artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
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20 de agosto de 2011

democracia, arenas decisórias e política econômica no governo Lula

[Brasília.
Frank Scherschel.
Life] 

LOUREIRO, Maria Rita; SANTOS, Fábio Pereira dos; GOMIDE, Alexandre de Ávila. Democracia, arenas decisórias e política econômica no governo Lula. Rev. bras. Ci. Soc.,  São Paulo,  v. 26,  n. 76, jun.  2011 .




RESUMO

O texto analisa as características da política fiscal no governo Lula, enfatizando seu conteúdo e estilo decisório, em perspectiva comparada, ou seja, fazendo o confronto com governos anteriores e ainda entre seus dois mandatos. A análise é contextualizada no quadro dos desafios trazidos pela inserção do país na economia global e pela ampliação das demandas sociais permitidas pela nova ordem democrática. Indica-se que a despeito dos limites impostos pelo mercado financeiro que exigem credibilidade financeira diante dos investidores e, portanto, restrições fiscais e altos níveis de superávits primários, há espaços para que a política fiscal também se oriente para outros objetivos: estímulo ao crescimento e à expansão da demanda interna, por meio de programas de transferência de renda. Isso foi possível, em grande parte, pela ampliação das arenas decisórias governamentais e pela adoção de estilo mais negociado de tomada de decisão.

Palavras-chave: Governo Lula; Democracia; Arenas decisórias; Política fiscal; Burocracia.
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6 de outubro de 2010

Ainda o racismo de classe e as eleições

[Série Sol no Céu da Nossa Casa, 
Sem título, 2007-2008
Vale do Jequitinhonha, MG
Marco Mendes. 
Pirelli/MASP] 

Dois pesos...

Maria Rita Kehl
O Estado de S.Paulo
2 out. 2010

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
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13 de junho de 2010

Voto econômico nas eleições de 2010

[Money Story, 1962
Robert W Kelley. Life] 


Autor(es): Rafael Cortez e Bernardo Wjuniski
Valor Econômico, 7/6/2010

Resultados econômicos desagregados por região oferecem evidências da janela de oportunidades à disposição da candidatura governista.

Há duas variáveis que explicam o potencial da candidatura governista nas eleições presidenciais. A primeira variável é de natureza política e decorre da capacidade de transferência de votos do presidente Lula e da construção de palanques estaduais fortes para mobilizar o nome de Dilma Rousseff por todo País. O segundo pilar decorre do voto econômico. Eleitores tendem a premiar governantes que aumentaram seu bem-estar individual.

O efeito destas duas variáveis não se dá de forma homogênea no Brasil, mas é filtrado pelas fortes diferenças entre as regiões. A seguinte análise tem como objeto discutir as possibilidades eleitorais de Dilma em função dos resultados econômicos discriminados por região. A ideia é identificar janelas de oportunidades para o crescimento da candidatura governista.

As pesquisas eleitorais mais recentes apontam para a influência destas variáveis. O último levantamento do Datafolha mostrou que, embora a candidatura Serra tenha crescido, a comparação com o início dos levantamentos é favorável à candidata do governo. Nossa perspectiva aponta que o resultado final da corrida presidencial será determinado pela capacidade de Dilma em crescer nas regiões Sul e Sudeste. As duas regiões respondem por 58,4% do eleitorado. Se conseguir se aproximar do desempenho de Lula em 2006, Dilma ganha o Planalto.

Do ponto de vista geográfico, as eleições de 2010 devem mostrar a mesma dinâmica estabelecida nas eleições anteriores: controle governista nas regiões Nordeste e Norte contra domínio da oposição na região Sul e Sudeste. A última pesquisa Datafolha mostra que Dilma já ultrapassou Serra na região Nordeste (44% versus 33%), mas ainda tem um fraco desempenho nas regiões Sudeste (-7%) e no Sul (-3%). O crescimento de Dilma se explica pelo comportamento nestas duas regiões. Dilma ganhou 7 pontos no Sudeste e 9 pontos no Sul.

Os dados referentes à massa salarial dos trabalhadores deixam esse cenário ainda mais evidente. Este indicador é importante, pois mede de forma acurada o bem-estar individual. No primeiro mandato do governo Lula, a massa salarial nas regiões Sul e Sudeste cresceu bem abaixo da outras regiões, sugerindo que, de fato, o aumento de renda das regiões Norte e Nordeste se deu essencialmente através das políticas de transferência. Entretanto, no segundo governo, com a retomada muito mais expressiva do crescimento econômico, a forte criação de empregos nas regiões Sul e Sudeste permitiu um forte crescimento da massa, elevando significativamente a média nacional. Esse cenário indica que, apesar da desvantagem atual de Dilma nessas regiões, o discurso baseado na economia tem um apelo maior nestas regiões, quando comparado à eleição anterior. O eleitor não consegue entender que os resultados econômicos não são propriedades de determinado governo, mas resultado de mudanças institucionais de longo prazo. Desta forma, há janela de oportunidades eleitorais para a candidatura governista.

A importância dessa janela para a candidatura governista fica ainda mais clara quando comparados os mesmos resultados com os obtidos nos governos do PSDB. Na primeira eleição de Lula, o fraco desempenho tanto da massa salarial nas regiões Sul e Sudeste facilitaram o discurso de oposição por parte do petista. O peso de variáveis econômicas não foi suficiente para minimizar o desgaste fruto do mensalão. Os resultados do segundo governo Lula dão base para o voto econômico destas regiões. No segundo mandato, entretanto, o resultado econômico nessas regiões foi significativamente pior, o que também contribui para a derrota do partido no pleito presidencial. Nessa linha, os números do segundo governo Lula sugerem que a candidatura governista tem uma situação bem mais favorável do que possuía FHC no final de seu segundo mandado, novamente indicando que o espaço para crescimento de Dilma é mais significativo.

Essa análise não pressupõe um determinismo econômico. Estes resultados precisam ser explorados politicamente para transformar o discurso econômico em votos. O PSDB tem um papel ativo na blindagem deste eleitorado por meio das estratégias políticas. O partido comanda três Estados da região (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) e ainda conta com palanques importantes em Santa Catarina e no Paraná. Há, ainda, o peso do componente pessoal na disputa. Dilma precisa se mostrar uma candidata capaz de garantir a manutenção e a continuidade dessas conquistas, e sua capacidade política de realizar essa sinalização será sua maior dificuldade ao longo da campanha.

fonte: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/6/7/voto-economico-nas-eleicoes-de-2010
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22 de maio de 2010

o bolsa família e a ideologia da preguiça (dos analistas)

[Jean Manzon, 
Estação Rodoviária, 
c. 1950
Pirelli/MASP]


O Bolsa Família deixou de ser a Geni

Caixa Zero
Gazeta do Povo
Publicado em 22/05/2010 |
Rogério Waldrigues Galindo • rgalindo@gazetadopovo.com.br

O programa de renda mínima do governo federal já apanhou muito, e por vários motivos. Quem é contra o Bolsa Família costuma usar alguns argumentos básicos. O mais importante diz que o programa tem apenas função paliativa, e que não resolve o problema da pobreza de verdade. É o argumento de que o programa não funciona. O outro ponto que costuma entrar no debate é o uso político que se faz do benefício: ou seja, a intenção seria usar dinheiro público para montar um imenso curral eleitoral para o governo.

O tempo e os fatos que acabam vindo à tona têm frequentemente mostrado que nenhum dos dois argumentos se sustenta por muito tempo. Quer ver? Comece com dois fatos que foram notícia nesta semana. Um deles tem relação com a funcionalidade do programa. O outro, com seu suposto maquiavelismo político.

Primeiro fato. O Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade acaba de publicar um trabalho mostrando que o número de pobres tem caído de maneira consistente no país nos últimos anos. O levantamento indica que de 2006 para cá o número de pobres no Brasil caiu de 33% para 23% na população. Isso significa 19 milhões a menos de pessoas na linha da pobreza.

A pesquisadora responsável pelo trabalho, Sônia Rocha, afirma que não foram apenas as políticas de transferência de renda que influenciaram aqui. Mas é perceptível que o dinheiro faz diferença na renda dos mais pobres. Atualmente, segundo o estudo, entre as famílias mais pobres, a transferência de renda é responsável, em média, por 18% de tudo o que entra na casa.

Mas e a acomodação? Talvez esse pessoal desista de trabalhar, diz um outro argumento. A Folha de S.Paulo achou, esses dias, beneficiários do programa no interior do Nordeste que não queriam carteira assinada para não perder o benefício. Tratava-se de trabalho temporário e mal pago, numa situação pontual, mas o jornal preferiu o caminho fácil de dizer que essa era a prova de que o programa “dificulta a formalização do trabalho no campo”. Os números oficiais são de que 2 milhões de beneficiários devolveram o cartão por terem conseguido emprego ou melhorado de renda. E 77% dos beneficiários trabalham.

Outro fato importante foi a pesquisa CNT/Sensus que mostrou que José Serra, candidato de oposição na eleição deste ano, tem 33% de intenção de voto entre os beneficiários de programas sociais do governo. É verdade que Dilma Rousseff, do PT, tem mais votos entre esse público, de acordo com o levantamento: são 46%. Mas fica claro que não há um alinhamento automático dos eleitores com o governo em função do programa.

O resumo da ópera é que programas de renda mínima, em primeiro lugar, funcionam, sim, para dar melhores condições de vida da pobreza. Segundo, não há nenhum prova de que, como regra, as pessoas se acomodam por receber R$ 120 do governo (o que seria, inclusive, difícil de se imaginar, a não ser que a teoria venha de alguém que não tenha a mínima ideia de como seria viver com tão pouco). Por fim, a eleição deste ano pode finalmente desmistificar a noção de que o programa é “eleitoreiro”. Até porque qualquer programa que melhore a vida das pessoas mais pobres, que obviamente precisam de ajuda emergencial, por esse raciocínio, poderia ser definido como populista. É um argumento que impede o governo de ser solidário com os mais pobres.

Os fatos, de qualquer maneira, são tão evidentes, que, ao contrário do que alguém poderia imaginar, não haverá candidato neste ano aderindo ao discurso fácil de que o Bolsa Família é populista e sem efeito. O programa já mostrou a que veio. Ajudou a tirar milhões da pobreza. Agora, o caminho natural é se transformar em política de estado, enterrando de vez as dúvidas sobre as intenções por trás do benefício.

Serviço: A pesquisa foi realizada entre os dias 10 e 14 de maio, em 136 municípios de 24 estados. Foram ouvidas 2 mil pessoas. A margem de erro é de 2,2 pontos porcentuais, para mais ou para menos. A pesquisa CNT/Sensus foi registrada no TSE com o Número 11.548/2010.
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22 de dezembro de 2009

A volta da mobilidade social

[Série Mar de Homens, 2001.
Redonda, CE.
Roberto Linsker.
Pirelli/MASP]

MARCIO POCHMANN

Folha de S. Paulo
18 dez. 2009.

A mobilidade social representou um dos principais charmes do desenvolvimento capitalista no Brasil. Desde a década de 1930, observa-se que a maior expansão econômica acabou sendo acompanhada por importante movimento de ascensão social. Mas isso não significou, porém, um processo homogêneo para toda a população. Ainda que desigual, a mobilidade social inter e intrageracional permitiu que, em geral, a maior parte da população registrasse melhoras relativas no padrão de vida.

Uma boa imagem da ascensão social desigual do passado pode ser a da subida de pessoas em um determinado edifício, com uma parcela pequena tendo acesso pelo elevador e a maior parte subindo gradualmente pela escada. Assim, os filhos dos ricos ficavam mais ricos que seus pais, bem como os filhos dos pobres se tornavam menos pobres que seus pais.

Tudo isso, contudo, sofreu forte impacto a partir da crise da dívida externa (1981-1983), quando o país abandonou o projeto de industrialização nacional. O resultado foi o ingresso numa nova fase de baixo dinamismo econômico que terminou impondo, por consequência, o descenso na antiga trajetória de mobilidade social.

A década de 1990 estabeleceu, de forma intensa, a maior dificuldade da progressão social, tornando complexa a reprodução dos filhos em melhores condições do que seus pais. Nesse sentido, a expressão de um país com a estrutura social congelada ganhou maior dimensão.
Essa trajetória de relativa imobilidade apresentou significativa inflexão a partir de 2005, quando a ascensão social voltou a fazer parte da vida de milhões de brasileiros. Com isso, a estrutura social brasileira recuperou novamente o movimento de passagem de segmentos sociais de baixa renda para estratos de rendimentos intermediários e superiores.

Entre 2005 e 2008, por exemplo, o segmento de baixa renda, que representava quase 33,7% da população nacional, passou para apenas 26% dos brasileiros. No estrato de rendimento intermediário, registra-se a passagem de 34,9% para 37,4% da população, enquanto o segmento de renda superior saltou de 31,5% para 36,6% no mesmo período de tempo.

Destaca-se também que o desempenho recente da mobilidade social ainda se manifesta de forma desigual. Mais de dois terços dos que ascenderam socialmente são majoritariamente não brancos, residentes na região Nordeste e em pequenas cidades, com emprego assalariado, não necessariamente formal, e de baixa escolaridade. Também tem importância o acesso aos mecanismos de garantia de renda, que têm permitido melhorar a condição de vida das faixas etárias precoces e mais avançadas.

Para quase um terço da população com maior avanço social, contudo, as características pessoais se apresentaram diferenciadamente. De maneira geral, os segmentos populacionais mais beneficiados são brancos, moradores da região Sudeste, sobretudo em regiões metropolitanas, com emprego assalariado formal, maior escolaridade e pertencentes à faixa etária de 25 a 44 anos de idade.

Ademais da distinta caracterização pessoal dos segmentos populacionais incluídos pelo movimento de ascensão social, observa-se a importância de quesitos habitacionais presentes entre os indivíduos mais dinâmicos.

Nota-se, por exemplo, que entre os diferentes segmentos populacionais com acesso ao saneamento e à habitação própria estão os mais dinâmicos.

Outro aspecto que acompanha o movimento recente de ascensão social tem sido a ampliação do consumo de massa. No caso de bens de consumo duráveis com maior valor unitário, como no caso da geladeira, fogão, televisão e telefone, observa-se o sentido da homogeneização do padrão de consumo, salvo ainda pela diferenciação na posse de automóvel, máquina de lavar e telefone celular. Este último, por sinal, registrou mais forte difusão entre a população.

A volta da ascensão social no Brasil aponta para uma sociedade de consumo de massa, ainda que constrangida pela desigualdade na mobilidade. De todo modo, o Brasil deixa para trás os sinais de uma estrutura social piramidal para assumir cada vez mais a figura de uma pera. A formação de novas elites, como aquelas de raça não brancas, indica a força do protagonismo de sociedade plural em movimento.

MARCIO POCHMANN, 47, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado da Unicamp.
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16 de outubro de 2009

Notas sobre a composição dos ministérios e cargos de confiança na Nova República

[Oca, 2001. São Paulo,
Nelson Kon. Pirelli / MASP]


trabalho a ser apresentado no Encontro da Anpocs 2009
GT 18: Elites e instituições políticas


Camila Romero Lameirão
(UFF, Universidade Federal Fluminense) e
Maria Celina D'Araujo (FGV-RJ, Fundação Getulio Vargas)

A composição dos ministérios e dos cargos de confiança do poder Executivo revela muito sobre a natureza do governo: suas alianças partidárias, programa polí­tico e econômico, orientação ideológica e compromissos sociais e setoriais. Permite ainda avaliar em que medida a elite dirigente de cada governo se diferencia ou se assemelha. Pretendemos elaborar um trabalho comparativo com dados sobre filiação partidária, ví­nculo associativo, ní­vel de escolaridade, e experiência polí­tica e profissional dos ministros que compuseram a presidência de Sarney a Lula. Além disso, temos como objetivo cotejar essas informações com os resultados obtidos na pesquisa que realizamos com uma amostra de cargos de DAS 5 e 6, e de NES do governo Lula, procurando avaliar o perfil, as competências especí­ficas, e os padrões de recrutamento que definem esses dois conjuntos de dirigentes.

Os estudos sobre a atuação de partidos no Congresso e sobre as relações entre Executivo e Legislativo têm avançado no Brasil nos últimos anos. Da mesma forma, a pesquisa em sociologia eleitoral têm se aprimorado produzindo excelentes análises sobre perfil do eleitor, trajetórias partidárias, lógicas, constâncias e volatilidade do voto.

No entanto, conhecemos pouco sobre o funcionamento do Executivo. A retomada da democracia no Brasil levou a uma necessária reflexão sobre o voto e os representantes, mas relegou os estudos sobre certas esferas de poder que não estão diretamente conectadas ao voto (não são cargos eletivos), mas que são ocupadas por pessoas com fortes laços dentro do sistema de poder. Este é o caso dos Ministérios e também dos cargos de confiança do tipo “Direção e Assessoramento Superior” (DAS) e de “Natureza Especial” (NES), que são de livre provimento. Vale lembrar que no organograma do Executivo, os postos de DAS níveis 5 e 6 estão logo abaixo dos ministros e secretários-executivos, desempenhando funções estratégicas de direção, coordenação e assessoramento das políticas e projetos desenvolvidos no âmbito dos órgãos governamentais.

Sendo assim, em geral, sabemos pouco sobre a elite que chega ao poder a partir de 1985, sobretudo nos cargos executivos. São ainda escassas as pesquisas que buscam avaliar os efeitos da coalizão e alianças de governo na composição do Ministério e nas políticas e decisões desenvolvidas no Executivo. Muito menos sabemos em relação aos cargos de confiança. Não há trabalhos que afiram em que medida esses postos se constituem em objeto de negociação no âmbito da coalizão governamental. Os poucos trabalhos acadêmicos existentes oferecem, no entanto, uma perspectiva de análise abrangente que não se reduz à pura crítica da politização desses postos de direção. Ao contrário, prescindindo de uma visão dicotômica que contrapõe o espaço da política ao da burocracia, destacam o hibridismo que caracteriza o papel e as atribuições dos cargos de DAS e, consequentemente, as competências específicas de direção requeridas. Loureiro e Abrúcio (1998c) discorrem, então, sobre um profissional híbrido que “é responsável tanto pela gestão eficiente quanto por atender aos objetivos políticos da agenda governamental”.

É importante destacar esse ponto, pois as discussões que tratam da relação entre política e burocracia no Brasil tradicionalmente tendem a vê-la sob o prisma do clientelismo e do insulamento. Nesta visão, a composição e a organização burocrática deveriam se orientar por princípios técnicos e critérios de impessoalidade, hierarquia e meritocracia, não devendo se deixar contaminar por influências políticas que resultariam em práticas clientelistas e personalistas. Esse entendimento pressupõe o insulamento da burocracia em relação à dinâmica política e se ampara na concepção weberiana da moderna burocracia. Como ressalta Pacheco (2002), “essa leitura de Weber levou tanto a um forte maniqueísmo – os técnicos são ‘bons’ e os políticos são ‘maus’ – como uma despolitização dos objetivos da Administração Pública”. Todavia, é a partir do próprio Weber que se formula um contraponto a essa visão, considerando sua defesa de uma complementaridade entre políticos e burocratas para a garantia da ordem democrática através de mecanismos de controle mútuo e, sobretudo, do controle político sobre a burocracia.

Por outro lado, a literatura demonstra que na República de 1946 havia uma certa regularidade no preenchimento de certas pastas. A área econômica, por exemplo, era destinada a quadros do Partido Social Democrático (PSD) de São Paulo, a de Justiça ao PSD de Minas Gerais.

O papel de cada pasta, por sua vez, ia além de suas evidentes atribuições. A da Justiça foi eminentemente uma área política, o espaço de articulação de campanhas e acordos político-eleitorais. A de Transporte denotava uma grande capacidade para compor com bases sociais e regionais pela facilidade em empregar um grande contingente de trabalhadores em obras públicas e por mobilizar vultosos recursos financeiros. Em geral, os Ministérios eram espaço de atração financeira, mas traziam a tônica do prestígio e da notoriedade pública. Foram por muito tempo um fórum de personalidades da vida política nacional. Muitas das atribuições de várias pastas foram, ao longo da ditadura militar, concentradas na Casa Civil, tendência que se fortaleceu com os governos da Nova República.

No contexto atual do presidencialismo brasileiro, as nomeações para o Ministério são importante fator de coesão política e de garantia de governabilidade. O Brasil, depois da ditadura militar, tem praticado o que se chama de “presidencialismo de coalizão”. Isto significa a existência de um arranjo político e eleitoral em que nenhum partido consegue eleger um candidato à Presidência e, ao mesmo tempo, formar sozinho maioria parlamentar. Ou seja, dadas as características dos sistemas eleitoral e partidário brasileiros, um presidente, qualquer que seja sua filiação partidária, só conseguirá governar negociando com uma coalizão parlamentar de apoio, o que implica automaticamente a partilha dos cargos no Executivo entre partidos e regiões.

Desse modo, assim como parte dos titulares dos ministérios, os postos de DAS também estariam sujeitos a indicações dos partidos e aliados da coalizão de governo. De fato, no Brasil, com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, nenhum presidente da República, a partir de Fernando Collor de Mello (1990-1992), foi eleito com o seu partido dispondo de maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Neste contexto, os últimos governos, sobretudo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003), formaram sistematicamente alianças partidárias e em contrapartida concederam aos membros e partidos da coalizão espaço no gabinete presidencial.

Entendemos como imprescindíveis estudos que tratem de dados empíricos sobre a elite dirigente que compôs os sucessivos governos da Nova República. Com isso, será possível avaliar as lógicas que norteiam a composição dos Ministérios no presidencialismo de coalizão brasileiro, bem como comparar os atributos sociais, profissionais e políticos da elite dirigente em cada governo. Temos a intenção de contribuir para esse campo de pesquisa com a apresentação de dados empíricos sobre o conjunto de ministros da Nova República, e os ocupantes de cargos de DAS 5 e 6, e de Natureza Especial, especificamente dos dois mandatos do presidente Lula. Exporemos informações sobre o perfil educacional, profissional e sociopolítico desse grupo, procurando compará-los a fim de avaliar as competências específicas, e os padrões de recrutamento que definem esses dois conjuntos de dirigentes.

para ler o texto completo
clique aqui [pdf]
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4 de junho de 2009

a reeleição e as falácias dos políticos


[Italian fascist dictator Benito
Mussolini looking through binoculars
on deck of war ship. 1940. Life]

Adriano Codato e
Luiz Domingos Costa

O apoio “popular” à possibilidade do Presidente Lula disputar já no ano que vem mais um mandato e a expectativa, entre alguns políticos da base, de que ele vença facilmente a eleição dá o que pensar.

Há pelo menos dois problemas que se impõem por si mesmos e que podem ser abordados a partir desse episódio: os valores do campo político e as interseções entre o campo político e o campo jornalístico. Porque o assunto é comprido, vamos falar aqui só do primeiro.

Existem três falácias embutidas no argumento a favor do continuísmo. A primeira falácia diz respeito ao “clamor popular”.

O conceito de democracia supõe, evidentemente, que se atenda à vontade dos eleitores. Mas não é apenas isso caracteriza o regime liberal-democrático. Outros elementos são fundamentais na definição e na prática da democracia ocidental. Dentre esses, a alternância no poder e a estabilidade das regras do jogo.

É necessário que um candidato derrotado nas urnas entregue o governo aos seus opositores quando estes forem vencedores. Paralelamente, a oposição tem de acreditar que um governante, na iminência de perder seu mandato nas urnas, não vire a mesa e desfaça o acordo legal e tácito de que o próximo vencedor assume o poder. Este tipo de confiança, fundamental para garantir a alternância no poder, só existe com base na fé de todos na legalidade e na legitimidade das regras do jogo e na continuidade das mesmas.

Por isso, um líder ou um partido que altera as regras do jogo em benefício próprio sabota dois princípios fundamentais da democracia representativa. Isso abala tanto a confiança que a classe política deposita no tipo de jogo (a democracia como o melhor método de seleção de lideranças), como a confiança popular na natureza do jogo (a democracia como um valor político generoso).

Os políticos e os partidos intuem que a chance de ganhar eleições e assumir o poder é uma das principais garantias não só de que continuem disputando, mas que haja disputa (isto é, democracia). Paradoxalmente, a democracia, como bem público, é o resultado indireto do interesse privado dos políticos no sucesso da própria carreira.

A manutenção das regras e a mudança de líderes são fundamentais para assegurar não só a reprodução política dos políticos profissionais, mas a legitimidade do sistema. Bem ou mal, essa é a causa da estabilidade democrática. Ela não é só uma tara jurídica ou uma miragem liberal, mas uma garantia contra eventuais tiranias, populares ou não.

A segunda falácia diz respeito à submissão do tema da reeleição a um plebiscito popular agora. Há aqui um problema menos de forma (o plebiscito como método de consulta) do que de oportunidade.

Plebiscitos, consultas periódicas, mandatos mais curtos, mecanismos mais eficientes de controle sobre os representantes, eleições para postos político-administrativos e judiciários, formas de deliberação alternativas à parlamentar não são práticas estranhas a democracias consolidadas. Nem foram inventadas pelo socialismo bolivariano, como imaginam, escandalizados, os conservadores. Há muitos mecanismos e mecanismos muito diferentes de participação cívica. Nos EUA, em alguns estados elege-se desde magistrados das cortes estaduais até o administrador regional da prefeitura. Na França, o cargo de vereador recebe uma remuneração simbólica (pouco mais de 200 euros), as reuniões são à noite, uma vez por semana e após o trabalho. Os conselheiros municipais se especializam em um assunto apenas e têm de prestar contas das suas decisões, além de ouvir as associações civis envolvidas em cada questão. Por exemplo.

No Brasil, junto com a consolidação democrática consolidou-se a idéia errada na “opinião pública” e naqueles que fazem a opinião pública que democracia é igual a eleições periódicas. E só. E que os mandatos executivos e legislativos são propriedade dos políticos de carreira. O fato de eles usarem essas posições de poder para, na maioria do tempo, investir na própria carreira e o fato dos eleitores se esquecerem em quem votaram em menos de seis meses depois da “festa da democracia” dá bem a medida do caráter limitado do regime democrático entre nós.

Um plebiscito agora e para isso – a emenda da reeleição – é oportunismo. Por que plebiscitos e outras formas de mobilização da opinião pública não são utilizados com mais freqüência? Parece óbvio que os parlamentares que insistem nesse assunto estão preocupados exclusivamente com a manutenção dos privilégios que dispõem: cargos na burocracia do executivo e posições de comando no legislativo. Além das vantagens materiais consideráveis derivadas dessas primeiras.

A terceira falácia diz respeito ainda ao plebiscito popular. Há na proposta também um problema de conteúdo: o “popular” como metro da opinião pública.

Se decidirmos estender os mandatos de cada presidente com alta popularidade no Brasil (de dois para três, de três para quatro etc.), correremos dois riscos. Manter um único presidente por períodos muito longos, experiência que dificilmente dá certo. O segundo risco é transferir o poder de deliberação não para o eleitorado, mas para os institutos que medem e as empresas que divulgam a “popularidade”. Quem já fez pesquisa sabe como pesquisas podem ser feitas. Além de tudo, sempre pode surgir a mesma proposta, só que pelo verso: a destituição de governantes por falta de apoio “popular” ou por baixos índices de aprovação da “opinião pública”. Desnecessário lembrar como a opinião pública é produzida.

Portanto, a emenda da reeleição não tem nada a ver com “popularidade”. Essa manobra oportunista e casuísta só pode surgir de um mundo político que gira em falso, se preocupa demais em legislar sobre suas próprias vantagens e privilégios, e, como confessou um ilustre parlamentar, se lixa para a opinião pública. O distinto público só é chamado a opinar em plebiscitos quando se tem certeza de que o resultado será favorável a tal ou qual facção política.

Assim, o que está em jogo hoje não é responder ao apelo geral de uma fictícia opinião pública, mas aos interesses particulares do campo político. Raciocínio idêntico poderia ser aplicado à “emenda da reeleição” do doutor Fernando Henrique. Que os políticos que apoiaram esta estejam contra a emenda atual não é uma incoerência. É um sintoma da falta de responsabilidade de toda a classe política com os princípios e pressupostos da democracia liberal.
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6 de dezembro de 2006

A lógica política e o segundo governo Lula


Artigo publicado na Revista dos Bancários Curitiba, n. 26, dez. 2006.

Luiz Domingos Costa* e
Adriano Codato**


O processo de institucionalização da democracia no Brasil tem sido acompanhado por um equilíbrio entre as principais agremiações partidárias no Congresso Nacional. A hegemonia dos partidos provenientes do período ditatorial-militar (o PMDB e o PFL), medida pelo número de cadeiras conquistadas a cada eleição, vem sendo atenuada pelo crescimento das bancadas de outros partidos. PSDB, PT, PP e PSB já são forças expressivas na arena legislativa. Parece ter deixado de ser a regra da política congressual partidos com bancadas superiores a 100 cadeiras na Câmara dos Deputados. Os maiores partidos, os mais competitivos, os mais votados detêm entre 50 e 100 cadeiras. As eleições deste ano confirmam essa tendência ao equilíbrio. A distribuição da força parlamentar entre as diferentes agremiações impede a existência de um sistema de partido dominante. O multipartidarismo é uma prova de que as forças políticas não cabem num regime artificialmente bipartidário.

Mas o que isto quer dizer na prática sobre a correlação de forças entre os partidos no Legislativo nacional? E como serão as conexões dos partidos políticos com o Executivo federal?

Com toda certeza, a lógica das coalizões multipartidárias para formação de maiorias mais ou menos sólidas no parlamento (as “alianças” políticas) continuará a predominar. Esta é a regra do presidencialismo brasileiro. Ou seja: à medida que nenhum partido político é numericamente hegemônico no Congresso, a possibilidade de aprovação de uma série de proposições do Executivo – principalmente as reformas constitucionais – depende necessariamente da formação de amplas coalizões entre vários partidos, independentemente de suas “ideologias”. Assim se constrói a “base de apoio” ao Executivo e a “governabilidade”.

Como se sabe, mas nunca é demais lembrar, as coalizões estão baseadas em trocas políticas: o presidente negocia a distribuição de cargos entre os partidos (ministérios, diretorias, assessorias etc.), que por sua vez irão apoiar o presidente nas votações no Congresso em matérias de interesse do Executivo. Sem este esforço – de resto tão malvisto pela opinião pública – os governos teriam de pactuar sua agenda caso a caso com os líderes dos partidos políticos. Ou teriam de mobilizar a opinião pública a cada votação decisiva, apelando para o estoque de capital político acumulado na eleição presidencial. Isso pode gerar vários problemas de coordenação política. No limite, isso tende a levar, quando o presidente for impopular ou quando as medidas forem mais ousadas, à “paralisia decisória”: isto é, o Executivo perde a capacidade de operar e implementar suas decisões. Reina, mas não governa.

Recorrer a alianças partidárias para a formação de governos (a composição do ministério) e de maiorias de sustentação política (a base governista) é uma prática usual, quer se trate de sistemas presidencialistas ou parlamentaristas. Aqui no caso a única coisa que muda é a forma de escolha do presidente, pois no primeiro o presidente é eleito diretamente pelo voto popular, e no segundo a escolha se dá pelos representantes eleitos para o parlamento. Mas a necessidade de sustentação política é idêntica e maneira pela qual ela é obtida é a mesma. Nada se dá “em torno de um programa de governo”. Os presidentes brasileiros aprenderam que não há almoço grátis. Sua força política ou seu poder pessoal, resultado do sucesso eleitoral e dos 58 milhões de votos de Lula, tem de se traduzir politicamente em força parlamentar.

As eleições desse ano, a exemplo das eleições de 2002, produziram uma Câmara dos Deputados razoavelmente equilibrada. As bancadas dos principais partidos variam entre 65 parlamentares eleitos (PSDB e PFL), a algo em torno de 85 cadeiras (caso do PMDB, com 89 cadeiras e do PT, que conseguiu eleger 83 representantes, embora tenha obtidos mais votos).

A despeito do crescimento ou do recuo de algumas siglas, a configuração das bancadas governista e oposicionista passa necessariamente pelos rumos tomados pelo PMDB, que além de ter direito à eleição do presidente da Casa (por ter conseguido a maioria dos parlamentares), é uma fonte de complicação adicional para a lógica do “presidencialismo de coalizão”. O partido possui uma bancada heterogênea, conflitante, ruidosa e, principalmente, consciente de seu poder de veto. Além disso, há uma dificuldade adicional. O PMDB abriga facções regionais de difícil acomodação.

Na conjuntura atual, o PMDB figura como o partido com maior poder de chantagem sobre o governo Lula, por ter feito a maior bancada para a Câmara Federal (cerca de 20% do total de cadeiras). Assim, a coordenação política do presidente terá de satisfazer o apetite do PMDB por ministérios, ao mesmo tempo em que terá de negociar pontualmente as iniciativas e proposições do Executivo, tendo em vista a heterogeneidade da bancada peemedebista. A “concertação nacional”, como quer Tarso Genro, passará necessariamente pela acomodação dos “dissidentes” do partido, geralmente lideranças regionais interessadas em recursos do orçamento ou outras ofertas. É sintomático, por exemplo, que Michel Temer (presidente do PMDB) tenha afirmado que o “partido é majoritariamente governista”, mas advertido sobre a falta de “alinhamento automático” da ala não-governista do partido com o Lula.

Independentemente destas questões, a entrada do PMDB na coalizão de apoio ao governo Lula neste segundo mandato coloca a bancada governista em patamares próximos dos 50% de cadeiras na Câmara. Considerando o previsível ingresso dos pequenos partidos na base do governo na retomada dos trabalhos legislativos, este percentual poderá ser, em fevereiro de 2007, em torno de 60%. Dependendo do grau de coesão do pacto firmado (que dependerá dos grupos partidários premiados com ministérios e outros cargos), o governo Lula poderá contar com algum grau de previsibilidade nas votações e evitar fracassos nas matérias que submeter ao Legislativo. Mas sempre lembrando, como ensina a sabedoria política nacional, que tudo passa pelo PMDB. E que o PMDB é uma legião de forças diferentes.

*Luiz Domingos Costa é graduado em Ciências Sociais pela a Universidade Federal do Paraná e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira.

**Adriano Codato é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira.

29 de outubro de 2006

Entrevista: É preciso mexer antes no modelo econômico


[Clube do Congresso. Athos Bulcão]

Adriano Codato
Gazeta do Povo, 29 de outubro de 2006


ENTREVISTA-Falta de debate sobre política neoliberal é “desconcertante”, diz Adriano Codato, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná


As reformas estruturais vêm em segundo lugar.
Enquanto o país continuar a ser uma espécie de cassino,
com juros exorbitantes para os especuladores internacionais,
o setor produtivo continuará estagnado e
a discussão sobre as reformas é perda de tempo.

Essa é a opinião do cientista político Adriano Codato,
professor da Universidade Federal do Paraná.


Gazeta do Povo – Como você avalia o debate sobre as reformas?
Adriano Codato – Antes de mais nada, é preciso notar que as tais reformas “estruturais” imaginadas como a solução para as taxas medíocres de crescimento econômico são reformas que dizem respeito apenas aos trabalhadores e aos seus direitos. O ponto, eu penso, é a relação que há entre o modelo econômico e o sentido, ou a atual falta de sentido, das reformas tributária, sindical, trabalhista e previdenciária. Como assim? Se não se olha a floresta, as árvores parecem desproporcionalmente grandes. Sem ver como funciona o modelo econômico brasileiro não se compreende que, ao menos por ora, a reforma tributária é disfuncional e as reformas trabalhista e sindical são irrelevantes. E a reforma previdenciária só é importante porque é mais um gasto social que retira recursos do sistema financeiro.

O que deve vir, então, antes das reformas?
Parte-se do diagnóstico, difundido à exaustão durante década e meia de hegemonia ideológica neoliberal, que todos os gastos sociais – e aí eu incluo os direitos trabalhistas – são despesa improdutiva; por outro lado, renda, juros e lucro são efeitos positivos de uma dinâmica econômica saudável. Pois bem, foi isso que levou o Brasil a pagar em 6 anos, R$ 1,2 trilhão de juros sobre a dívida pública. Que este tema não seja o centro do debate quando se fala sobre a suposta etapa desenvolvimentista do novo ciclo econômico é desconcertante.

Por que esse enfoque é mais importante que o das reformas?
A taxa de juros e mais meia dúzia de princípios econômicos sagrados, como metas estritas de inflação, livre variação cambial, superávit primário elevado, etc., paralisam a economia e arrasam com o setor formal. Os trabalhadores com-carteira não tem mais tanto peso nem político-eleitoral, nem econômico-social, os sindicatos que os representam, e que seriam os porta-vozes de suas reivindicações, perderam representatividade porque se submeteram ao governo Lula. A Previdência Social custa um terço do que se paga de juros ao ano. Ora, a forma de contornar os “problemas” derivados do “excesso” de direitos trabalhistas, de uma estrutura sindical arcaica e de um sistema de seguridade social estropiado foi justamente torná-los desimportantes.

Em resumo, se a política econômica não mudar, essas reformas teriam apenas efeitos impopulares?
As reformas são mais antipáticas, a exemplo das privatizações, que impopulares, no sentido próprio do termo. O “povo”, isto é, a grande maioria da sociedade brasileira, não paga imposto de renda, não é sindicalizada, não recebe o décimo-terceiro, nem se aposenta com salário integral. Elas teriam um impacto sobre a classe média e os trabalhadores do setor de serviços.
Por que Lula não mudou a política econômica como prometeu?
Seis meses antes da eleição de Lula, em 2002, o especulador George Soros disse “ou Serra ou o caos”, referindo-se ao então concorrente tucano José Serra. A equipe do PT teve de acalmar os ânimos do mercado e, acredito, não conseguiu por isso administrar essas pressões.

Denise Drechsel

Referência:
CODATO, Adriano. É preciso mexer antes no modelo econômico. Curitiba - PR: Gazeta do Povo, 2006 (Entrevista).
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26 de setembro de 2006

Crise política e senso comum

[croqui do Congresso Nacional, O. Niemeyer]

Adriano Codato
Gazeta do Povo, Curitiba (PR),
7 nov. 2005, p. 8.


É provável que tenha sido Luis Fernando Veríssimo quem observou ser a discussão política entre nós uma disputa de par ou ímpar. Sempre há, segundo essa lógica, duas alternativas. Excludentes entre si. Não é o que se passa quando se lê quase todos os diagnósticos sobre Lula e seu governo? Ou se é a favor (do Presidente, do PT, dos políticos de esquerda etc.), ou se é contra. A partir disso...

Impossível desconhecer o fato óbvio que política é tomada de posição. Mas uma análise objetiva da crise política atual deve necessariamente partir daí? Sendo a imparcialidade um princípio inalcançável (e, nesse caso, indesejável: como pensar a política sem pensar politicamente?), o dever de casa dos intelectuais não é só “falar” ou “não falar”. Há, claro, o risco de ouvir aqueles profetas que Louis Pinto reprovou, num artigo recente em L'Humanité, que fazem pouco do trabalho empírico dos sociólogos, dos economistas, dos historiadores, dos cientistas políticos, e se contentam em proferir generalidades sobre “mutações”, “rupturas”, “desencaixes” etc. O ponto fundamental, julgo eu, é tentar mostrar – a partir da crise presente – o que se passa, hoje, com a Política em geral, principalmente quando há uma descrença difundida da Política.

Para quem acompanha a conjuntura pela imprensa, ou por ouvir dizer, a crise se resume à crise “do governo do PT” e essa se resume quase que à descoberta diária dos trambiques dos funcionários pagos do Partido, e às suas justificativas inacreditáveis. Essa visão factual, embora guarde o mérito de reportar o funcionamento miúdo do sistema político brasileiro, possui, por outro lado, certos problemas.

O primeiro é que não dispõe os eventos (aqueles que dão manchete e causam escândalo) numa cadeia causal. Quando o que se vê é uma sucessão aleatória de acontecimentos, ou melhor, quando os acontecimentos são apresentados sem qualquer ordem reconhecível, perde-se a idéia de processo político e junto some até mesmo, ou por causa disso, o passado recente. Vivemos um presente absoluto e somos levados a crer que o mundo social é o resultado simples dos feitos e malfeitos dos indivíduos. A análise política é então pouco mais que a descoberta das intenções ocultas dos primeiros e o comentário minucioso dos fatos do dia anterior. (Com alguma maldade, Charles Tilly sugeriu que “somente os locutores esportivos e os repórteres televisivos chegam perto de fazer observação e análise simultaneamente”). Nesse registro, a cena política é preenchida por “declarações”, que logo se convertem em “revelações”, e os analistas passam a correr atrás dos lances dos atores (alguns, atores mesmo...) na expectativa de descobrir e depois reportar suas “táticas políticas”.

Ora, quando o que interessa mais é o jogo e os jogadores ao invés daquilo que está em jogo (como enfatizou Pierre Bourdieu na sua análise sobre a televisão), o segundo problema é que desaparece o contexto mais amplo onde a ação política se dá (junto com a série de constrangimentos postos diante de quem deve decidir). Se no primeiro caso a atenção é desviada para os personagens do drama, tomados isoladamente e a cada instante, aqui a crise de governo não se liga a nada que não diga respeito à corrupção do governo. É natural, portanto, que os discursos sobre a “ética” façam às vezes de explicação e quanto mais indignados seus autores, mais inteligentes pareçam. O sumiço da idéia de política como processo se casa agora, no senso comum, com o esquecimento de todas as circunstâncias, e essa complicação adicional implica em aceitar um raciocínio peculiar que ignora a economia internacional (mesmo quando se fala em “globalização”), a sociedade tradicional (mesmo quando se reconhece a famosa “herança colonial”) e as rotinas do sistema político nacional junto com seu cortejo de “disfunções”: populismo, clientelismo, patrimonialismo etc. Cada um desses elementos tem um papel e um peso na explicação da natureza da crise, das suas origens e das saídas possíveis. Por que não discuti-los?

Por último, quando a lógica do campo político captura o campo jornalístico, promovendo feitos em fatos e transformando indivíduos quaisquer em atores racionais; e quando a lógica do campo jornalístico captura o campo político, tornando o conflito político uma disputa pela melhor imagem e convertendo essa imagem despolitizada em fetiche, o resultado é um baralhamento das coisas tal que o universo político aparece sem lógica alguma: um caos, para resumir. Essa confusão só é compreensível, conforme se crê, pela corrupção a serviço da disputa egoísta do poder. Não é exatamente assim que é “explicada”, por exemplo, a interminável troca dos deputados de um partido a outro? O que passa despercebido é que se o “marketing político” (essa lucrativa invenção) dissimula justamente as diferenças reais entre os programas, criando candidatos intercambiáveis, a mudança de legenda que vem em seguida às eleições não passa de um detalhe menos notável desse processo de indiferenciação, já que, afinal, “são todos iguais”. O sucedâneo disso é o desencanto geral com a Política, a desconfiança nos partidos e a descrença (também pudera) nos próprios políticos. Resultado: toda saída está bloqueada e tanto a idéia de representação política, quanto seus mecanismos de delegação estão em xeque. Fim da Política?

Esse talvez seja o fio a puxar dessa meada. É necessário, por isso mesmo, repolitizar o debate sobre a crise atual, recusando a visão atomizada dos eventos e uma compreensão a-histórica dos processos. Essa operação, que é também uma luta ideológica, não significa apenas restituir a autoridade da ciência da sociedade sobre a sociedade. Mais do que “mostrar o outro lado das coisas”, há uma verdadeira disputa simbólica para (re)pensar a política. Assim, a análise sociológica da política não está excluída dessa disputa maior que se dá com e contra o próprio campo político e o campo jornalístico, que produzem e impõem um sentido próprio aos acontecimentos.

Um começo possível para essa discussão poderia ser o seguinte: a crise do governo Lula, no que ela tem de paradigmático, descontando-se ao menos por ora os negócios ilegais dos “dirigentes históricos”, gira em torno de quatro grandes eixos. Um estritamente político, um social, um econômico e um utópico. Esses eixos não têm raízes só locais, mas dizem respeito, antes, às dificuldades da própria Política contemporânea. Dando um passo atrás para enxergar o tamanho do quadro e o desenho em suas devidas proporções, há um conjunto de problemas devidamente intrincados. Listo-os sem qualquer hierarquia: o problema da governabilidade do sistema político (como obter apoio?) e da governança do sistema estatal (como ser eficiente e controlável?); o problema da legitimidade dos atores políticos e da representatividade dos movimentos sociais (em nome de quem eles ainda podem falar?); e o problema da soberania dos Estados capitalistas (até onde vai a autoridade da potência hegemônica?) e do poder dos governos nacionais (qual sua capacidade decisória efetiva?); e, por fim, o problema do modelo de civilização que se deseja (estatal, social, liberal?) e do agente político capaz de formular esse projeto e sustentar esse modelo. Não está aí, afinal, o sentido último da “crise da esquerda”?

Certamente quando se faz isso há mais questões que respostas, sendo esse um programa ambicioso de estudos e debates sobre um mundo muito complexo. Ainda que não seja indiferente ao governo petista, e aos seus inúmeros “contratempos”, para ser educado, seria prudente focalizar, ao mesmo tempo, a crise do governo e a crise da Política contemporânea. Para começo de conversa.

Referência:
CODATO, Adriano Nervo. Crise política e senso comum. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, v. 1 cad., p. 8, 7 nov. 2005.
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A elite estatal no governo dos “trabalhadores”


[Julius Weiss, Group of Men]

Adriano Codato
Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 44, 06 jan. 2005.


Há, na conjuntura ideológica atual, duas teses opostas sobre o governo Lula mas que se merecem, seja pela sua superficialidade, seja pela tentação ao auto-engano que contêm.

Uma tese pertence aos que se poderia chamar de os herdeiros da desilusão. Para quem acreditou que no dia 1º. de janeiro de 2003 assistia-se à (re)fundação da República no Brasil, encontramo-nos hoje em meio à mais profunda decepção. A queixa diante das ‘promessas não cumpridas’ (para ficar no chavão) do ‘resgate da dívida social’ (outro chavão) evoca mais do que o otimismo dos ingênuos; evoca a fé nos governos do tipo ‘redenção nacional’. A assimilação dupla do PT, como o partido dos “trabalhadores”, na figura de Lula, como o líder do “povo”, e mais exatamente como o líder de mais uma grande mudança histórica (ainda que bem-comportada) – assimilação essa que foi o tom da campanha de 2002, dos anúncios do « governo de transição », do discurso de posse etc., como todos se lembram – cobrou seu preço muito cedo; precisamente quando o programa para zerar a fome não saiu do lugar.

A outra tese disponível na conjuntura ideológica atual é mais cínica e é sustentada pelos intelectuais da ordem, tanto à esquerda quanto à direita. Nessa versão sobre o governo Lula, não se trata de constatar o fracasso de mais um projeto reformador, mas de celebrar o sentido implacável, inflexível e insuperável da nova « ordem global ». Esses intelectuais se contentam em reafirmar o que, segundo eles mesmos, já se sabia (tanto é que nada poderá ser muito diferente do que o governo de Fernando Henrique fez...): não há qualquer alternativa de política econômica diante dos constrangimentos sistêmicos do capitalismo globalizado. São o time de herdeiros da ilusão (para manter a similitude com o time anterior). Mais exatamente : da ilusão diante da nova opacidade produzida pela circulação do dinheiro nos mercados mundiais.

A essas duas posições ideológicas (com certeza há outras; ou ainda: há versões mais ou menos sofisticadas das mesmas) pode-se contrapor, entre outras, três críticas sociológicas presentes na cena intelectual atual. A de Paulo Arantes (Zero à esquerda, 2004), a de Francisco de Oliveira (O ornitorrinco, 2003) e a de Armando Boito Jr.[1] Menciono brevemente o conteúdo das duas primeiras e gostaria de discutir, neste artigo, um aspecto da análise do Armando, análise essa que estou, em linhas gerais, ou pelo menos diante do seu diagnóstico essencial, de acordo : o governo Lula é um governo neoliberal. Ele representa uma continuidade, agora em outra etapa, dos governos Collor (1990-1992) e Fernando Henrique (1995-2002).

O diagnóstico de Paulo Arantes pode ser extraído, com um certo custo, da seguinte avaliação : « [...] saber se somos ou não viáveis não faz mais sentido. [...] Mesmo a idéia de desenvolvimento supõe um quadro de normalidade capitalista que tampouco resiste ao menor teste de realidade – que o digam as horrendas sociedades que são as máquinas chinesa e indiana de crescimento »[2].

Ou: a modernização possível da sociedade brasileira e da economia brasileira é essa mesma que temos diante de nós. Não há um ‘depois’ ; não há um processo ‘interrompido’ ; não há um ponto a partir do qual retomar o desenvolvimento; o Brasil é « cronicamente inviável », como definiu a fita de Sergio Bianchi[3]. Portanto, o mundo colonizado pelo capital (cuja pobreza, exclusão e miséria é aprofundada pela gestão tucano-petista) seria muito mais destruição que criação. O Brasil, repare, não é o passado do capitalismo. É o seu futuro.

Esse hiperdeterminismo estrutural, onde a economia é a chave que aperta o parafuso da História, é melhor explicado na análise de Francisco de Oliveira, já que há aí a identificação do agente dessa não transformação.

Para o Brasil, hoje já não mais se coloca o desafio histórico de passar do ‘subdesenvolvimento’ para o ‘desenvolvimento’, na terminologia dos anos 50. Não há, nesse sentido, a possibilidade de uma ‘evolução’. A economia e a sociedade brasileiras são o efeito (perverso) da combinação de traços díspares, mas ainda assim funcionais, tal como a imagem esquisita do ornitorrinco evoca : um mamífero ovíparo com bico de pato e cauda semelhante à do castor..., isto é: uma anomalia. E o capitalismo brasileiro não pode se transformar em outras coisas por três razões básicas: 1) ausência de capital para readequar suas forças produtivas à nova fase do capitalismo; 2) ausência de força social das categorias que poderiam pressionar por melhores condições de vida para todos os trabalhadores (metalúrgicos, bancários, petroleiros), já que tiveram seu poder erodido graças à modificação das relações capitalistas e a precarização do trabalho; e 3) presença de uma nova classe social com poder político e recursos econômicos, formada por antigos dirigentes sindicais convertidos em administradores dos fundos de previdência complementar (pelo lado do PT) e técnicos e economistas convertidos em banqueiros (pelo lado do PSDB). Essa é a classe que monopolizou o governo anterior e que monopoliza o governo atual[4].

Penso que um dos grandes méritos da análise de Armando Boito é introduzir, na explicação, variáveis de tipo político (ao focalizar as forças em disputa na cena política) e variáveis de tipo societal (ao enfatizar as relações de classe no interior do bloco no poder), contornando assim a tentação do economicismo.

De acordo com seu argumento, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está consolidando o modelo neoliberal no Brasil sob a hegemonia do capital financeiro. Esse governo representa uma nova fase do ciclo de governos neoliberais no Brasil, que tiveram início no começo dos anos 90, e essa nova fase, agora em etapa superior, corresponde justamente a duas modificações : 1) a modificações na correlação de forças no interior do bloco no poder : graças à elevação da posição relativa da burguesia interna voltada para a exportação (que é afinal de contas de onde vem os dólares para remunerar o capital financeiro); e 2) a modificações nas relações entre o bloco no poder e as massas populares : sua base social são os dos trabalhadores pauperizados e politicamente desorganizados. Eu acrescentaria aliás que os resultados das eleições municipais em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre confirmam essa suposição. O PT foi mais bem votado nas áreas muito pobres dessas cidades, justamente onde moram os clientes da « Bolsa-Família »[5].

O que explicaria a incorporação, pelo PT, do programa neoliberal ? Duas razões : de um lado, uma predisposição da direção do partido em estabelecer um compromisso com o modelo neoliberal, compromisso esse que favoreceria a estabilidade econômica e, por essa via, a estabilidade política, valor supremo para o grupo que está no governo (talvez segundo a equação : quanto menor o conflito, maior as chances de continuidade no poder). O PT, que nunca foi um partido anti-sistema, torna-se agora o partido do sistema. Trata-se assim de uma política de acomodação. Essa política de acomodação ao sistema – conduzida pela direção partidária – é complementada por meio de uma política de cooptação das lideranças dos movimentos populares, dos dirigentes sindicais e dos militantes do partido segundo o procedimento mais usual dos governos no Brasil : o empreguismo. Essa clientela tem então todo interesse na estabilidade, continuidade, no status quo, enfim.

Por outro lado, e esse me parece o argumento mais interessante, não há mais uma força social importante que desafie o modelo neoliberal, justamente porque as forças que teriam maior capacidade de organização e pressão sobre o governo – o sindicalismo dos bancários, dos petroleiros e dos metalúrgicos – estão se adequando ao modelo. Esses sindicatos assumem a lógica de entidades « prestadoras de serviços » aos seus associados e voltam as costas às reivindicações do Estado de bem-estar. Há, por assim dizer, uma política de aceitação das reformas neoliberais imaginando que as condições de « empregabilidade » dependam da revogação de institutos importantes da CLT.

Temos então o seguinte : política de acomodação da nova elite política ao sistema político; política de cooptação dos dirigentes partidários, sindicais e populares pelo governo e seu alojamento na estrutura burocrática do Estado; política de aceitação da elite sindical do modelo neoliberal. Eis aí o círculo de ferro que trava a superação do modelo. Eis aí as condições para a constituição de uma classe detentora (Poulantzas[6]), que monopoliza os altos postos da burocracia, mas que tem pouca ou nenhuma influência sobre o conteúdo e a direção da política econômica e social. Essa é uma diferença fundamental e que permite que se questione a análise de Francisco de Oliveira, especialmente sua proposição sobre o surgimento de uma « nova classe » (dominante?) no capitalismo brasileiro. Para Armando, « A situação brasileira atual não reproduz fielmente a situação designada pelo conceito de classe detentora – não estamos falando do conjunto da classe operária e os sindicalistas da Articulação Sindical estão muito longe de monopolizar os principais cargos do Executivo Federal. Porém, mesmo nessa versão limitada, a detenção de altos cargos no executivo federal pelos sindicalistas produz efeitos políticos e ideológicos importantes. A formação do governo Lula é vista, por esses trabalhadores, como uma situação inteiramente nova. Com esse governo, esses sindicalistas imaginam ter chegado ao poder ou, pelo menos, estar participando dele, e esperam do presidente sindicalista, não uma ruptura com o modelo capitalista neoliberal, mas um neoliberalismo com crescimento econômico e expansão do emprego »[7].

Gostaria justamente de discutir esse ponto da análise do Armando : a idéia de classe detentora. Colocaria, para começo de conversa, a pergunta central em outros termos: qual a relação da elite estatal (Miliband[8]) com a classe econômicamente dominante? Essa relação, penso eu, não pode ser simplesmente suposta (como a idéia de classe detentora sugere, sendo a ‘burocracia’, em sentido amplo, uma espécie de executora da política da fração hegemônica em razão dos limites estruturais do sistema), mas é uma relação que tem de ser determinada empiricamente, historicamente, concretamente.

Há aqui dois caminhos: ou se investiga a composição social da elite estatal (a fim de demonstrar as conexões sociais dessa elite com os “homens de negócios”, conexões essas que podem estar ligadas ao status, ao meio social, à educação, a disposições ideológicas comuns entre esse grupo e a classe dominante) ; ou se investiga, caminho que me parece mais produtivo, a configuração precisa do sistema estatal e o acesso a posições privilegiadas nesse sistema pelos “homens de negócios”.

Explico melhor: o ‘Estado’, como se sabe, não é uma entidade monolítica e homogênea mas um sistema institucional de aparelhos diferentes, que concentram níveis de poder também diferentes. Os ramos ou aparelhos do Estado mais importantes (isto é, onde se concentra a capacidade de decidir) são os centros de poder. A análise, a meu ver, teria então de começar pela determinação de quais são os centros de poder do Estado brasileiro – neste governo – para daí passar à determinação do perfil social não da elite estatal (da ‘classe detentora’) mas dos ocupantes dos centros de poder real, dessa ‘elite da elite’, que é sempre uma minoria.

Assim, eu sugeriria, a título polêmico, relativizar a idéia segundo a qual teria havido uma diluição social da alta burocracia do Estado em função do « empreguismo »; relativizar a idéia segundo a qual teria havido acesso a posições de elite do sistema estatal por indivíduos oriundos do ‘mundo do trabalho’ (cúpulas sindicais, dirigentes partidários de origem proletária etc.); portanto, relativizar a idéia do governo do PT como uma ‘república dos sindicalistas’, mas num sentido diferente do proposto pelo Armando. Penso que, na verdade, houve uma (re)colonização dos estratos superiores do ramo administrativo do sistema estatal pelos “homens de negócios”, ficando as posições políticas nas mãos da Articulação Sindical e do « Campo Majoritário ». Daí a importância decisiva da natureza da elite estatal para compreender a ação estatal. Contudo, considerando-se duas restrições : essa elite não é, no sentido próprio do termo, uma « classe governante »; há um núcleo ainda menor dessa elite que comanda o processo decisório. Essa « elite da elite » não está distribuída pelo Estado ; ela se concentra nos centros de poder do sistema estatal.

A pergunta então pode ser feita nos seguintes termos : onde e como estão representados no executivo político e nos demais ramos do sistema estatal os “homens de negócios”? Sugiro que se pense que há uma relação de continuidade e descontinuidade entre o governo Fernando Henrique e o governo Lula também nessa matéria.

Do ponto de vista da geografia política do sistema estatal, onde está a continuidade ? Na centralidade absoluta da tríade Banco Central-Conselho de Política Monetária-Ministério da Fazenda no sistema estatal e no seu monopólio sobre o processo decisório. Essa é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da hegemonia do capital que vive de juros.

E onde está a descontinuidade ? Na elevação da posição relativa, entre os centros de poder, dos ministérios ‘das exportações’ : do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Essa é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da mudança na posição relativa, no bloco de forças no poder, da grande burguesia comercial ligada ao agro-negócio.

Isso implica dizer que a presidência da República – formalmente o núcleo do sistema estatal – se constitui num centro político, mas não num centro decisório. A qualidade e a origem do seu inquilino tem, nesse caso, mais um efeito ideológico do que político prático. Tomemos um exemplo bastante circunstancial. Se nós ficarmos no mundo das milhares de siglas do Estado brasileiro, considere o seguinte fato: o presidente Geisel (1974-1979) criou, nos anos setenta, o Conselho de Desenvolvimento Econômico justamente para influir sobre o processo decisório; o presidente Lula parece ter criado o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que nada mais é que uma câmara de notáveis, cuja função é «cumprir o papel de articulador entre governo e sociedade, para viabilização do processo de Concertação Nacional » (seja lá o que isso signifique de fato), para não influir no processo decisório.

Minha diferença então com a análise de Armando Boito é a seguinte: a idéia segundo a qual haveria uma classe detentora de posições no sistema estatal (simplificadamente: os ‘petistas’) que seria a executora da política da fração hegemônica (simplificadamente: os ‘banqueiros’) não nos reenvia para o mesmo determinismo estrutural, que agora ao invés de ser econômico é social? A idéia de classe detentora não enfatiza demais as restrições estruturais do sistema, disfarçando ou ocultando o lugar e o papel da elite da elite do Estado – e, justamente, sua função de mediação na reprodução?

* Trabalho apresentado no Seminário O neoliberalismo e suas reformas, na sessão “O neoliberalismo e o poder” (debate com Armando Boito Junior (UNICAMP) e Renato Monseff Perissinotto (UFPR)). Instituições promotoras: Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho do Paraná/Sindicato dos Funcionários do Banco Central/Sindicato dos Servidores do IBGE-PR/Sindicato Nacional dos Auditores-FIscais da Receita Federal - DS Curitiba/Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 19 nov. 2004. Foi conservado o tom oral.

[1] Paulo Arantes, Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, 312 p.; Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, 150 p.; Armando Boito Jr., A hegemonia neoliberal no governo Lula. Crítica Marxista. São Paulo, n. 17, 2003; e A ilusão da elite sindical no paraíso. Entrevista à Gazeta Mercantil, 13 out. 2004, p. A-6.

[2] Fim de jogo. Entrevista à Folha de S. Paulo, 18 Jul. 2004, p. A12.

[3] Cronicamente Inviável. Drama. Brasil, 2000. 101 minutos. Direção: Sergio Bianchi; Roteiro: Gustavo Steinberg e Sergio Bianchi; Estúdio: Agravo Produções.

[4] Cf. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; O ornitorrinco, op. cit., p. 121-150.

[5] Em Curitiba, como em São Paulo, os números são eloqüentes. O candidato do PT (Angelo Vanhoni) só superou seu oponente do PSDB (Beto Richa) na zona sul da cidade, justamente a região mais ‘carente’. V. ‘Efeito feriadão’ : índice de abstenções é o maior desde 1992. Gazeta do Povo, 1 nov. 2004, p. 4.

[6] Cf. Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales. Paris : Maspero, 1968.

[7] A ilusão da elite sindical no paraíso. Entrevista à Gazeta Mercantil, 13 out. 2004, p. A-6.

[8] Cf. Ralph Miliband, The State in Capitalist Society. London: Weidenfeld and Nicolson, 1969.


Referência:
CODATO, Adriano Nervo. A elite estatal no governo dos trabalhadores. Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 44, 06 jan. 2005.