mesmíssimas justificativas “tecnocráticas” da ditadura militar: urgência (trata-se, freqüentemente, de medidas de “salvação nacional”), segredo (as decisões devem causar “impacto”: Plano Cruzado, Plano Collor I, Plano Real) e monopólio da competência técnica (vide, por exemplo, o tratamento dado pelo Executivo à “questão orçamentária” e às emendas “clientelistas” dos deputados). O discurso dominante teima em identificar o Executivo como o foco da “racionalidade” e o Legislativo como a sede do “desperdício”. A contra face dessa extrapolação de competências é a diminuição da capacidade de controle e supervisão do Parlamento. A manutenção de uma relação clientelista do Executivo com a base de apoio do governo e o desequilíbrio da representação eleitoral entre os estados (instituto do “Pacote de Abril” de 1977) tende a agravar esse quadro. Suas conseqüências para o sistema partidário são conhecidas: fragmentação, dispersão e impossibilidade de formação de maiorias estáveis. É exatamente em função da ausência de instituições (partidos, Parlamento) “fortes”, isto é, democráticas, que a cena política tende a aparecer polarizada entre figuras individuais.
Uma segunda dimensão importante da herança institucional da ditadura militar sobre os governos da década de noventa, herança que não só não foi corrigida mas, pior, foi aprofundada, foi a permanência de núcleos de poder específicos no Estado brasileiro dotados de grande independência e nenhum controle político (isto é, parlamentar) ou social (isto é, público). Há três expressões desse fenômeno. Na área econômica, agora como antes, continuou vigorando o esquema do superministério (representado atualmente pela santíssima trindade nacional: o Banco Central, o Conselho de Política Monetária e o Ministério da Fazenda). Na área militar, há três feudos burocráticos intocáveis: o Gabinete de Segurança Institucional (antiga casa Militar), a Agência Brasileira de Informação (ex-SNI) e a Justiça Militar. Por fim, na área empresarial, isto é, naqueles aparelhos de Estado onde se administram os “interesses do mercado”, a regra é o contato direto de representantes influentes com decisores estratégicos, um mecanismo muito pouco transparente. Os “esqueletos do BNDES”, na expressão de Carlos Lessa, são o exemplo.
Por quê isso ocorre? Penso que todo esse “entulho autoritário”, para retomar uma expressão dos anos oitenta, permanece por uma razão básica. Quando se inspeciona a agenda dos governos Collor, FHC e Lula, destacam-se as medidas de “estabilização” e as famosas reformas “orientadas para o mercado”, isto é, privatizações de empresas estatais, desregulamentações de esferas antes vigiadas pelo Estado, controle rigoroso da inflação e do déficit público, redimensionamento dos gastos sociais (nas áreas de educação, saúde e previdência), abertura comercial e financeira etc. Ora, as reformas neoliberais prescindiram de uma verdadeira “reforma política”. Ou melhor: as reformas econômicas tiveram como pré-condição o arranjo autoritário da “distribuição de poderes” e a ausência de responsabilidade dos governantes. Daí que sua implementação não combinou com as exigências de ampliação da cidadania e controle social sobre o Estado, suas burocracias e seus aparelhos de poder.
Há portanto uma complementaridade entre o discurso ideológico (liberal) e as práticas políticas (autoritárias), que se expressa na insistência em dedicar-se a construir somente a hegemonia social do capitalismo neoliberal e não formas novas de legitimação política democrática. Não se compreende a questão militar no Brasil sem uma referência a essa história e à sua solução. Edificar instituições democráticas e práticas republicanas é mais do que garantir eleições periódicas. A Argentina e o Chile já sabem disso.
Referência:
CODATO, Adriano Nervo. Ditadura militar e governo civil. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, cad. Mundo, p. 8, 19 dez. 2004.
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