[A statue of Karl Marx.
Moscow, 1961. James
Whitmore. Life]
O Estado de S. Paulo
Aliás
11 out. 2009
José Arthur Giannotti
Professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do Cebrap. É autor, entre outros, de Trabalho e Reflexão e Origens da Dialética do Trabalho. Este texto é o prefácio à segunda edição do livro Marx - Vida e Obra, agora renomeado Marx - Além do Marxismo (L&PM Pocket)
Minha obsessão em estudar Marx como clássico sempre esteve ligada ao projeto de examinar suas teses em vista das aberturas teóricas e práticas que propiciam. Nunca as vi como um sistema fechado, até mesmo O Capital, sua obra máxima, atira em várias direções, e tenho fortes suspeitas de que não foi por falta de tempo que restou inacabada.
O próprio Marx se recusava a ser identificado como marxista. Suas teses valem antes de tudo para serem prosseguidas. É sintomático que, analisando os Grundrisse, Antonio Negri tenha escrito Marx Oltre Marx. Meu novo título, Marx - Além do Marxismo, obviamente inspirado neste último, tenta sublinhar que a base a ser negada é o marxismo cristalizado numa profissão de fé ou numa corrente de pensamento que não se deixa correr. Se a obra de Marx procura desvendar os meandros das estruturas capitalistas de produção, é seu próprio equipamento intelectual que precisa ser renovado, na medida em que o objeto de estudo explode em várias direções.
Meus críticos irão dizer que tento confinar o marxismo aos muros das universidades, que apenas sublinho o lado filosófico da obra de Marx, quando a tarefa, antes de compreender, é transformar o mundo combatendo o capital. O conhecimento não se integra numa práxis? Mas tanto o capital como o mundo explodiram em várias direções, de sorte que nem mesmo podemos falar deles se não levarmos em conta essa dispersão. Além do mais, como detectar o empuxo transformador quando, hoje em dia, o que se tomou como motor da história, o proletariado, não encontra a unidade do capital social total para se contrapor como classe unificada? Não é por isso que as lutas de classe de hoje se fazem por direitos, por conseguinte, repondo o Estado em vez de contestá-lo?
"Marxismo" e "socialismo" se tornaram palavras equívocas. Enquanto havia Estados e partidos que se diziam marxistas, a adesão a ambos tinha, ao menos, um sentido político razoavelmente determinado. Na medida, porém, em que a revolução desaparece do horizonte efetivo da política, que sentido pode ter se assumir como marxista ou socialista? Não somos todos social-democratas nos seus mais variados sentidos? Diante da obra de Marx, sobra apenas tentar pensá-la pela raiz, vale dizer, a partir dela, como somos obrigados a fazer quando procuramos entender Aristóteles ou Kant, ou até mesmo Wittgenstein. Quando alguém ainda se identifica como marxista ou socialista, sem explicar o sentido dessa invocação, logo desconfio que está querendo fazer política sem sujar as mãos no seu jogo efetivo, muitas vezes contentando-se em votar num candidato cuja irrelevância parece ser compensada pela vácua sonoridade de seu discurso.
A crise econômica atual recoloca o problema do automatismo do capital e das contradições do sistema capitalista de produção. Depois de uma longa hegemonia do pensamento liberal, volta-se a falar em Keynes, e Marx passa a ser olhado sob novas perspectivas. Não é significativo que este opúsculo venha a ser reeditado neste momento? Essa crise atualiza certos conceitos marxistas, em particular aquele de um modo de produção cuja reposição passa por crises específicas. Não sei como as ciências sociais contemporâneas lidarão com esse tópico. Mas não vejo como escapar desse conceito de modo de produção, a não ser deixando de lado a específica historicidade de nosso modo de se repor em sociedade. Não é o próprio conceito de história que precisa ser considerado, nos seus dois vetores, história categorial, de um lado, a história do vir a ser, de outro. Esta me parece a primeira grande contribuição de Marx para o pensamento social.
O sistema capitalista se mostrou muito mais lábil do que se imaginava. Por certo essa maleabilidade não apagou suas contradições, continua sendo um extraordinário processo de criação de riqueza e de miséria, mas desapareceu de cena aquele vetor da história, o proletariado, que poderia contestá-lo pela raiz. Além do mais, as experiências do socialismo real mostraram a impossibilidade de uma produção da riqueza social sem as informações produzidas pelo mercado. Para Marx, dado o mercado, ele naturalmente se desdobraria no sistema do capital. Nosso desafio é impedir essa continuidade, por conseguinte, dar liberdade suficiente para que os agentes marquem os preços de seus produtos, sem que sejam levados pelo automatismo de um sistema produtivo, que se transforma num robô visando produzir e acumular riquezas em vista da simples acumulação.
Diante da tarefa de conciliar dois processos contraditórios, uma economia de mercado e uma política que se legitime na medida em que impeça a alienação desses mesmos mercados, pouco vale lamentar-se diante da miséria criada pela exploração capitalista. Mas qual seria a prática adequada para lidar com esses processos contraditórios? Creio que, nessa explosão dos mercados e na necessidade de repô-los num patamar mais humano e racional, no fundo se percebe a urgência de uma política capaz de se controlar a si mesma, em resumo, uma política democrática.
Se a questão é política, então façamos política. Mas eficaz, que tome como ponto de partida as condições dos sistemas políticos atuais, e examinemos teórica e praticamente suas possibilidades de mudança. Foram desmoralizados os arautos do novo homem, ou políticos que imaginavam suprimir o Estado à medida que o reforçavam. Marx desconfiava da democracia formal e, depois da Comuna de Paris, acreditou que uma ditadura do proletariado seria mais democrática do que ela. Mas esse conceito de ditadura serviu para justificar o lema "Todo poder aos sovietes", e hoje sabemos o golpe que ele significou na democracia russa.
Não me parece mais adequado pensar numa política que desemboque numa negação política, a partir da qual uma nova história teria início. Desconfio dos profetas do "novo homem" ou dos Zaratustras da vida. Aceito a política como ela é, mas sempre procurando seu dever ser. Por conseguinte, política democrática, sempre inacabada, precisando começar de novo.
Sob esse ângulo privilegio os textos de Marx que mostram como ações humanas terminam tendo consequências imprevistas e até mesmo indesejadas por elas enquanto atos individualizados. Sob esse aspecto, interessa-me particularmente o conceito hegeliano de alienação, mas torcido de tal forma que escape dos perigos do idealismo absoluto. Daí a necessidade de ler esses textos com lupa fina, cuidando de detectar as torções por que passam os conceitos quando tratam de configurar uma nova forma de práxis dialética. Por isso, depois de minha introdução, achamos conveniente apresentar alguns textos do próprio Marx, mas traduzidos de tal forma que pelo menos deixam transparecer essas torções conceituais. É o que procura fazer a tradução de Luciano Codato. Tarefa difícil, a ser retomada pelos leitores, porque o próprio Marx, numa carta ao tradutor d"O Capital para o francês, aconselha que deixe de lado essas nuances, pois os franceses não são dados a elas. Espero que os leitores de língua portuguesa compreendam a importância filosófica dessas torções.
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