[William Gropper
Senate Scene
Lithograph]
Adriano Codato (UFPR/NUSP)
Seminário interno do NUSP
dezembro 2012
I.
Pierre Bourdieu
O
universo político (tal qual o universo burocrático, o ideológico, o econômico,
etc.) deve ser entendido segundo Bourdieu como um microcosmo, isto é, como “um pequeno mundo social relativamente
autônomo dentro do grande mundo social”. Essa
autonomia, se levada ao pé da letra, isto é, se entendida etimologicamente, indica que, mais frequentemente do que se imagina
ou se está disposto a aceitar, esse
mundo (ou “campo”) trabalha, conforme Bourdieu, “de acordo com sua própria lei,
seu próprio nomos”[1].
Isso
significa muito simplesmente que o campo político “possui em si mesmo o princípio e a regra do seu
funcionamento” (Bourdieu, 2000, p. 52). Bourdieu vai ainda mais longe nesse
assunto e sustenta que em qualquer caso “seria um erro subestimar a autonomia e
a eficácia específica de tudo o que acontece no campo político, reduzindo a
história propriamente política a uma espécie de manifestação epifenomênica das
forças econômicas e sociais”, como pretende o marxismo (Bourdieu, 1998, p.
175).
Esse
hermetismo que caracteriza e define o universo político implica ter presente,
na análise social, tanto os processos políticos e ideológicos de produção dos profissionais da política,
que são historicamente diferentes em formações sociais diferentes, quanto os procedimentos efetivos, isto é, o
“jogo político”, com suas técnicas de ação e de expressão (regras, posturas,
crenças, valores, hierarquias, etc.), que são a essência de qualquer campo e
constituem o pré-requisito para participar dele. A propósito da famosa frase de
Weber, para quem se pode viver da
política ou para a política, Bourdieu corrige a alternativa e adiciona outra
ideia: seria mais exato pensar que se possa “viver da política com a condição
de se viver para a política” (Bourdieu, 1998, p. 176), isto é, conforme se
conheça e se adira às regras do jogo, e não conforme uma vocação imaginada ou
(auto) atribuída.
Eu
acrescentaria que o oposto também é verdadeiro: só vive para a política aquele
que vive da política. Essa profissionalização é a condição para dedicar-se
integralmente seja à função de representação de interesses externos ao campo
político (os interesses sociais ou econômicos, por exemplo), seja à função de
representação dos próprios interesses, e mesmo à defesa dos interesses do campo
político enquanto tal, isto é, a advocacia da sua existência, da sua permanência,
dos seus regulamentos, códigos, princípios de seleção e exclusão, etc.
Como
Pierre Bourdieu argumentou, a autonomia
do campo político implica a existência de interesses corporativos,
interesses esses “que são definidos pela lógica do jogo e não pelos mandantes”
do jogo (Bourdieu, 2004, p. 200). Assim, os agentes políticos “servem os
interesses dos seus clientes na medida em que (e só nessa medida) se servem também ao servi-los”. Isso significa que
“a relação que os vendedores profissionais dos serviços políticos (homens
políticos, jornalistas políticos etc.) mantêm com seus clientes é sempre
mediada [...] pela relação que eles mantêm com seus concorrentes” (Bourdieu,
1998, p. 177, grifo do autor).
Disso
se pode concluir que o problema da representação não se coloca mais conforme o
princípio formulado por Weber (1994), isto é, como um problema em geral em
torno de duas proposições excludentes (os políticos ou representam a si mesmos,
ou representam os outros), mas como duas realidades ora justapostas, ora
sobrepostas.
Há,
portanto, no mínimo três grandes
questões que decorrem dessa interpretação do mundo político e de sua
relação com o mundo social.
A. A primeira questão refere-se à relação efetiva entre a esfera das
práticas políticas e a esfera dos interesses sociais.
Só
é possível pensar na autonomia dos representantes
políticos tendo como suposto – seja lógico, seja histórico – a autonomia do próprio campo da representação política.
Recorrendo a uma imagem a fim de ilustrar a ideia: os jogadores (os políticos)
e o jogo (a função de representação) pressupõem a existência do tabuleiro (o
campo).
B. A segunda questão refere-se à natureza da relação entre todos os
jogadores no espaço social ou, para simplificar, entre a “elite política” e a
“elite social”.
Essa
relação pode ser pensada em termos subjetivos (a origem social da elite política) ou em termos objetivos (a função social da elite política no jogo
político). O entusiasmo diante de uma ou de outra ideia é a razão da
divergência principal da polêmica Miliband-Poulantzas[2].
C. A terceira questão refere-se às condições sociais e históricas de
produção dos próprios jogadores.
A
autonomia do campo (e do jogo) político é a condição para produzir a profissão política e seus especialistas:
os profissionais da política. Quanto
menos diletantes, mais tendem a desenvolver interesses “corporativos” – ou,
para falar como Weber, a buscar “o poder pelo poder” (1994); quanto mais
interessados estão em si próprios, mais tendem a reforçar e ampliar aquela
autonomia.
Conforme
esse raciocínio, a questão fundamental dessa sociologia seria, portanto,
compreender e explicar a “regra do jogo” (político), isto é, sua sócio-lógica implícita. É ela que
determina as propriedades do campo de jogo, fixa os pré-requisitos para
participar da partida (por exemplo: os backgrounds
sociais) e determina o perfil ideal (quem são) e a margem de manobra dos
jogadores, isto é, o que eles podem, ou não, fazer[3].
I.
Émile Durkheim
Não é possível ignorar que
escolhas no terreno político tendem a ser também (mas não só) comandadas pelo
instinto de sobrevivência política do Homo
politicus racional, para aproveitar a denominação de Weber.
Entretanto, boa parte do
problema não é a eleição das
preferências, mas a formação
(inconsciente) das preferências. Há, antes de tudo, um “conformismo lógico” (esticando e adaptando um pouco a ideia de E.
Durkheim[4])
atado a maneiras convergentes de refletir e agir, e que fundamenta, em cada
campo do mundo social ,
uma sensibilidade especial comum a todo grupo, um esprit de corps. Esse “corporativismo”,
a tradução disponível e imperfeita para o português da expressão, é, dirá
Bourdieu, “bem mais profundo que a simples solidariedade de interesses
compartilhados”[5],
já que é pré-reflexivo. O “corporativismo” é tão mais forte na classe política,
penso, quanto mais ameaçada de desintegração ela se vê ou se sente. As crises
políticas tendem por isso a reforçar antes de esgarçar o corporativismo (e o
conformismo) daqueles que têm algo a perder (ver a nota 3).
De onde esse corporativismo
provém? Seria útil diferenciar aqui o esprit
de corps, que decorre das posições objetivas ocupadas pelos agentes na
estrutura social (processo ou efeito ligado a uma lógica classista e à
gramática dos interesses de classe), do effet
de corps, processo derivado das posições ocupadas no “mercado” (onde o
critério distintivo e definidor é a profissão, ou melhor, o pertencimento a um
“corpo profissional”).
O effet de corps, postula Bourdieu, pode ser derivado ainda do
pertencimento a uma família, a uma parentela, a uma nacionalidade, a
associações disso e daquilo etc.; ele é também prerrogativa de agrupamentos de
tipo “clube”, muito restritos. Essa definição se encaixa a propósito no caso de
uma classe política bastante reduzida. O effet
de corps, esse sentido de reciprocidade, de pertença a um mesmo repertório
simbólico, produzido e garantido por uma identidade comum, é mais importante e
mais influente que o esprit de corps.
Quanto mais homogêneos forem os grupos considerados, prevê Bourdieu, mais seus
“efeitos sobre os corpos” dos agentes tendem a prevalecer e a triunfar; quanto
mais bem posicionados no espaço
social estão esses grupos, portanto, quanto maior “a
probabilidade das profissões funcionarem como corporações”, mais esses efeitos
tendem a aumentar[6].
Ao lado do “conformismo
lógico” que modela, encaixa e solda a consciência prática e a própria prática
dos agentes, há um “compromisso pragmático” entre os agentes políticos e a estrutura
de poder. Ele é diferente desse acordo tácito de consciências sobre as
regras de seus comportamentos sociais, essas crenças que instituem os crentes,
mas tão decisivo quanto, já que constitui também ou tanto mais uma precondição de funcionamento do mundo político.
O “compromisso pragmático”
(não encontrei uma expressão denotativa para a ideia) refere-se não aos
interesses subjetivos dos agentes
(que podem ser instituídos pelo esprit de
corps e reforçados pelo effet de
corps), mas aos interesses objetivos da estrutura política enquanto tal. Os
interesses da estrutura – ou melhor: os
interesses sociais inscritos objetivamente na estrutura política – não são
interesses a priori, intangíveis, ou
interesses permanentes, mas interesses na permanência. Eles antecedem e se
impõem aos propósitos (escolhas) e às prerrogativas (poder) dos agentes e aos
interesses que eles devem objetivamente representar. Essa realidade e essa
verdade devem ser reconhecidas (é preciso enfim comprometer-se com elas) e aceitas pragmaticamente antes mesmo de se entrar no jogo político, como
condição, aliás, para se entrar no jogo.
A sugestão de Raymundo Faoro
para interpretar o emblema político do II Império – ‘não há nada tão parecido
com um conservador quanto um liberal no poder’ – descreve bem melhor o axioma
animista aqui presumido de um “poder” acima dos poderes sociais:
[A frase
não diz] que o liberal transita para o campo conservador, sem rubores e sem
dramas de consciência, e vice-versa, em alusão ao presumido incaracterístico
dos partidos imperiais. O que se contém na frase célebre é coisa diversa: o
liberal, por obra do poder e quando no poder, atua, comanda e dirige como um
conservador, adjetivando no máximo sua filiação partidária. Não se trata do
descompromisso maquiavélico e oportunista de uma elite solidária, que, para
mandar, muda de camisa, contanto que mande e continue mandando. [...] O
liberal, se convertido em governo, cede
às estruturas e à ideologia que lhe permitem dirigir o leme, leme unicamente
feito para aquele navio, que só com ele pode navegar. Ele crê num dogma,
mas para frequentar a igreja, deve praticar o culto contrário, sob pena de
excomunhão eterna[7].
Quanto mais corporativa for a
classe política, isto é, quanto mais preocupada estiver em promover seus
interesses (“sua” ordem, “seu” poder, “suas” posições, “suas” ideias etc.),
mais a estrutura política irá constranger suas ações, só dando a ela o que ela
pode pedir. O conformismo não está no princípio da ação “racional” funcionando,
no caso, como motivo; o conformismo
lógico é o resultado final desse
compromisso pragmático com a estrutura política. Por isso ele pode ser
percebido, superficialmente, como interesse mútuo.
II.
Max Weber
Max
Weber já havia tratado dos “jogadores” – os políticos – e da transformação de
seu perfil social com a instituição do sufrágio universal (uma mudança de regra
do jogo, portanto) e com a necessidade, daí derivada, de organizar sobre novas
bases o exercício dos direitos políticos.
A
conversão da associação de notáveis locais (gentlemen),
indivíduos ilustres pela posição que ocupavam na hierarquia social, em máquina
partidária corresponde, conforme sua tipologia, à passagem do comando da cena
política de dois tipos sociais ideais, os “notáveis” parlamentares e
extraparlamentares (para os quais a política era uma ocupação secundária e os
cargos no Estado tinham uma função honorífica) para o domínio dos políticos
profissionais. Esses poderiam ser funcionários permanentes do partido (como na
Alemanha) ou simplesmente intermediários de votos (o election agent, na
Inglaterra; o boss, nos Estados
Unidos).
Esses
tipos não são categorias abstratas, todavia. Nem foram criados por dedução
lógica. São expressões políticas e históricas de diferenças sociais reais.
Weber nota que na Inglaterra até 1868, precisamente, o empreendimento político
era um negócio exclusivo dos notáveis, dos importantes do lugar. Mas enquanto
os tories apoiavam-se no pastor, no
professor e no grande proprietário rural (suas bases sociais e fontes de
recrutamento), os whigs se apoiavam
no pregador, no administrador dos correios e nos artesãos (ver Weber, 1999, em
especial p. 558 e p. 551). Já na “América de Washington”, um gentleman era um proprietário (de
terras) ou um universitário (isto é, um indivíduo formado em um college) (p. 554). O boss, por sua vez, era “um empresário
político capitalista que, por sua conta e sob seu risco, junta[va] votos”.
Antes de converter-se em político profissional ele poderia ter sido advogado,
rentista ou “taberneiro” (p. 555). Por fim, o pessoal político dos partidos
burgueses liberais da Alemanha resultava “de um peculiar casamento” entre
financistas e literatos, sobretudo professores.
Nesse
sentido, falar em políticos de carreira ou em mundo político, interesses
políticos, interesses dos políticos, etc., não deve dar a entender que esse
grupo funcional não tenha uma “origem de classe”. O ponto é que a constatação
da origem de classe não significa, ipso
facto, que eles tenham de cumprir – sempre e de todo modo – a função de
representação dos interesses de classe (da classe da qual se originam ou de
outra classe qualquer). Podem, como é muito frequente, representar a si mesmos.
A autonomia aqui é completa.
III.
Karl Marx
Uma
infinidade de fórmulas utilizadas por Marx em suas obras sobre a política
europeia designa que a relação objetiva
classe/partido da classe, postulada pelo modelo teórico dos teóricos do
marxismo, é essencialmente diferente da relação subjetiva classe/grupo político, verificada pela análise política
marxiana. Para recordar: os “políticos paroquiais” (“politiqueiros alemães”, na
tradução brasileira), os “os republicanos azuis e vermelhos”, a “Montanha”, o
“partido da ordem” e suas três facções, “orleanistas”, “legitimistas” e
“bonapartistas” (Marx, 1994a, p. 516 e 442 et passim), são termos
que assinalam a existência e a persistência dos políticos como uma confraria à parte que não só merecem um
interesse em si mesmos; mas podem ser
estudados por si mesmos à medida em que suas práticas não são idênticas às
práticas da classe da qual provêm.
Uma
leitura menos literal de Marx faz surgir o mundo político como um mundo à
parte, dotado de uma lógica própria, códigos e princípios próprios. Embora ele
não seja real (no sentido do
‘realmente existente’), tem efeitos reais
(i.e., efetivos) sobre a existência e a consciência daqueles que vivem e operam
nesse mundo.
Há
uma anotação em A ideologia alemã a
respeito das “formas da consciência social” de religiosos, moralistas, juristas
e também dos políticos profissionais
que poderia ser lida nessa chave interpretativa. Trata-se de uma ideia, apenas
sugerida, mas que procura indicar a fonte da “autonomização da ocupação profissional pela divisão do trabalho”
social (a ênfase é de Marx) e seus (d)efeitos ideológicos.
Cada um considera seu próprio ofício como o
verdadeiro [ofício]. Sobre a relação entre seu ofício e a realidade, [os
homens] criam ilusões tão mais necessárias quanto mais condicionadas [elas são]
pela própria natureza do ofício. As relações [reais] na jurisprudência,
política etc. tornam-se conceitos na consciência [dos homens]; e como eles não
estão acima dessas relações, os conceitos das mesmas tornam-se ideias fixas na
sua cabeça; o juiz, por exemplo, aplica o Código, e por isso, para ele, a
legislação é tida como o verdadeiro motor ativo [das suas próprias práticas e
das práticas sociais] (Marx e Engels, 1984, p. 133-134)[8].
A
alienação profissional que afeta juízes, políticos de carreira, etc. produz fantasias
tanto mais persistentes quando mais especializadas são as exigências do ofício.
A consequência da profissionalização é
um insulamento natural e a autonomia que deriva disso faz com que esses agentes
ajam não como mandantes, mas conforme as regras do universo em que atuam.
Daí imaginarem – a atuarem conforme essa imaginação – que suas práticas não são
determinadas por nada que se passa fora desse mundo. Com isso chegamos ao
famoso tema do “cretinismo parlamentar”.
Terry
Eagleton tem toda razão em anotar que “o argumento marxista tradicional tem
sido que os interesses políticos derivam da localização de alguém nas relações
sociais de uma sociedade de classes” (Eagleton, 1997, p. 181). O que eu
pretendo relevar é que, posto isso, os interesses
dos políticos (esses profissionais da representação de interesses) e, por
extensão, suas decisões, seus comportamentos, seus valores não derivam exclusivamente de seu pertencimento de
classe (origem social) ou de seus vínculos de classe (posição social), à maneira
de figuras-fantoches projetadas a partir de uma lanterna mágica; mas de sua
“situação de classe”. E que isso tem a ver com as determinações específicas do
seu próprio universo.
Com
muita frequência se retém apenas o sentido negativo, crítico ou sarcástico
embutido na fórmula nada gentil, mas bastante exata que Marx utiliza para
designar a atuação desastrada da Assembleia Nacional em relação a Bonaparte no
ano do golpe de Estado: “cretinismo parlamentar”. Esse é o epíteto da
existência efetiva e da consciência falsificada dos legisladores políticos.
A
interpretação mais aceita sobre a matéria é que não se trata, absolutamente, de
uma aversão pela instituição do Parlamento ou pelo regime parlamentar,
conquistado enfim pelo sufrágio universal depois da revolução de 1848. Mas sim
do menosprezo “a certos membros seus, que creem ingenuamente ter importância,
enquanto que [na verdade] eles estão desligados da realidade e não têm poder
efetivo” (Barbier, 1992, p. 158 apud
Rubel, 1994, p. 1372).
O voto de censura de 18 de janeiro [de 1851]
atingiu os ministros, mas não o presidente. Ora, não fora o ministério, e sim o
presidente que havia demitido Changarnier. O partido da ordem deveria acusar o
próprio Bonaparte? Em razão das suas veleidades de restauração? Aqueles não
faziam senão juntar-se aos seus próprios apetites Em vista de sua conspiração,
com referência às paradas militares e à Sociedade de 10 de Dezembro? Eles
haviam de há muito enterrado esses temas sob simples ordens do dia. Devido à
destituição do herói de 29 de janeiro e de 13 de junho, do homem que em maio de
1850 ameaçou, no caso de ocorrer um levante, atear fogo em Paris? Seus aliados da
Montanha, assim como Cavaignac, não lhes permitiram sequer soerguer o
ex-baluarte da sociedade através de um atestado oficial de simpatia. Eles
próprios não podiam negar ao presidente o direito constitucional de demitir um
general. Enfureceram-se apenas porque ele utilizou de maneira não parlamentar o
seu direito constitucional. Não tinham eles com frequência utilizadas
inconstitucionalmente suas prerrogativas parlamentares, especialmente com
relação à abolição do sufrágio universal? Viram-se, portanto, reduzidos a atuar
estritamente dentro dos limites parlamentares. E foi necessário passar por
aquela doença peculiar que, desde 1848, exerceu sua ação destruidora em todo o
continente, o cretinismo parlamentar,
que encerra em um mundo imaginário aqueles que são contagiados por ela,
privando-os de todo senso comum, de toda recordação, de toda compreensão do
grosseiro mundo exterior – foi
necessário contaminar-se desse cretinismo parlamentar para que aqueles
que haviam destruído com suas próprias mãos todas as condições do poder
parlamentar, e que tinham necessariamente que destruí-las em sua luta com as
outras classes, considerassem ainda suas vitórias parlamentares como vitórias,
e acreditassem atingir o presidente investindo contra seus ministros. Deram-lhe
apenas a oportunidade de humilhar novamente a Assembleia Nacional aos olhos da
nação. A 20 de janeiro, o Moniteur
anunciava que a renúncia coletiva do ministério fora aceita (Marx, 1994a, p.
503).
De
acordo com Rubel (1994), Engels retomará a mesmíssima expressão para insultar a
esquerda da Assembleia de Frankfurt num dos artigos escritos por ele e
assinados por Marx para o NYDT em 27
de julho de 1852. Essa doença “fazia com que penetrasse nessas infortunadas
vítimas a convicção solene que o mundo inteiro, sua história e seu futuro, era
governado e determinado pela maioria deste corpo representativo particular que
tem a honra de contar com eles como membros” (Engels apud Rubel, 1994, p. 1372)[9].
A
reprovação de Marx dessa “doença”, que encerrava “num mundo imaginário todos
aqueles que estão contagiados por ela, privando-os de todo sentido, de toda
lembrança, de toda compreensão do rude mundo exterior”, i.e., do mundo social,
pode também ser interpretada como o
reconhecimento de que ações políticas não são necessariamente, e em todos os
casos, determinadas pela relação entre os ‘representantes’ (os agentes
políticos) e os ‘representados’ (as
classes sociais), mas pela relação de
concorrência ou confluência que automaticamente se estabelece entre os membros
do universo político em torno do controle do poder político, da ocupação dos
postos políticos, da supremacia dos respectivos grupos políticos etc. – isto é,
em torno dos seus interesses específicos (ou, como Marx mesmo diria, em
torno das “ideias fixas na sua cabeça”).
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Referências
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[1]
Etimologicamente: gr. autonomía
'direito de reger-se segundo leis próprias'; prov. sob infl. do fr. autonomie
'id.'; ver aut(o)- e –nomia (Houaiss).
O primeiro sentido que o Houaiss
consigna para “autonomia” é ‘capacidade
de se autogovernar’. Daí decorre quatro acepções: 1.1 termo jurídico: direito reconhecido a um país de se dirigir segundo
suas próprias leis; soberania; 1.2 faculdade que possui determinada
instituição de traçar as normas de sua conduta, sem que sinta imposições
restritivas de ordem estranha; 1.3 termo
da administração: direito de se administrar livremente, dentro de uma
organização mais vasta, regida por um poder central; 1.4 direito de um
indivíduo tomar decisões livremente; liberdade, independência moral ou
intelectual. O verbete é uma cópia quase literal do Caldas Aulete. O sentido principal de ‘autonomia’ neste dicionário
é: “Capacidade, faculdade ou direito (de indivíduo, grupo, instituição,
entidade etc.) de se autogovernar, de
tomar suas próprias decisões ou de agir livremente, sem interferência externa
(mesmo se organicamente incluído num âmbito maior de soberania)”.
[2]
Ver, em especial, Poulantzas, 1969 e Miliband, 1970.
[3]
Para permanecer na metáfora, Bourdieu nota que a adesão incondicional ao jogo e
às coisas que estão em jogo “não se manifesta nunca de modo tão claro como
quando o jogo chega a ser ameaçado enquanto tal” (Bourdieu, 1998, p. 173).
Traduzindo: todos esses atributos políticos tornam-se mais explícitos em
momentos de transformação ou transição política.
[4] Ver Durkheim, 2008, p. 86.
[5] Bourdieu, 1989, p. 111.
[7]
Faoro, 1994, p. 128-129; grifos meus. A frase do visconde de Albuquerque é,
literalmente, a seguinte: “nada tão parecido com um Saquarema como um Luzia no
poder”.
[8]
Tradução modificada; inserções entre colchetes minhas. A nota foi redigida
apenas por Marx.
[9]
Ver também de F. Engels, o volume Revolução
e contrarrevolução na Alemanha, em especial o cap. 8: A Assembleia
Constituinte Prussiana; A Assembleia Nacional de Frankfurt.
.