[Julius Weiss, Group of Men]
Adriano Codato
Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 44, 06 jan. 2005.
Há, na conjuntura ideológica atual, duas teses opostas sobre o governo Lula mas que se merecem, seja pela sua superficialidade, seja pela tentação ao auto-engano que contêm.
A outra tese disponível na conjuntura ideológica atual é mais cínica e é sustentada pelos intelectuais da ordem, tanto à esquerda quanto à direita. Nessa versão sobre o governo Lula, não se trata de constatar o fracasso de mais um projeto reformador, mas de celebrar o sentido implacável, inflexível e insuperável da nova « ordem global ». Esses intelectuais se contentam em reafirmar o que, segundo eles mesmos, já se sabia (tanto é que nada poderá ser muito diferente do que o governo de Fernando Henrique fez...): não há qualquer alternativa de política econômica diante dos constrangimentos sistêmicos do capitalismo globalizado. São o time de herdeiros da ilusão (para manter a similitude com o time anterior). Mais exatamente : da ilusão diante da nova opacidade produzida pela circulação do dinheiro nos mercados mundiais.
A essas duas posições ideológicas (com certeza há outras; ou ainda: há versões mais ou menos sofisticadas das mesmas) pode-se contrapor, entre outras, três críticas sociológicas presentes na cena intelectual atual. A de Paulo Arantes (Zero à esquerda, 2004), a de Francisco de Oliveira (O ornitorrinco, 2003) e a de Armando Boito Jr.[1] Menciono brevemente o conteúdo das duas primeiras e gostaria de discutir, neste artigo, um aspecto da análise do Armando, análise essa que estou, em linhas gerais, ou pelo menos diante do seu diagnóstico essencial, de acordo : o governo Lula é um governo neoliberal. Ele representa uma continuidade, agora em outra etapa, dos governos Collor (1990-1992) e Fernando Henrique (1995-2002).
O diagnóstico de Paulo Arantes pode ser extraído, com um certo custo, da seguinte avaliação : « [...] saber se somos ou não viáveis não faz mais sentido. [...] Mesmo a idéia de desenvolvimento supõe um quadro de normalidade capitalista que tampouco resiste ao menor teste de realidade – que o digam as horrendas sociedades que são as máquinas chinesa e indiana de crescimento »[2].
Ou: a modernização possível da sociedade brasileira e da economia brasileira é essa mesma que temos diante de nós. Não há um ‘depois’ ; não há um processo ‘interrompido’ ; não há um ponto a partir do qual retomar o desenvolvimento; o Brasil é « cronicamente inviável », como definiu a fita de Sergio Bianchi[3]. Portanto, o mundo colonizado pelo capital (cuja pobreza, exclusão e miséria é aprofundada pela gestão tucano-petista) seria muito mais destruição que criação. O Brasil, repare, não é o passado do capitalismo. É o seu futuro.
Esse hiperdeterminismo estrutural, onde a economia é a chave que aperta o parafuso da História, é melhor explicado na análise de Francisco de Oliveira, já que há aí a identificação do agente dessa não transformação.
Para o Brasil, hoje já não mais se coloca o desafio histórico de passar do ‘subdesenvolvimento’ para o ‘desenvolvimento’, na terminologia dos anos 50. Não há, nesse sentido, a possibilidade de uma ‘evolução’. A economia e a sociedade brasileiras são o efeito (perverso) da combinação de traços díspares, mas ainda assim funcionais, tal como a imagem esquisita do ornitorrinco evoca : um mamífero ovíparo com bico de pato e cauda semelhante à do castor..., isto é: uma anomalia. E o capitalismo brasileiro não pode se transformar em outras coisas por três razões básicas: 1) ausência de capital para readequar suas forças produtivas à nova fase do capitalismo; 2) ausência de força social das categorias que poderiam pressionar por melhores condições de vida para todos os trabalhadores (metalúrgicos, bancários, petroleiros), já que tiveram seu poder erodido graças à modificação das relações capitalistas e a precarização do trabalho; e 3) presença de uma nova classe social com poder político e recursos econômicos, formada por antigos dirigentes sindicais convertidos em administradores dos fundos de previdência complementar (pelo lado do PT) e técnicos e economistas convertidos em banqueiros (pelo lado do PSDB). Essa é a classe que monopolizou o governo anterior e que monopoliza o governo atual[4].
Penso que um dos grandes méritos da análise de Armando Boito é introduzir, na explicação, variáveis de tipo político (ao focalizar as forças em disputa na cena política) e variáveis de tipo societal (ao enfatizar as relações de classe no interior do bloco no poder), contornando assim a tentação do economicismo.
De acordo com seu argumento, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está consolidando o modelo neoliberal no Brasil sob a hegemonia do capital financeiro. Esse governo representa uma nova fase do ciclo de governos neoliberais no Brasil, que tiveram início no começo dos anos 90, e essa nova fase, agora em etapa superior, corresponde justamente a duas modificações : 1) a modificações na correlação de forças no interior do bloco no poder : graças à elevação da posição relativa da burguesia interna voltada para a exportação (que é afinal de contas de onde vem os dólares para remunerar o capital financeiro); e 2) a modificações nas relações entre o bloco no poder e as massas populares : sua base social são os dos trabalhadores pauperizados e politicamente desorganizados. Eu acrescentaria aliás que os resultados das eleições municipais em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre confirmam essa suposição. O PT foi mais bem votado nas áreas muito pobres dessas cidades, justamente onde moram os clientes da « Bolsa-Família »[5].
O que explicaria a incorporação, pelo PT, do programa neoliberal ? Duas razões : de um lado, uma predisposição da direção do partido em estabelecer um compromisso com o modelo neoliberal, compromisso esse que favoreceria a estabilidade econômica e, por essa via, a estabilidade política, valor supremo para o grupo que está no governo (talvez segundo a equação : quanto menor o conflito, maior as chances de continuidade no poder). O PT, que nunca foi um partido anti-sistema, torna-se agora o partido do sistema. Trata-se assim de uma política de acomodação. Essa política de acomodação ao sistema – conduzida pela direção partidária – é complementada por meio de uma política de cooptação das lideranças dos movimentos populares, dos dirigentes sindicais e dos militantes do partido segundo o procedimento mais usual dos governos no Brasil : o empreguismo. Essa clientela tem então todo interesse na estabilidade, continuidade, no status quo, enfim.
Por outro lado, e esse me parece o argumento mais interessante, não há mais uma força social importante que desafie o modelo neoliberal, justamente porque as forças que teriam maior capacidade de organização e pressão sobre o governo – o sindicalismo dos bancários, dos petroleiros e dos metalúrgicos – estão se adequando ao modelo. Esses sindicatos assumem a lógica de entidades « prestadoras de serviços » aos seus associados e voltam as costas às reivindicações do Estado de bem-estar. Há, por assim dizer, uma política de aceitação das reformas neoliberais imaginando que as condições de « empregabilidade » dependam da revogação de institutos importantes da CLT.
Temos então o seguinte : política de acomodação da nova elite política ao sistema político; política de cooptação dos dirigentes partidários, sindicais e populares pelo governo e seu alojamento na estrutura burocrática do Estado; política de aceitação da elite sindical do modelo neoliberal. Eis aí o círculo de ferro que trava a superação do modelo. Eis aí as condições para a constituição de uma classe detentora (Poulantzas[6]), que monopoliza os altos postos da burocracia, mas que tem pouca ou nenhuma influência sobre o conteúdo e a direção da política econômica e social. Essa é uma diferença fundamental e que permite que se questione a análise de Francisco de Oliveira, especialmente sua proposição sobre o surgimento de uma « nova classe » (dominante?) no capitalismo brasileiro. Para Armando, « A situação brasileira atual não reproduz fielmente a situação designada pelo conceito de classe detentora – não estamos falando do conjunto da classe operária e os sindicalistas da Articulação Sindical estão muito longe de monopolizar os principais cargos do Executivo Federal. Porém, mesmo nessa versão limitada, a detenção de altos cargos no executivo federal pelos sindicalistas produz efeitos políticos e ideológicos importantes. A formação do governo Lula é vista, por esses trabalhadores, como uma situação inteiramente nova. Com esse governo, esses sindicalistas imaginam ter chegado ao poder ou, pelo menos, estar participando dele, e esperam do presidente sindicalista, não uma ruptura com o modelo capitalista neoliberal, mas um neoliberalismo com crescimento econômico e expansão do emprego »[7].
Gostaria justamente de discutir esse ponto da análise do Armando : a idéia de classe detentora. Colocaria, para começo de conversa, a pergunta central em outros termos: qual a relação da elite estatal (Miliband[8]) com a classe econômicamente dominante? Essa relação, penso eu, não pode ser simplesmente suposta (como a idéia de classe detentora sugere, sendo a ‘burocracia’, em sentido amplo, uma espécie de executora da política da fração hegemônica em razão dos limites estruturais do sistema), mas é uma relação que tem de ser determinada empiricamente, historicamente, concretamente.
Há aqui dois caminhos: ou se investiga a composição social da elite estatal (a fim de demonstrar as conexões sociais dessa elite com os “homens de negócios”, conexões essas que podem estar ligadas ao status, ao meio social, à educação, a disposições ideológicas comuns entre esse grupo e a classe dominante) ; ou se investiga, caminho que me parece mais produtivo, a configuração precisa do sistema estatal e o acesso a posições privilegiadas nesse sistema pelos “homens de negócios”.
Explico melhor: o ‘Estado’, como se sabe, não é uma entidade monolítica e homogênea mas um sistema institucional de aparelhos diferentes, que concentram níveis de poder também diferentes. Os ramos ou aparelhos do Estado mais importantes (isto é, onde se concentra a capacidade de decidir) são os centros de poder. A análise, a meu ver, teria então de começar pela determinação de quais são os centros de poder do Estado brasileiro – neste governo – para daí passar à determinação do perfil social não da elite estatal (da ‘classe detentora’) mas dos ocupantes dos centros de poder real, dessa ‘elite da elite’, que é sempre uma minoria.
Assim, eu sugeriria, a título polêmico, relativizar a idéia segundo a qual teria havido uma diluição social da alta burocracia do Estado em função do « empreguismo »; relativizar a idéia segundo a qual teria havido acesso a posições de elite do sistema estatal por indivíduos oriundos do ‘mundo do trabalho’ (cúpulas sindicais, dirigentes partidários de origem proletária etc.); portanto, relativizar a idéia do governo do PT como uma ‘república dos sindicalistas’, mas num sentido diferente do proposto pelo Armando. Penso que, na verdade, houve uma (re)colonização dos estratos superiores do ramo administrativo do sistema estatal pelos “homens de negócios”, ficando as posições políticas nas mãos da Articulação Sindical e do « Campo Majoritário ». Daí a importância decisiva da natureza da elite estatal para compreender a ação estatal. Contudo, considerando-se duas restrições : essa elite não é, no sentido próprio do termo, uma « classe governante »; há um núcleo ainda menor dessa elite que comanda o processo decisório. Essa « elite da elite » não está distribuída pelo Estado ; ela se concentra nos centros de poder do sistema estatal.
A pergunta então pode ser feita nos seguintes termos : onde e como estão representados no executivo político e nos demais ramos do sistema estatal os “homens de negócios”? Sugiro que se pense que há uma relação de continuidade e descontinuidade entre o governo Fernando Henrique e o governo Lula também nessa matéria.
Do ponto de vista da geografia política do sistema estatal, onde está a continuidade ? Na centralidade absoluta da tríade Banco Central-Conselho de Política Monetária-Ministério da Fazenda no sistema estatal e no seu monopólio sobre o processo decisório. Essa é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da hegemonia do capital que vive de juros.
E onde está a descontinuidade ? Na elevação da posição relativa, entre os centros de poder, dos ministérios ‘das exportações’ : do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Essa é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da mudança na posição relativa, no bloco de forças no poder, da grande burguesia comercial ligada ao agro-negócio.
Isso implica dizer que a presidência da República – formalmente o núcleo do sistema estatal – se constitui num centro político, mas não num centro decisório. A qualidade e a origem do seu inquilino tem, nesse caso, mais um efeito ideológico do que político prático. Tomemos um exemplo bastante circunstancial. Se nós ficarmos no mundo das milhares de siglas do Estado brasileiro, considere o seguinte fato: o presidente Geisel (1974-1979) criou, nos anos setenta, o Conselho de Desenvolvimento Econômico justamente para influir sobre o processo decisório; o presidente Lula parece ter criado o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que nada mais é que uma câmara de notáveis, cuja função é «cumprir o papel de articulador entre governo e sociedade, para viabilização do processo de Concertação Nacional » (seja lá o que isso signifique de fato), para não influir no processo decisório.
Minha diferença então com a análise de Armando Boito é a seguinte: a idéia segundo a qual haveria uma classe detentora de posições no sistema estatal (simplificadamente: os ‘petistas’) que seria a executora da política da fração hegemônica (simplificadamente: os ‘banqueiros’) não nos reenvia para o mesmo determinismo estrutural, que agora ao invés de ser econômico é social? A idéia de classe detentora não enfatiza demais as restrições estruturais do sistema, disfarçando ou ocultando o lugar e o papel da elite da elite do Estado – e, justamente, sua função de mediação na reprodução?
* Trabalho apresentado no Seminário O neoliberalismo e suas reformas, na sessão “O neoliberalismo e o poder” (debate com Armando Boito Junior (UNICAMP) e Renato Monseff Perissinotto (UFPR)). Instituições promotoras: Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho do Paraná/Sindicato dos Funcionários do Banco Central/Sindicato dos Servidores do IBGE-PR/Sindicato Nacional dos Auditores-FIscais da Receita Federal - DS Curitiba/Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 19 nov. 2004. Foi conservado o tom oral.
[1] Paulo Arantes, Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, 312 p.; Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, 150 p.; Armando Boito Jr., A hegemonia neoliberal no governo Lula. Crítica Marxista. São Paulo, n. 17, 2003; e A ilusão da elite sindical no paraíso. Entrevista à Gazeta Mercantil, 13 out. 2004, p. A-6.
[2] Fim de jogo. Entrevista à Folha de S. Paulo, 18 Jul. 2004, p. A12.
[3] Cronicamente Inviável. Drama. Brasil, 2000. 101 minutos. Direção: Sergio Bianchi; Roteiro: Gustavo Steinberg e Sergio Bianchi; Estúdio: Agravo Produções.
[4] Cf. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; O ornitorrinco, op. cit., p. 121-150.
[5] Em Curitiba, como em São Paulo, os números são eloqüentes. O candidato do PT (Angelo Vanhoni) só superou seu oponente do PSDB (Beto Richa) na zona sul da cidade, justamente a região mais ‘carente’. V. ‘Efeito feriadão’ : índice de abstenções é o maior desde 1992. Gazeta do Povo, 1 nov. 2004, p. 4.
[6] Cf. Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales. Paris : Maspero, 1968.
[7] A ilusão da elite sindical no paraíso. Entrevista à Gazeta Mercantil, 13 out. 2004, p. A-6.
[8] Cf. Ralph Miliband, The State in Capitalist Society. London: Weidenfeld and Nicolson, 1969.
Referência:
CODATO, Adriano Nervo. A elite estatal no governo dos trabalhadores. Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 44, 06 jan. 2005.
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