artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections

17 de dezembro de 2012

A autonomia da política e a autonomia do político: Marx, Durkheim, Weber, Bourdieu


[William Gropper
Senate Scene 
Lithograph]


Adriano Codato (UFPR/NUSP)
Seminário interno do NUSP
dezembro 2012



                               I.            Pierre Bourdieu

O universo político (tal qual o universo burocrático, o ideológico, o econômico, etc.) deve ser entendido segundo Bourdieu como um microcosmo, isto é, como “um pequeno mundo social relativamente autônomo dentro do grande mundo social”. Essa autonomia, se levada ao pé da letra, isto é, se entendida etimologicamente, indica que, mais frequentemente do que se imagina ou se está disposto a aceitar, esse mundo (ou “campo”) trabalha, conforme Bourdieu, “de acordo com sua própria lei, seu próprio nomos[1].

Isso significa muito simplesmente que o campo político “possui em si mesmo o princípio e a regra do seu funcionamento” (Bourdieu, 2000, p. 52). Bourdieu vai ainda mais longe nesse assunto e sustenta que em qualquer caso “seria um erro subestimar a autonomia e a eficácia específica de tudo o que acontece no campo político, reduzindo a história propriamente política a uma espécie de manifestação epifenomênica das forças econômicas e sociais”, como pretende o marxismo (Bourdieu, 1998, p. 175).

Esse hermetismo que caracteriza e define o universo político implica ter presente, na análise social, tanto os processos políticos e ideológicos de produção dos profissionais da política, que são historicamente diferentes em formações sociais diferentes, quanto os procedimentos efetivos, isto é, o “jogo político”, com suas técnicas de ação e de expressão (regras, posturas, crenças, valores, hierarquias, etc.), que são a essência de qualquer campo e constituem o pré-requisito para participar dele. A propósito da famosa frase de Weber, para quem se pode viver da política ou para a política, Bourdieu corrige a alternativa e adiciona outra ideia: seria mais exato pensar que se possa “viver da política com a condição de se viver para a política” (Bourdieu, 1998, p. 176), isto é, conforme se conheça e se adira às regras do jogo, e não conforme uma vocação imaginada ou (auto) atribuída.

Eu acrescentaria que o oposto também é verdadeiro: só vive para a política aquele que vive da política. Essa profissionalização é a condição para dedicar-se integralmente seja à função de representação de interesses externos ao campo político (os interesses sociais ou econômicos, por exemplo), seja à função de representação dos próprios interesses, e mesmo à defesa dos interesses do campo político enquanto tal, isto é, a advocacia da sua existência, da sua permanência, dos seus regulamentos, códigos, princípios de seleção e exclusão, etc.

Como Pierre Bourdieu argumentou, a autonomia do campo político implica a existência de interesses corporativos, interesses esses “que são definidos pela lógica do jogo e não pelos mandantes” do jogo (Bourdieu, 2004, p. 200). Assim, os agentes políticos “servem os interesses dos seus clientes na medida em que (e só nessa medida) se servem também ao servi-los”. Isso significa que “a relação que os vendedores profissionais dos serviços políticos (homens políticos, jornalistas políticos etc.) mantêm com seus clientes é sempre mediada [...] pela relação que eles mantêm com seus concorrentes” (Bourdieu, 1998, p. 177, grifo do autor).

Disso se pode concluir que o problema da representação não se coloca mais conforme o princípio formulado por Weber (1994), isto é, como um problema em geral em torno de duas proposições excludentes (os políticos ou representam a si mesmos, ou representam os outros), mas como duas realidades ora justapostas, ora sobrepostas.

Há, portanto, no mínimo três grandes questões que decorrem dessa interpretação do mundo político e de sua relação com o mundo social.

A.     A primeira questão refere-se à relação efetiva entre a esfera das práticas políticas e a esfera dos interesses sociais.

Só é possível pensar na autonomia dos representantes políticos tendo como suposto – seja lógico, seja histórico – a autonomia do próprio campo da representação política. Recorrendo a uma imagem a fim de ilustrar a ideia: os jogadores (os políticos) e o jogo (a função de representação) pressupõem a existência do tabuleiro (o campo).

B.     A segunda questão refere-se à natureza da relação entre todos os jogadores no espaço social ou, para simplificar, entre a “elite política” e a “elite social”.

Essa relação pode ser pensada em termos subjetivos (a origem social da elite política) ou em termos objetivos (a função social da elite política no jogo político). O entusiasmo diante de uma ou de outra ideia é a razão da divergência principal da polêmica Miliband-Poulantzas[2].

C.     A terceira questão refere-se às condições sociais e históricas de produção dos próprios jogadores.

A autonomia do campo (e do jogo) político é a condição para produzir a profissão política e seus especialistas: os profissionais da política. Quanto menos diletantes, mais tendem a desenvolver interesses “corporativos” – ou, para falar como Weber, a buscar “o poder pelo poder” (1994); quanto mais interessados estão em si próprios, mais tendem a reforçar e ampliar aquela autonomia.

Conforme esse raciocínio, a questão fundamental dessa sociologia seria, portanto, compreender e explicar a “regra do jogo” (político), isto é, sua sócio-lógica implícita. É ela que determina as propriedades do campo de jogo, fixa os pré-requisitos para participar da partida (por exemplo: os backgrounds sociais) e determina o perfil ideal (quem são) e a margem de manobra dos jogadores, isto é, o que eles podem, ou não, fazer[3].

                               I.            Émile Durkheim

Não é possível ignorar que escolhas no terreno político tendem a ser também (mas não só) comandadas pelo instinto de sobrevivência política do Homo politicus racional, para aproveitar a denominação de Weber.
Entretanto, boa parte do problema não é a eleição das preferências, mas a formação (inconsciente) das preferências. Há, antes de tudo, um “conformismo lógico” (esticando e adaptando um pouco a ideia de E. Durkheim[4]) atado a maneiras convergentes de refletir e agir, e que fundamenta, em cada campo do mundo social, uma sensibilidade especial comum a todo grupo, um esprit de corps. Esse “corporativismo”, a tradução disponível e imperfeita para o português da expressão, é, dirá Bourdieu, “bem mais profundo que a simples solidariedade de interesses compartilhados”[5], já que é pré-reflexivo. O “corporativismo” é tão mais forte na classe política, penso, quanto mais ameaçada de desintegração ela se vê ou se sente. As crises políticas tendem por isso a reforçar antes de esgarçar o corporativismo (e o conformismo) daqueles que têm algo a perder (ver a nota 3).

De onde esse corporativismo provém? Seria útil diferenciar aqui o esprit de corps, que decorre das posições objetivas ocupadas pelos agentes na estrutura social (processo ou efeito ligado a uma lógica classista e à gramática dos interesses de classe), do effet de corps, processo derivado das posições ocupadas no “mercado” (onde o critério distintivo e definidor é a profissão, ou melhor, o pertencimento a um “corpo profissional”).

O effet de corps, postula Bourdieu, pode ser derivado ainda do pertencimento a uma família, a uma parentela, a uma nacionalidade, a associações disso e daquilo etc.; ele é também prerrogativa de agrupamentos de tipo “clube”, muito restritos. Essa definição se encaixa a propósito no caso de uma classe política bastante reduzida. O effet de corps, esse sentido de reciprocidade, de pertença a um mesmo repertório simbólico, produzido e garantido por uma identidade comum, é mais importante e mais influente que o esprit de corps. Quanto mais homogêneos forem os grupos considerados, prevê Bourdieu, mais seus “efeitos sobre os corpos” dos agentes tendem a prevalecer e a triunfar; quanto mais bem posicionados no espaço social estão esses grupos, portanto, quanto maior “a probabilidade das profissões funcionarem como corporações”, mais esses efeitos tendem a aumentar[6].

Ao lado do “conformismo lógico” que modela, encaixa e solda a consciência prática e a própria prática dos agentes, há um “compromisso pragmático” entre os agentes políticos e a estrutura de poder. Ele é diferente desse acordo tácito de consciências sobre as regras de seus comportamentos sociais, essas crenças que instituem os crentes, mas tão decisivo quanto, já que constitui também ou tanto mais uma precondição de funcionamento do mundo político.

O “compromisso pragmático” (não encontrei uma expressão denotativa para a ideia) refere-se não aos interesses subjetivos dos agentes (que podem ser instituídos pelo esprit de corps e reforçados pelo effet de corps), mas aos interesses objetivos da estrutura política enquanto tal. Os interesses da estrutura – ou melhor: os interesses sociais inscritos objetivamente na estrutura política – não são interesses a priori, intangíveis, ou interesses permanentes, mas interesses na permanência. Eles antecedem e se impõem aos propósitos (escolhas) e às prerrogativas (poder) dos agentes e aos interesses que eles devem objetivamente representar. Essa realidade e essa verdade devem ser reconhecidas (é preciso enfim comprometer-se com elas) e aceitas pragmaticamente antes mesmo de se entrar no jogo político, como condição, aliás, para se entrar no jogo.

A sugestão de Raymundo Faoro para interpretar o emblema político do II Império – ‘não há nada tão parecido com um conservador quanto um liberal no poder’ – descreve bem melhor o axioma animista aqui presumido de um “poder” acima dos poderes sociais:

[A frase não diz] que o liberal transita para o campo conservador, sem rubores e sem dramas de consciência, e vice-versa, em alusão ao presumido incaracterístico dos partidos imperiais. O que se contém na frase célebre é coisa diversa: o liberal, por obra do poder e quando no poder, atua, comanda e dirige como um conservador, adjetivando no máximo sua filiação partidária. Não se trata do descompromisso maquiavélico e oportunista de uma elite solidária, que, para mandar, muda de camisa, contanto que mande e continue mandando. [...] O liberal, se convertido em governo, cede às estruturas e à ideologia que lhe permitem dirigir o leme, leme unicamente feito para aquele navio, que só com ele pode navegar. Ele crê num dogma, mas para frequentar a igreja, deve praticar o culto contrário, sob pena de excomunhão eterna[7].

Quanto mais corporativa for a classe política, isto é, quanto mais preocupada estiver em promover seus interesses (“sua” ordem, “seu” poder, “suas” posições, “suas” ideias etc.), mais a estrutura política irá constranger suas ações, só dando a ela o que ela pode pedir. O conformismo não está no princípio da ação “racional” funcionando, no caso, como motivo; o conformismo lógico é o resultado final desse compromisso pragmático com a estrutura política. Por isso ele pode ser percebido, superficialmente, como interesse mútuo.

                            II.            Max Weber

Max Weber já havia tratado dos “jogadores” – os políticos – e da transformação de seu perfil social com a instituição do sufrágio universal (uma mudança de regra do jogo, portanto) e com a necessidade, daí derivada, de organizar sobre novas bases o exercício dos direitos políticos.

A conversão da associação de notáveis locais (gentlemen), indivíduos ilustres pela posição que ocupavam na hierarquia social, em máquina partidária corresponde, conforme sua tipologia, à passagem do comando da cena política de dois tipos sociais ideais, os “notáveis” parlamentares e extraparlamentares (para os quais a política era uma ocupação secundária e os cargos no Estado tinham uma função honorífica) para o domínio dos políticos profissionais. Esses poderiam ser funcionários permanentes do partido (como na Alemanha) ou simplesmente intermediários de votos (o election agent, na Inglaterra; o boss, nos Estados Unidos).

Esses tipos não são categorias abstratas, todavia. Nem foram criados por dedução lógica. São expressões políticas e históricas de diferenças sociais reais. Weber nota que na Inglaterra até 1868, precisamente, o empreendimento político era um negócio exclusivo dos notáveis, dos importantes do lugar. Mas enquanto os tories apoiavam-se no pastor, no professor e no grande proprietário rural (suas bases sociais e fontes de recrutamento), os whigs se apoiavam no pregador, no administrador dos correios e nos artesãos (ver Weber, 1999, em especial p. 558 e p. 551). Já na “América de Washington”, um gentleman era um proprietário (de terras) ou um universitário (isto é, um indivíduo formado em um college) (p. 554). O boss, por sua vez, era “um empresário político capitalista que, por sua conta e sob seu risco, junta[va] votos”. Antes de converter-se em político profissional ele poderia ter sido advogado, rentista ou “taberneiro” (p. 555). Por fim, o pessoal político dos partidos burgueses liberais da Alemanha resultava “de um peculiar casamento” entre financistas e literatos, sobretudo professores.

Nesse sentido, falar em políticos de carreira ou em mundo político, interesses políticos, interesses dos políticos, etc., não deve dar a entender que esse grupo funcional não tenha uma “origem de classe”. O ponto é que a constatação da origem de classe não significa, ipso facto, que eles tenham de cumprir – sempre e de todo modo – a função de representação dos interesses de classe (da classe da qual se originam ou de outra classe qualquer). Podem, como é muito frequente, representar a si mesmos. A autonomia aqui é completa.

                         III.            Karl Marx

Uma infinidade de fórmulas utilizadas por Marx em suas obras sobre a política europeia designa que a relação objetiva classe/partido da classe, postulada pelo modelo teórico dos teóricos do marxismo, é essencialmente diferente da relação subjetiva classe/grupo político, verificada pela análise política marxiana. Para recordar: os “políticos paroquiais” (“politiqueiros alemães”, na tradução brasileira), os “os republicanos azuis e vermelhos”, a “Montanha”, o “partido da ordem” e suas três facções, “orleanistas”, “legitimistas” e “bonapartistas” (Marx, 1994a, p. 516 e 442 et passim), são termos que assinalam a existência e a persistência dos políticos como uma confraria à parte que não só merecem um interesse em si mesmos; mas podem ser estudados por si mesmos à medida em que suas práticas não são idênticas às práticas da classe da qual provêm.

Uma leitura menos literal de Marx faz surgir o mundo político como um mundo à parte, dotado de uma lógica própria, códigos e princípios próprios. Embora ele não seja real (no sentido do ‘realmente existente’), tem efeitos reais (i.e., efetivos) sobre a existência e a consciência daqueles que vivem e operam nesse mundo.

Há uma anotação em A ideologia alemã a respeito das “formas da consciência social” de religiosos, moralistas, juristas e também dos políticos profissionais que poderia ser lida nessa chave interpretativa. Trata-se de uma ideia, apenas sugerida, mas que procura indicar a fonte da “autonomização da ocupação profissional pela divisão do trabalho” social (a ênfase é de Marx) e seus (d)efeitos ideológicos.

Cada um considera seu próprio ofício como o verdadeiro [ofício]. Sobre a relação entre seu ofício e a realidade, [os homens] criam ilusões tão mais necessárias quanto mais condicionadas [elas são] pela própria natureza do ofício. As relações [reais] na jurisprudência, política etc. tornam-se conceitos na consciência [dos homens]; e como eles não estão acima dessas relações, os conceitos das mesmas tornam-se ideias fixas na sua cabeça; o juiz, por exemplo, aplica o Código, e por isso, para ele, a legislação é tida como o verdadeiro motor ativo [das suas próprias práticas e das práticas sociais] (Marx e Engels, 1984, p. 133-134)[8].

A alienação profissional que afeta juízes, políticos de carreira, etc. produz fantasias tanto mais persistentes quando mais especializadas são as exigências do ofício. A consequência da profissionalização é um insulamento natural e a autonomia que deriva disso faz com que esses agentes ajam não como mandantes, mas conforme as regras do universo em que atuam. Daí imaginarem – a atuarem conforme essa imaginação – que suas práticas não são determinadas por nada que se passa fora desse mundo. Com isso chegamos ao famoso tema do “cretinismo parlamentar”.

Terry Eagleton tem toda razão em anotar que “o argumento marxista tradicional tem sido que os interesses políticos derivam da localização de alguém nas relações sociais de uma sociedade de classes” (Eagleton, 1997, p. 181). O que eu pretendo relevar é que, posto isso, os interesses dos políticos (esses profissionais da representação de interesses) e, por extensão, suas decisões, seus comportamentos, seus valores não derivam exclusivamente de seu pertencimento de classe (origem social) ou de seus vínculos de classe (posição social), à maneira de figuras-fantoches projetadas a partir de uma lanterna mágica; mas de sua “situação de classe”. E que isso tem a ver com as determinações específicas do seu próprio universo.

Com muita frequência se retém apenas o sentido negativo, crítico ou sarcástico embutido na fórmula nada gentil, mas bastante exata que Marx utiliza para designar a atuação desastrada da Assembleia Nacional em relação a Bonaparte no ano do golpe de Estado: “cretinismo parlamentar”. Esse é o epíteto da existência efetiva e da consciência falsificada dos legisladores políticos.

A interpretação mais aceita sobre a matéria é que não se trata, absolutamente, de uma aversão pela instituição do Parlamento ou pelo regime parlamentar, conquistado enfim pelo sufrágio universal depois da revolução de 1848. Mas sim do menosprezo “a certos membros seus, que creem ingenuamente ter importância, enquanto que [na verdade] eles estão desligados da realidade e não têm poder efetivo” (Barbier, 1992, p. 158 apud Rubel, 1994, p. 1372).

O voto de censura de 18 de janeiro [de 1851] atingiu os ministros, mas não o presidente. Ora, não fora o ministério, e sim o presidente que havia demitido Changarnier. O partido da ordem deveria acusar o próprio Bonaparte? Em razão das suas veleidades de restauração? Aqueles não faziam senão juntar-se aos seus próprios apetites Em vista de sua conspiração, com referência às paradas militares e à Sociedade de 10 de Dezembro? Eles haviam de há muito enterrado esses temas sob simples ordens do dia. Devido à destituição do herói de 29 de janeiro e de 13 de junho, do homem que em maio de 1850 ameaçou, no caso de ocorrer um levante, atear fogo em Paris? Seus aliados da Montanha, assim como Cavaignac, não lhes permitiram sequer soerguer o ex-baluarte da sociedade através de um atestado oficial de simpatia. Eles próprios não podiam negar ao presidente o direito constitucional de demitir um general. Enfureceram-se apenas porque ele utilizou de maneira não parlamentar o seu direito constitucional. Não tinham eles com frequência utilizadas inconstitucionalmente suas prerrogativas parlamentares, especialmente com relação à abolição do sufrágio universal? Viram-se, portanto, reduzidos a atuar estritamente dentro dos limites parlamentares. E foi necessário passar por aquela doença peculiar que, desde 1848, exerceu sua ação destruidora em todo o continente, o cretinismo parlamentar, que encerra em um mundo imaginário aqueles que são contagiados por ela, privando-os de todo senso comum, de toda recordação, de toda compreensão do grosseiro mundo exterior – foi  necessário contaminar-se desse cretinismo parlamentar para que aqueles que haviam destruído com suas próprias mãos todas as condições do poder parlamentar, e que tinham necessariamente que destruí-las em sua luta com as outras classes, considerassem ainda suas vitórias parlamentares como vitórias, e acreditassem atingir o presidente investindo contra seus ministros. Deram-lhe apenas a oportunidade de humilhar novamente a Assembleia Nacional aos olhos da nação. A 20 de janeiro, o Moniteur anunciava que a renúncia coletiva do ministério fora aceita (Marx, 1994a, p. 503).

De acordo com Rubel (1994), Engels retomará a mesmíssima expressão para insultar a esquerda da Assembleia de Frankfurt num dos artigos escritos por ele e assinados por Marx para o NYDT em 27 de julho de 1852. Essa doença “fazia com que penetrasse nessas infortunadas vítimas a convicção solene que o mundo inteiro, sua história e seu futuro, era governado e determinado pela maioria deste corpo representativo particular que tem a honra de contar com eles como membros” (Engels apud Rubel, 1994, p. 1372)[9].

A reprovação de Marx dessa “doença”, que encerrava “num mundo imaginário todos aqueles que estão contagiados por ela, privando-os de todo sentido, de toda lembrança, de toda compreensão do rude mundo exterior”, i.e., do mundo social, pode também ser interpretada como o reconhecimento de que ações políticas não são necessariamente, e em todos os casos, determinadas pela relação entre os ‘representantes’ (os agentes políticos) e os ‘representados’ (as classes sociais), mas pela relação de concorrência ou confluência que automaticamente se estabelece entre os membros do universo político em torno do controle do poder político, da ocupação dos postos políticos, da supremacia dos respectivos grupos políticos etc. – isto é, em torno dos seus interesses específicos (ou, como Marx mesmo diria, em torno das “ideias fixas na sua cabeça”).


ф   ф   ф

Referências
ARTOUS, Antoine. 1999. Marx, L’Etat et la politique. Paris: Syllepse.
BARBIER, Maurice. 1992. La pensée politique de Karl Marx. Paris: L'Harmattan.
BOURDIEU, Pierre. 1985. Effet de champ et effet de corps. Actes de la recherche en sciences sociales, vol. 59, n. 1.
BOURDIEU, Pierre. 1989. .La noblesse d’État: grandes écoles et esprit de corps. Paris: Ed. de Minuit.
BOURDIEU, Pierre. 1998. A representação política. Elementos para uma teoria do campo político. In: _____. O poder simbólico. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
BOURDIEU, Pierre. 2000. Conference: le champ politique. In: _____. Propos sur le champ politique. Lyon: Presses Universitaires de Lyon.
BOURDIEU, Pierre. 2004. A delegação e o fetichismo político. In: _____, Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense.
DURKHEIM, Émile. 2008. Les formes élémentaires de la vie religieuse. Le système totémique en Australie. Paris: CNRS.
EAGLETON, Terry. 1997. Ideologia. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Boitempo.
FAORO, Raymundo. 1994. A ponte suspensa. In: _____. Existe um pensamento político brasileiro? São Paulo: Ática,
MARX Karl e ENGELS, Friedrich. 1984. A ideologia alemã (I – Feuerbach). São Paulo: Hucitec.
MARX, Karl. 1994a. Le 18 Brumaire de Louis Bonaparte. In : _____. Œuvres. Éd. établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, vol. IV, Tomo I: Politique.
MARX, Karl. 1994b. Chroniques anglaises (1852-1854).1994b. In : _____. Œuvres. Éd. établie par Maximilien Rubel. Paris: Gallimard, vol. IV, Tomo I: Politique.
MILIBAND, Ralph. 1970. The Capitalist State – Reply to N. Poulantzas. New Left Review, London, n. 59, Jan.-Feb.
POULANTZAS, Nicos. 1969. The Problem of the Capitalist State. New Left Review, London, n. 58, Nov.-Dec.
RUBEL, Maximilien (org.). 1994. Karl Marx, Œuvres. Vol. IV, Tomo I: Politique. Paris: Gallimard.
WEBER, Max. 1993. Conferência sobre o socialismo. In: Fridman, Luis Carlos (org.). Socialismo; Emile Durkheim, Max Weber. Rio de Janeiro: Relume-Dumará.
WEBER, Max. 1994. The Profession and Vocation of Politics. In: Lassman, Peter & Speirs, Ronald (eds.), Weber: Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press.
WEBER, Max. 1999. Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Brasília: Editora Universidade de Brasília.


[1] Etimologicamente: gr. autonomía 'direito de reger-se segundo leis próprias'; prov. sob infl. do fr. autonomie 'id.'; ver aut(o)- e –nomia (Houaiss). O primeiro sentido que o Houaiss consigna para “autonomia” é ‘capacidade de se autogovernar’. Daí decorre quatro acepções: 1.1 termo jurídico: direito reconhecido a um país de se dirigir segundo suas próprias leis; soberania; 1.2 faculdade que possui determinada instituição de traçar as normas de sua conduta, sem que sinta imposições restritivas de ordem estranha; 1.3 termo da administração: direito de se administrar livremente, dentro de uma organização mais vasta, regida por um poder central; 1.4 direito de um indivíduo tomar decisões livremente; liberdade, independência moral ou intelectual. O verbete é uma cópia quase literal do Caldas Aulete. O sentido principal de ‘autonomia’ neste dicionário é: “Capacidade, faculdade ou direito (de indivíduo, grupo, instituição, entidade etc.) de se autogovernar, de tomar suas próprias decisões ou de agir livremente, sem interferência externa (mesmo se organicamente incluído num âmbito maior de soberania)”.

[2] Ver, em especial, Poulantzas, 1969 e Miliband, 1970.

[3] Para permanecer na metáfora, Bourdieu nota que a adesão incondicional ao jogo e às coisas que estão em jogo “não se manifesta nunca de modo tão claro como quando o jogo chega a ser ameaçado enquanto tal” (Bourdieu, 1998, p. 173). Traduzindo: todos esses atributos políticos tornam-se mais explícitos em momentos de transformação ou transição política.

[4] Ver Durkheim, 2008, p. 86.

[5] Bourdieu, 1989, p. 111.

[6] Bourdieu, 1985, p. 73.

[7] Faoro, 1994, p. 128-129; grifos meus. A frase do visconde de Albuquerque é, literalmente, a seguinte: “nada tão parecido com um Saquarema como um Luzia no poder”.

[8] Tradução modificada; inserções entre colchetes minhas. A nota foi redigida apenas por Marx.

[9] Ver também de F. Engels, o volume Revolução e contrarrevolução na Alemanha, em especial o cap. 8: A Assembleia Constituinte Prussiana; A Assembleia Nacional de Frankfurt.
 .

12 de novembro de 2012

Colóquio: Para que estudar grupos dirigentes? UFPR, Novembro

[Victory party for President Obama in Chicago.
Kevin Lamarque/Reuters] 

Coordenador: Adriano Codato (UFPR); Promoção: Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil; Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira (NUSP/UFPR); Apoio: CAPES.
Local: UFPR, Reitoria, 9º andar.

19 de novembro, segunda-feira

MANHÃ:
9hs. - 12. hs.
Mesa 1: Estudando elites políticas: questões de teoria e metodologia
Bruno Bolognesi (UFSCAR): Pesquisa de survey e a agenda das eleições: timing e formas de coleta
Renato Perissinotto (UFPR): Pesquisa de recrutamento político e survey: limites e potencialidades
Ernesto Seidl (UFS): Entrando no mundo das elites: o trabalho de campo com grupos dirigentes

TARDE:
14hs. 30 min. - 16hs. 30 min.
Conferência: Será que ideologia não importa mesmo?
Emerson Cervi (UFPR/UEPG)

pausa para o café

17hs. - 18hs. 30 min.
REUNIÃO INTERNA DE PLANEJAMENTO PROCAD
TRIÊNIO 2013-2015


20 de novembro, terça-feira

MANHÃ
9hs. - 12.hs.
Mesa 2: A elite empresarial: teoria e método na análise da relação entre empresariado e democracia
Paulo Roberto Neves Costa (UFPR)
Debatedores:
Flávio Heinz (PUCRS)
Sérgio Braga (UFPR)


TARDE
14hs. 30 min. - 16hs. 30 min.
Mesa 3: Potencialidades no estudo de elites políticas e sociais*
Luiz Domingos Costa (FACINTER/NUSP): Bases quantitativas de elites políticas: fontes, universos e variáveis
Wilson J. F. de Oliveira (UFS): a definir
*Apresentação e discussão dos bancos de dados (acumulados no triênio)
.

28 de outubro de 2012

Robert Michels, Gramsci e a ciência política contemporânea

[fotografia: Photo and caption by
Konstantine Eleftheria-National 
Geographic Photo Contest] 


Apresentação
ao dossiê da Revista de Sociologia e Política
O centenário de Sociologia dos partidos políticos, de Robert Michels


Robert Michels, Gramsci e a ciência política contemporânea
Maria do Socorro Sousa Braga
Adriano Codato

  
Quem diz organização, diz oligarquia.
Robert Michels

No Prefácio que René Rémond escreveu em 1971 à republicação da tradução francesa de Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie (Untersuchungen über die oligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens), de Robert Michels, ele observou que, em que pese todas as insuficiências desse livro, em termos empíricos, geográficos, ideológicos e metodológicos, seu autor acertou em cheio. Talvez fosse o caso então de dizer que nunca uma lei social elaborada a partir de um único caso foi tão previdente.

Rémond lembra que o ensaio de Michels traz, em comparação com o feitio dos estudos mais contemporâneos de ciência política sobre o assunto, pouquíssimos dados estatísticos, nada sobre o financiamento voluntário dos partidos, nenhum estudo dos estatutos e escassas informações sobre os conflitos internos entre as cúpulas dirigentes (RÉMOND, 1971, p. 10). De acordo com a reprovação de Max Weber, a obra é uma mistura confusa entre fatos e julgamentos de valor, produzidos por um adepto desiludido da esquerda do SPD, que teima em reprovar os defeitos internos mais expressivos e urgentes da organização: eleitoralismo (preocupação exclusiva em ganhar as eleições), parlamentarismo (a idéia segundo a qual a política se resume à atuação no parlamento) e oportunismo dos líderes. Além disso, como se recorda, Michels estuda apenas a esquerda socialista, deixando de lado os liberais, a direita conservadora, os monarquistas, os republicanos, os católicos, etc. Seus exemplos incluem apenas o norte da Europa e, secundariamente, a Itália. “A bem dizer”, enfatiza René Remond, “a tese de Michels é [tão só] uma extrapolação a partir da social-democracia na Alemanha wilhelmiana”. Com base nessa falácia ecológica, nada garante que a sua famosa ‘sociologia dos partidos políticos’ não seja simplesmente uma sociologia política dos partidos de massa da esquerda alemã em princípios do século XX (RÉMOND, 1971, p. 11). E que suas assertivas pessimistas sobre a política partidária dos socialistas não sejam, afinal, “um amável ceticismo de salão ou de café reacionário” animado pelo juízo “epigramático de um polemista” (GRAMSCI, 1984, p. 110).

Outras coisas também contariam contra esse livro. O fato dele ter sido publicado em 1911, por exemplo, só evidencia que o autor perdeu o melhor da festa: a ascensão do partido nazista e do partido fascista, a criação e a burocratização do partido comunista da URSS, o monopólio da direção da Section Française de l'Internationale Ouvrière (SFIO) por um único indivíduo por quase um quarto de século, para ficarmos no principal. E, contudo, o mais irônico é que todos esses exemplos são uma validação espetacular de suas principais proposições a respeito das “extravagâncias das oligarquias partidárias” (POUTHIER, 1993, p. 812).

Na moderna sociedade capitalista, o partido aparece como o canal político por excelência da representação. Os partidos são (ou foram, a discutir) os mecanismos institucionais mais importantes da vocalização política. É através deles que os grupos sociais podem exprimir, de modo mais ou menos completo, suas reivindicações e interesses, assim como participar, de modo mais ou menos eficaz, da formação das decisões públicas. A questão da representação põe, contudo, uma questão política essencial e que diz respeito à sua possibilidade, natureza e grau: como a representação poder ser efetiva, genuína e legítima? Nesse tema, A sociologia dos sistemas partidários na moderna democracia (na tradução literal do título) tornou-se um clássico da Ciência Política e da Sociologia Política. E um clássico porque a pergunta de fundo desse livro não cessa de nos interpelar: a democracia é, enfim, viável?[1].

Esse grande problema pode ser desdobrado, teoricamente e empiricamente, em pelos menos outros três: a) se o partido (qualquer partido) engendra, necessariamente, uma oligarquia, que forma política seria a mais adequada para organizar as diferentes correntes de opinião, visões de mundo e interesses sociais nas sociedades modernas?; b) se nesse contexto institucional impera a delegação do poder das massas aos burocratas do partido, como viabilizar, de um lado, a verdadeira representação e a participação política e, de outro, o controle social sobre os comisários?; e c) qual a capacidade real das massas agirem politicamente de maneira consciente e responsável (“racionalmente”, nós diríamos) sem a tutela de um líder, seja ele o partido ou o chefe carismático?

Essas três indagações constituíram boa parte da agenda dos estudos políticos ao longo do século XX e preocuparam, com ênfases diferentes, elitistas, pluralistas, radicais, liberais, institucionalistas e marxistas. Entre esses últimos, vale lembrar aqui a discussão de um grande pensador como Antonio Gramsci, cuja teorização sobre o partido revolucionário inspirou (e talvez ainda inspire) mais de uma geração de militantes socialistas[2].

O problema do qual Gramsci parte é: como construir um mecanismo político mediante o qual uma classe, ou uma aliança de classes, pode conquistar o poder de Estado e impor, pela via da revolução social, uma nova hegemonia? Esse desafio teórico e político, complexo por si mesmo, desdobra-se em outros. Em termos gerais, trata-se do “problema dos modos e formas [políticos] que possibilitarão organizar toda a massa de trabalhadores italianos numa hierarquia que organicamente culmina no partido”. Mas não a qualquer preço, e sim sob certas condições limitantes: de um lado, construir o socialismo implica apostar na “construção de um aparelho estatal que, internamente, funcione democraticamente, isto é, garanta liberdade a todas as tendências anticapitalistas, [isto é, garanta] a possibilidade de [todas essas tendências] se tornarem partidos do governo proletário”; e, de outro, que esse Estado-partido “seja externamente uma máquina implacável que esmague as organizações do poder industrial e político do capitalismo”[3].

Numa breve seção dos Quaderni (‘Roberto Michels e os partidos políticos’), o comunista italiano comenta alguns escritos esparsos de Michels[4].

Gramsci insiste que é preciso diferenciar as coisas. Um problema é a democracia interna (ou, precisamente, a falta de democracia interna) da organização partidária; outro, bem diferente, é o objetivo estratégico dessa organização política, isto é, o Estado verdadeiramente democrático. E que “para conquistar a democracia no Estado pode ser necessário (ou melhor, quase sempre é necessário) um partido fortemente centralizado” (GRAMSCI, 1984, p. 108), como aliás nos ensinou Lênin[5]. Só que, assim pensada, essa fórmula apenas adia o problema – em nome da eficácia política dos meios e da justeza dos fins pretendidos – sem absolutamente resolvê-lo. A dificuldade aqui, como se percebe, é evidente: como garantir que essa organização “fortemente centralizada”, isto é, hierárquica, desigual e despótica, vá perseguir um fim – a igualdade – que é o exato oposto da sua natureza?

A outra crítica de Gramsci é, surpreendentemente, mais incongruente ainda. Ele argumenta que a diferença entre a democracia e a oligarquia (supõe-se, pelo contexto, que ele esteja falando de relações democráticas e relações oligárquicas no interior do partido socialista) resulta, no essencial, da “diferença de classe [existente] entre chefes e seguidores”. Exemplo onde isso ocorreria? Naqueles mesmos sindicatos e partidos social-democratas analisados por Michels. Ora, se hipoteticamente não há, ou melhor, quando não houver, no futuro, diferença de classe entre dirigentes e dirigidos, as relações ordinárias no partido, argumenta Gramci, se converterão apenas em questões administrativas, já que decorrerão tão só da divisão do trabalho interno da organização, isto é, elas serão um problema “puramente técnico”. E como as massas, sem qualquer treinamento técnico, poderão participar das tarefas dirigentes do partido? A incapacidade das massas para a direção, por sua vez, poderá ser resolvida graças à educação prática e ao aprendizado adquirido a partir da “participação ativa dos seguidores na vida intelectual (discussões) e organizativa do partido” (GRAMSCI, 1984, p. 109). Todo problema aqui é saber como e por que a igualdade social, numa esfera da vida, transformará, ipso facto, as questões organizativas, que pertencem a outro domínio, ao domínio interno dos partidos, em questões meramente administrativas, abolindo o conflito e a separação política entre as ‘ordens’ que constituem uma organização. Em segundo lugar, seria preciso que Gramsci explicasse qual seria e de onde viria o interesse das cúpulas partidárias em promover a participação ativa dos filiados nas dicussões políticas estratégicas da organização. Ou numa palavra: qual seria a motivação das cúpulas dos funcionários em compartilhar voluntariamente o poder.

A terceira dificuldade enfrentada por Gramsci quando comenta as análises de Michels, repletas de “palavras vazias e imprecisas”, diz respeito ao desenvolvimento, nos “partidos avançados”, ou seja, nos partidos socialistas burocraticamente estruturados, de uma camada de intelectuais que concentram e monopolizam muitas funções políticas. A saída para isso seria criar, nesses partidos, uma grande camada intermediária entre os chefes e as massas, “capaz de servir de equilíbrio para impedir os chefes de se desviarem” da linha correta “nos momentos de crises radicais e de elevar sempre mais [o nível e o poder da] massa” (GRAMSCI, 1984, p. 109). Novamente, essas palavras não refutam, por si mesmas, as ideias “bastante confusas e esquemáticas” (idem, ibidem) de Michels sobre os partidos socialistas, exatamente porque não mostram como uma organização mais complexa ainda pode produzir um resultado oposto àquele minuciosamente descrito na obra pioneira do seu contemporâneo. Tudo somado, as respostas que Gramsci ensaia contra as teses de Michels parecem ser, a bem dizer, ora uma reafirmação de raciocínios baseados em desejos, princípios e conjecturas, ora uma aposta no interesse da organização e dos seus comandantes em sabotar voluntariamente seu próprio poder.

*   *   *
Em 2011 comemoramos um século da publicação da obra clássica do sociólogo alemão Robert Michels (1876-1936). Desde sua primeira edição esse estudo vem contribuindo para estimular um intenso debate sobre a relação entre democracia, partidos políticos e a organização das instituições representativas. Para refletir sobre a contribuição e o estatuto teórico de Sociologia dos partidos políticos[6], foi realizado no segundo semestre de 2011, no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos, o seminário “O centenário de Sociologia dos partidos políticos, de Robert Michels” [7].

Nessa ocasião foi lançado o desafio de publicarmos os trabalhos aí apresentados para marcar a data, o qual foi muito bem aceito pelos editores da Revista de Sociologia Política, já que a sociologia política de Michels tem tudo a ver com o perfil e o foco do periódico. Como resultado desse esforço resultou esse dossiê que conta com valiosas contribuições que ora passamos a apresentar, destacando e sumarizando os principais aspectos analisados nos artigos.

O artigo de Mario Grynszpan procura mostrar como a história da ciência política nos Estados Unidos pode ser compreendida a partir da história da recepção das edições, traduções e comentários críticos do principal livro de Robert Michels. A partir de uma competente e acurada sociologia histórica da circulação e da recepção de Sociologia dos partidos políticos, Grynszpan revela quando e como o pessimismo sociológico de Michels se converteu em realismo científico e como esse realismo pôde construir uma base para o pluralismo democrático.

Pedro Floriano Ribeiro nos apresenta minuciosa análise a respeito das principais concepções e influências teóricas e políticas de Michels na construção de sua obra. Busca também identificar as mais relevantes mudanças entre a primeira edição, de 1911, e a segunda, de 1925. Ademais, realiza interessante análise genética desse estudo pioneiro, contextualizando-o e indicando alguns fatos biográficos prévios à sua publicação, e no intervalo entre as duas edições.

Já Claudio Couto tem como principal foco discutir a utilidade científica do conceito de oligarquia originalmente criado por Michels, buscando delimitar uma definição mais precisa e mais operacionalizável para o mesmo. Para isso retoma a contribuição micheliana fundamental, partindo de um conceito essencialmente descritivo e não normativo de oligarquia, aproveita trabalhos posteriores sobre o assunto e elabora um modelo institucional de análise que permite examinar processos de oligarquização de organizações sociais e políticas.    
      
Para André Marenco e Maria Izabel Noll a predição de Robert Michels sobre a inevitabilidade da conversão de todas as organizações partidárias em oligarquias estaria temporalmente delimitada a um contexto específico, marcado pela expansão do sufrágio universal e pela integração na competição eleitoral de candidatos populares, combinado a reformas eleitorais (em especial, a substituição do voto majoritário pela representação proporcional). A validade da lei férrea micheliana, portanto, seria circunscrita ao período de predomínio dos partidos de massa, e seria estruturada em um tripé formado pelo: a) ativismo voluntário, b) finanças coletivas e c) ideologias partidárias como vantagens comparativas na competição eleitoral e sua disponibilidade oligopólica por dirigentes partidários.

Já Ingrid Sarti revisita o tema da alternativa entre participação e representação e como ele impactou a história e a doutrina dos partidos socialistas. No contexto atual, em que o anúncio da crise e do esgotamento da forma “partido” é cada vez mais insistente, como ler Michels? E principalmente, como ler Michels depois que, no clima ideológico da Guerra Fria, sua obra foi assimilada pela crítica liberal como um diagnóstico mais do que fiel do partido único da URSS? O artigo de Sarti faz um importante balanço da literatura que busca alternativas ao viés hoje dominante contra o partido e antissocialista.

Por fim, Maria do Socorro Sousa Braga busca resgatar os pressupostos da tese de Michels a respeito da suposta dinâmica organizacional dos partidos políticos marcada por duas tendências antagônicas: a propensão à concentração de poderes nas mãos de uma oligarquia e a aspiração de participação pelos demais integrantes nas decisões intrapartidárias. Além disso, discute como a obra de Michels influenciou estudiosos do fenômeno partidário vinculados à perspectiva organizacional contemporânea.

Em síntese, cem anos depois, a tese da “lei de ferro da oligarquia”, cunhada por Michels, segue, conforme os artigos arrolados neste dossiê, como referência controversa, porém fundamental não só nos debates sobre a democracia interna dos partidos políticos, mas também nas discussões sobre a possibilidade alcançarmos uma democracia substantiva em outras organizações (sindicatos, associações de classe, grêmios de estudantes, clubes políticos) e na gestão dos próprios Estados nacionais contemporâneos. A reflexão plural e crítica sobre essa obra clássica e duradoura desenvolvida durante o seminário de São Carlos, seguida por sua publicação nesse dossiê, com certeza é uma excelente mostra da persistência das questões que esse livro de 1911 levanta ainda hoje. 
Maria do Socorro Sousa Braga (msbraga2009@gmail.com) possui doutorado e pós-doutorado em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Foi pesquisadora visitante do Centro Latino Americano (LAC) da Universidade de Oxford.
Adriano Codato (adriano@ufpr.br) é Doutor em Ciência Política pela Unicamp, professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Observatório de elites políticas e sociais do Brasil (http://observatory-elites.org/).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERNANDES, R. C. F. 2011. Oligarquia e transformismo: a crítica de Gramsci a Michels. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). Universidade Estadual de Campinas.
GRAMSCI, A. 1984. Roberto Michels e os partidos políticos. In: _____. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 103-111.
LÖWY, M. 1962. Consciência de classe e partido revolucionário. Revista Brasiliense, São Paulo, n. 41, maio/jun.
MICHELS, R. 1971. Les Partis Politiques. Essai sur les tendances oligarchiques des démocraties. Paris: Flammarion.
MILIBAND, R. 1979. Marxismo e política. Rio de Janeiro: Zahar.
POUTHIER, J.-L. 1993. Michels, Roberto, 1876-1936. In: CHATELET, F. et alli (orgs.). Dicionário de obras políticas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 809-815.
RÉMOND, R. 1971. Préface. Les Partis Politiques. Essai sur les tendances oligarchiques des démocraties. Paris: Flammarion.


[1] Cf. MICHELS, 1971, p. 18-19; REMOND, 1971, p. 14; e POUTHIER, 1993, p. 812.
[2] O próprio pensamento de Gramsci, assim como o de Lênin, sobre os problemas da organização revolucionária sofreu, entre 1919 e 1935, transformações importantes. Enquanto os artigos publicados nos anos que precederam a fundação do PCI (1921) no Ordive Nuovo e no Avanti expressam soluções para as questões organizatórias em termos quase idênticos ao “espontaneísmo” luxemburguista, os Cadernos do Cárcere (1929-1935) contêm uma visão completamente nova da política revolucionária e do Partido. Cf. LÖWY, 1962 p. 151-152.
[3] Antonio Gramsci, “O problema do poder”, L'Ordine Nuovo, 29 de novembro de 1919, republicado pela New Edinburg Review, Gramsci, II, p. 73, cit. a partir de MILIBAND, 1979, p. 139; grifos meus.
[4] “Ao todo, Gramsci escreveu quatorze parágrafos com alguma referência a Michels”. São eles: Quaderni 2, § 45, § 75 e § 93; Q 3, § 59; Q 6, § 97; Q 7, § 12 e § 64; Q 8, § 148; Q 9, § 142; Q 11, § 25, § 26 e § 66; Q 13, § 29 e Q 13, § 33. “Dentre estes parágrafos existem sete nos quais há referência à obra de Michels, sendo que alguns só apresentam uma referência ocasional e em outros já há um debate da obra do autor. E os outros sete parágrafos são aqueles nos quais Gramsci só fez referência a algum conceito de Michels – na sua maior parte, ao conceito de chefe carismático. Entre estes textos, há apenas um texto A, oito textos B e cinco textos C. A principal nota crítica de Gramsci a Michels, é um texto B, do Caderno 2 (§ 75), escrito entre 1929 e maio de 1930” (FERNANDES, 2011, p. 17). Como meu comentário não tem uma função exegética, utilizo a edição temática dos Quaderni, especificamente o volume publicado no Brasil como Maquiavel, a política e o Estado moderno (GRAMSCI, 1984, p. 103-111).
[5] Tomo como referência para essa ideia os trabalhos Que fazer? (1902) e Um passo a frente, dois passos atrás (1904).
[6] Este é o título do livro em português adotado neste dossiê por razões de uniformidade. A tradução disponível no Brasil foi feita pela editora UnB em 1982 a partir da edição francesa. A primeira versão do livro em francês apareceu em 1914 e essa tradução foi feita tendo como base a primeira edição italiana do texto. Falta aí toda uma parte e a totalidade das notas (a tradução norte-americana da Free Press, de 1962, também tem como base a edição francesa abreviada). Em 1971 a editora Flammarion reeditou o livro conservando o título de 1914 – Les partis politiques; essai sur les tendances oligarchiques des démocraties – que é um tanto diferente do original alemão: Zur Soziologie des Parteiwesens in der modernen Demokratie (Untersuchungen über die oligarchischen Tendenzen des Gruppenlebens) [Sobre a sociologia do sistema de partidos na democracia moderna (estudos das tendências oligárquicas de vida em grupo)]. Uma segunda edição alemã aumentada apareceu em 1925 e este é o texto estabelecido. Em 1966 foi publicada uma tradução italiana a partir dessa última edição: La sociologia del partito politico nella democrazia moderna (Bologna: Il Mulino) com um importante prefácio de Juan Linz. Informações bibliográficas a partir de POUTHIER, 1993, p. 814-815.
[7] Este seminário ocorreu no dia 28 de agosto de 2011 e contou com a participação dos colegas André Marenco (UFRGS), Rachel Meneguello (Unicamp), Valeriano Costa (Unicamp), Mário Grynszpan (FGV-RJ), Claudio Couto (FGV-SP), Pedro Ribeiro (UFSCar) e Maria do Socorro Braga (UFSCar). Para a realização desse evento foi fundamental o financiamento da Capes. Para a divulgação contamos ainda com o apoio da Associação Brasileira de Ciência Política, do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas (NUPPS) da USP e da Revista de Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná. 
.

9 de outubro de 2012

Resenha de “A esquerda que não teme dizer seu nome”, de Vladimir Safatle

[Carlos Barria/Reuters



Resenha de “A esquerda que não teme dizer seu nome”, de Vladimir Safatle
09/10/2012 | Publicado por Idelber Avelar 


Vladimir Safatle publicou um livro essencial para a esquerda brasileira, tanto no que afirma como no que deixa de afirmar: A esquerda que não teme dizer seu nome (São Paulo: Três Estrelas, 2012) é um libelo curto, de 85 páginas, em defesa do legado da esquerda e centrado em duas ideias básicas, que Safatle define como inegociáveis: a soberania popular e o igualitarismo. O maior mérito do livro é insistir que a esquerda não se acomode aos limites do possível e não se renda à mediocridade do realismo dos pequenos resultados. Uma esquerda que não tem medo de dizer seu nome deve, segundo Safatle, “falar com clareza que sua agenda consiste em superar a democracia parlamentar pela pulverização de mecanismos de poder de participação popular” (51). Esta é uma postura clássica da esquerda, de Marx a Lênin, de Gramsci a Althusser, e que é cada vez mais esquecida hoje, inclusive – e talvez especialmente – por aqueles que falam em nome de um ideário de esquerda. No Brasil, vivemos um período de cada vez mais descompasso entre, por um lado, as referências mobilizadas por certa esquerda, pertencentes a uma tradição revolucionária clássica e, por outro lado, a prática cotidiana dessa mesma esquerda, dedicada a justificar alianças eleitorais com a direita ou com o fisiologismo, legitimar projetos de remoções higienistas de pobres, celebrar a austeridade fiscal e defender projetos que nitidamente exacerbam o caráter monopolista do capitalismo brasileiro, como, por exemplo, a farra barrageira das empreiteiras na Amazônia. Só por falar claramente em superação da democracia parlamentar pela pulverização dos mecanismos de poder popular, o livro de Safatle já seria uma intervenção mais que bem-vinda no debate político brasileiro.

Mas os seus méritos não terminam aí e incluem a referência a um par conceitual cuja descontinuidade é ainda pouco pensada dentro da esquerda: Direito e Justiça. Para isso, Safatle se ancora em Jacques Derrida, para quem a Justiça jamais se reduz ao Direito, já que este tem uma existência positiva e é, portanto, desconstrutível, sendo a Justiça, ao contrário, um horizonte que nunca é redutível a um estado de coisas realmente existente, que jamais é sinônimo de um qualquer ordenamento jurídico ou um conjunto de leis. Se “nenhum ordenamento jurídico pode falar em nome do povo” (47), então impõe-se, para a esquerda que não tema dizer seu nome, outra relação com o conceito de legalidade. Eis aqui o momento de maior coragem do livro de Safatle: a defesa do direito popular à resistência, inclusive à resistência violenta, contra o poder. Na realidade, como mostra bem o autor, o direito ao exercício da soberania popular para além do Estado de Direito é parte constitutiva da tradição liberal, pelo menos desde John Locke. A própria Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789, segunda versão em 1793) estabelece que “todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente pelos homens livres” e que “a resistência à opressão é consequência dos outros direitos do homem”. As constituições francesa, alemã e de vários estados dos EUA contêm cláusulas semelhantes. O direito popular à rebelião violenta contra a opressão não é, portanto, uma exclusividade do pensamento de esquerda, nem muito menos uma ideia extremista, mas um princípio solidamente estabelecido na tradição liberal. É um grande mérito do livro insistir nesse direito numa época em que ele não é defendido sequer em comarcas que se autointitulam de esquerda e num país em que ainda se iguala, por um lado, a violência sistemática, arbitrária de um poder militar que usurpou o Estado e instalou uma ditadura de torturadores e, por outro, os atos de resistência, violentos ou não, daqueles que se sublevavam contra a tirania. A equação entre essas duas coisas é uma das práticas mais obscenas e características da desmemória brasileira, e a insistência de Safatle no direito popular à rebelião é um bom antídoto contra ela.

A soberania popular, incluindo o direito à rebelião violenta contra a opressão, divide espaço no livro com outro princípio, defendido por Safatle, a meu modo de ver, de forma bem mais problemática. Trata-se do princípio do igualitarismo, sem dúvida parte essencial de qualquer programa de esquerda que não tema dizer seu nome, mas que Safatle desmembra em duas metades bem diferentes: por um lado, a luta contra a desigualdade social e econômica, um ideário clássico da esquerda e, por outro, a ideia, bem mais discutível, de que a esquerda deve ser “indiferente às diferenças” no caso das “demandas de reconhecimento”. Na defesa da primeira ideia, Safatle manda um recado claro a certa esquerda brasileira que já se acomodou: “a esquerda deve saber encarnar a urgência daqueles que sentem mais claramente o sofrimento social advindo da precariedade do trabalho, da pauperização e das múltiplas formas de exclusão. Mas é difícil encarnar tal urgência quando se começa a viver em apartamentos de 6,5 milhões de reais” (16). Qualquer semelhança com certas figuras da esquerda partidária e sindical brasileira dos últimos anos não é mera coincidência.

Se nos ativermos ao que o termo igualitarismo sempre significou na tradição do pensamento de esquerda, pelo menos explicitamente, encontraremos essa primeira metade do raciocínio de Safatle, a luta por um mundo em que a apropriação da riqueza produzida não seja benefício de uns poucos. Safatle oferece números contundentes: o PIB dos EUA cresceu 36% entre 1973 e 1995, enquanto o salário-hora dos não executivos, no mesmo período, caiu 14%. Nos países em que as políticas neoliberais se aplicaram sem freios nas últimas décadas, como os EUA, o aumento da desigualdade foi abissal. Aqui, não há ambiguidade quanto ao papel da esquerda: inventar e construir um mundo em que sejam abolidas absurdas disparidades como a existente no Brasil, onde a diferença entre o maior e o menor salário de um banco chega a cem vezes. Até aqui, ninguém que se defina como esquerda – esquerda mesmo – poderia discordar de Safatle.

Na outra compreensão do termo “igualitarismo”, começam os problemas que, a meu ver, são graves no contexto brasileiro de hoje. Safatle dá um salto do igualitarismo como ideal de combate às desigualdades na distribuição de renda para “constatar o esgotamento da diferença como valor maior para a ação política” (27). O capítulo intitulado “Igualdade e a equação da indiferença” é um libelo contra o que Safatle vê como a “transformação da tolerância à diversidade cultural … no problema político fundamental”, o que teria, segundo ele, “provocado uma secundarização de questões marxistas tradicionais vinculadas à centralidade de processos de redistribuição e de conflito de classes na determinação da ação política” (28). Na verdade, Safatle só explicita o que vários pensadores de esquerda não têm tido como assumir nas últimas décadas: a recusa (ou incapacidade, formule-se como se queira) a pensar as diferenças étnicas, sexuais, de gênero e de orientação sexual como parte constitutiva de uma política de esquerda. Safatle chega ao ponto de criticar “aqueles que não veem relação alguma entre fortalecimento dos comunitarismos, retorno da ala mais reacionária do catolicismo e política multicultural das diferenças” (33), como se essa relação fosse óbvia ou estivesse demonstrada no livro. Segundo Safatle, esses três elementos seriam parte de uma mesma “procura pela reconstituição social de vínculos identitários”, na qual o perigo seria a “veleidade comunitarista ou a entificação da diferença” (34). Para o autor, as políticas ancoradas no reconhecimento das diferenças étnicas, nacionais, de gênero e sexuais “procuram atomizar a sociedade por meio de uma lógica estanque […] que funciona, basicamente, no plano cultural e ignora os planos político e econômico” (35). Eis aqui a repetição de outro lugar comum que a esquerda tem sido incapaz de repensar: a estranha ideia de que a luta em torno a direitos indígenas ou quilombolas, por exemplo, é “cultural” e a luta de esquerda clássica, centrada nas classes sociais, é “política”.

Circulam, nesse argumento, uma série de termos que, em seu sentido às vezes equívoco, dão uma dimensão do problema: “atomizar”, “veleidade comunitarista”, “entificação da diferença”, “cultural e não econômico” são alguns dos eixos do argumento do universalismo esquerdista. Por mais que o sentido dos termos seja confuso, como veremos, o argumento parece claro: no fundo, que essa história de colocar lutas afro-brasileiras, indígenas, feministas e anti-homofóbicas no mesmo plano das lutas tradicionais da esquerda, ancoradas na classe operária, só pode levar à “lógica estanque” da “atomização”. Aqui, é curioso notar que Safatle associe às questões identitárias com a ideia de “reconstituição”. Para populações como as indígenas brasileiras, nada poderia estar mais distante do que está em jogo do que a ideia de “reconstituição” de um vínculo identitário perdido. O próprio uso do termo “reconstituição” já é revelador de como a esquerda brasileira tem pensado as populações indígenas, sempre no registro do passado, como se as identidades fossem algo a se recuperar ou resgatar, e como se indígenas ou quilombolas não fossem protagonistas presentes nas lutas políticas brasileiras. A identificação, feita por Safatle, entre a “política cultural das diferenças” e o “fortalecimento dos comunitarismos” não se diferencia muito da retórica de comentaristas de direita como Demétrio Magnoli e Yvonne Maggie (sempre prontos a culpar os “particularismos” e os “racialistas” pela emergência dessa incômoda coisa chamada racismo, que não existia quando os “racialistas” negros estavam calados), por mais, claro, que Safatle seja um pensador muito mais sofisticado que qualquer um dos dois citados.

A prova dessa diferença na sofisticação é que Safatle antecipa essa objeção e insiste que “a crítica à sociedade multicultural aqui proposta nada tem a ver com o medo de que o cosmopolitismo e o relativismo cultural vão provocar uma erosão das bases de nossos valores ocidentais” (35). O medo descrito na oração subordinada é característico, como sabemos, da retórica da direita, especialmente, mas não só, na Europa. Mas aqui não custa introduzir uma dúvida: será? Será mesmo? A insistência, presente no livro de Safatle, na indispensabilidade do Estado não seria o mais ocidental dos valores? Será que o argumento de que as lutas “culturais” de indígenas, negros, mulheres e gays “atomiza” a luta verdadeiramente importante vem de matriz tão diferente assim do argumento de direita, de que esses “particularismos” são uma ameaça nefasta? Será que o receio da esquerda à la Safatle, de que a proliferação de diferenças solape o poder universalista do Estado realmente não tem nenhum parentesco com o receio da direita, de que a proliferação das diferenças solape “os valores ocidentais”? A pura e simples afirmação de que esse parentesco não existe não a torna verdadeira.

Segundo Safatle, “da esquerda espera-se um detalhamento minucioso dos processos governamentais que devem ser postos em prática para realizar suas propostas” (77). Mas impõe-se aqui a pergunta: como reconciliar isso com o postulado de que “o que devemos fazer é não recusar esses processos contingentes e inesperados que têm a força de romper o tempo” (75)? O que fazer quando a irrupção dos processos contingentes jogam por terra o “detalhamento minucioso” dos “processos governamentais”? Para usar um exemplo concreto e brasileiro: será que o governo de centro-esquerda, liderado por um partido supostamente de esquerda, está atento à enorme insatisfação que vai se gestando no interior dos movimentos populares, entre quilombolas, indígenas, gays, lésbicas, ribeirinhos, instâncias daquelas diferenças às quais, segundo Safatle, a esquerda deveria ser indiferente? Será que, quando e se essa insatisfação eclodir e “romper o tempo”, o “detalhamento minucioso dos processos governamentais” será capaz de contê-las ou representá-las? No caso que é mais provável, o negativo, que legitimidade restará a essa esquerda então?

Em A esquerda que não teme dizer seu nome, Safatle volta a repetir um conhecido mantra dessa corrente, a de que a filosofia da história de Hegel “não foi bem compreendida” (e que, aí já concluo eu, bastaria compreendê-la corretamente para que o problema se resolvesse). Pode ser que essa “má compreensão” seja um fato. Mas o que é fato cabal também é que a esquerda hegeliano-marxista brasileira jamais considerou com cuidado, ou refutou, argumentos como os do professor cubano radicado na Bahia, Carlos Moore que, em O marxismo e a questão racial, mostrou, com abundantes citações, como há um núcleo estruturalmente racista no interior do pensamento marxiano, visível nos elogios à escravidão como força modernizadora, nas muitas referências ao “atraso” de africanos, aborígenes, asiáticos e ameríndios, e nas justificativas à pilhagem e à carnificina fora da Europa como base para o desenvolvimento, para ficar em três exemplos óbvios.

Creio firmemente em ater-me ao texto que se discute e em não usar quaisquer menções às posições institucionais ou geográficas de seus autores como parte da argumentação. Mas aqui, não custa lembrar a filiação (intelectual, não é a pessoal que importa) de Safatle às correntes hegemônicas no pensamento de esquerda brasileiro do último século, a saber, as ciências humanas e sociais produzidas no estado de São Paulo, especialmente na USP. Safatle se instala na franja esquerda desse pensamento ao defender, de forma corajosa, os mecanismos do poder popular para além do Estado democrático de direito. Mas repete a endêmica incapacidade desse pensamento de refletir sobre as lutas das comunidades étnicas, raciais, de gênero e de orientação sexual a não ser como apêndices desimportantes à luta principal. A esquerda uspiana segue defendendo seu universalismo hegeliano-marxista sem considerar a hipótese de que ele seja menos universal do que parece.

Em outras palavras, e em bom português: a esquerda paulista precisa visitar o Xingu. A esquerda uspiana precisa considerar, a sério, a possibilidade de que as críticas a Hegel, Marx e Adorno não vêm somente de pessoas que “não entenderam” suas obras. A esquerda hegeliano-marxista tem que questionar esse estranho esquema de pensamento segundo o qual a luta de classes industrial é “política” e a luta dos quilombolas é “cultural”. Que a esquerda paulistana lute para desalojar a direita da prefeitura, mas que não se esqueça do que os seus aliados sul-matogrossenses fazem contra os Guarani Kaiowá (a estas alturas, quase todo mundo já descobriu, mas continua agindo como se não soubesse). Que a esquerda hegeliano-marxista repense o seu uso dos verbos “voltar”, “regressar”, “recuperar” e “restaurar” sempre que se trata da defesa das formas de vida indígenas. Ao contrário, o preço a pagar pode ser a crescente indistinção entre a esquerda que não teme dizer seu nome e a esquerda que não ousa dizer seu nome, curiosíssimo e revelador ato falho cometido por alguns perfis de esquerda na divulgação do ótimo livro de Safatle na internet.

http://revistaforum.com.br/idelberavelar/2012/10/09/resenha-de-a-esquerda-que-nao-teme-dizer-seu-nome-de-vladimir-safatle/
.

3 de outubro de 2012

verbete "corporativismo"

[Workers attending an automotive worker's union meeting.1958
Francis Miller. Life]


Adriano Codato


O sentido mais usual de corporativismo é ‘defesa dos próprios interesses em detrimento dos interesses da coletividade’. O termo é empregado quando uma categoria profissional organizada (uma “corporação”) mobiliza-se para garantir algum direito ou privilégio. Fala-se então em exercício de “espírito de corpo” – ou em “corporativismo” – geralmente em tom pejorativo. Essa ação pode envolver desde a pressão por reajustes salariais, até a criação de proteções contra a concorrência numa economia de mercado.

Num sentido mais específico, corporativismo é uma doutrina ideológica que defende que a ordem política, econômica e social não pode estar centrada nem no indivíduo e nas suas iniciativas (como pretende o liberalismo), nem nas classes sociais e no conflito entre elas (como sustenta o marxismo). Uma sociedade deve ser constituída por agrupamentos profissionais organizados (isto é, corporações) tutelados por um Estado autoritário. Nesse caso, a disputa política e/ou a representação de interesses sociais, por exemplo, não deveriam ser feitas por meio de partidos políticos. Os partidos segmentam a sociedade em muitas “partes” (essa é a origem do nome), incentivando a concorrência pelo poder e o conflito social com base em projetos ideológicos muito diferentes entre si. Ao contrário, se os indivíduos e seus interesses forem reunidos em grandes corporações profissionais (empresários da indústria, trabalhadores do comércio, profissionais liberais, etc.), o Estado pode tanto regular a competição econômica (fixando salários e preços) como atuar preventivamente contra a luta de classes (conciliando interesses contraditórios). A colaboração entre as classes é uma das ideias-força dessa doutrina. O corporativismo tem assim um sentido claramente autoritário e anticapitalista, ou ao menos antimoderno, já que se contrapõe às instituições características da sociedade industrial: mercado, conflito social, concorrência econômica, etc.

[continua...]

Referência:

CODATO, A. CORPORATIVISMO. Teixeira, Francisco M. P. coord. DICIONÁRIO BÁSICO DE SOCIOLOGIA. São Paulo: Global Editora, 2012 (no prelo).
.

2 de outubro de 2012

Clinical Chemistry Guide to Scientific Writing

[Nova Iorque.
Rafael Bertelli] 



[os textos do Guia também estão disponíveis em português; fuce que você acha]


Clinical Chemistry is pleased to present the Clinical Chemistry Guide to Scientific Writing, a series of educational articles on how to design and write scientific research papers for publication. These articles will help authors, educators, researchers, training program directors, and other professionals write more clearly and effectively, thereby improving their chances for success. We encourage educators and training program directors to use them as a teaching aid, and provide a link to them on their own Web sites.

These articles are easy to read and humorous at times, yet are full of useful information and examples to illustrate important points. Because the articles will benefit anyone interested in scientific writing, we are making them available not only to subscribers, but to all scientists. Translations into Chinese and Spanish are available. We welcome your feedback and suggestions regarding aspects of the writing process about which you would like to learn more.

Full-text links to the Guide to Scientific Writing:


fonte: http://www.aacc.org/publications/clin_chem/ccgsw/Pages/default.aspx
.