[History Of Communism
Date taken: 1961
Photographer: James Whitmore
Date taken: 1961
Photographer: James Whitmore
Life]
Márcio Mauri Kieller Gonçalves. Elite vermelha. O PCB no Paraná (1945-1964). Fundação Astrojildo Pereira e Contraponto, 2011.
Prefácio
Angelo Panebianco advertiu que os estudos sobre partidos políticos são em geral prisioneiros de dois tipos de simplificação. Uma derivada do que se poderia chamar de “preconceito sociológico” e outra do “preconceito teleológico”.
O preconceito sociológico consiste em tomar os partidos não como organizações específicas, com regras próprias e modos de funcionamento autônomos, que mereceriam ser estudados por si mesmos, mas como simples meios para representar interesses sociais. Há duas variantes desse erro. Ou se atribui o caráter de classe do partido à pretensa base social que ele deveria expressar (estimada essa em função do seu eleitorado potencial ou real), ou ao perfil sociográfico dos seus membros (filiados, militantes, dirigentes, parlamentares, etc.). Assim se torna simples falar em “partidos burgueses”, “partidos pequeno-burgueses”, “partidos operários”, etc.
Já o preconceito teleológico atribui arbitrariamente certos objetivos aos partidos políticos – vencer eleições, maximizar votos, organizar a classe, difundir sua ideologia, realizar seu programa, etc. – e procura explicar tudo o que um partido faz, assim como a forma pela qual ele se organiza, em função de um desses propósitos. Daí os carimbos de “partidos revolucionários”, “partidos reformistas”, “partidos democráticos”, etc.
Todas essas definições são correntes na literatura e consistentes com o mais puro senso comum. Mas se a pesquisa social não quiser apenas reproduzi-lo, ilustrando com mais dados essas supostas verdades, ela deve tomar como problemas – por exemplo: a evolução dos partidos, as características dos partidos, os objetivos dos partidos, as funções dos partidos – aquilo que tem aparecido como evidência incontestável. Daí que estudos sobre partidos de esquerda, principalmente, adquiram novo interesse quando realizados a partir de novos pressupostos.
Análises sobre partidos comunistas foram, na maior parte das vezes, prisioneiras desses dois preconceitos. Circunscrito por uma sorte de hábito mental dos estudiosos a pensá-lo como instrumento da organização, agregação e representação dos interesses e dos valores de um setor da sociedade com vistas à disputa pela conquista dos lugares-chave do poder, a lista de tópicos tratados, quando o assunto era o “partido revolucionário”, quase sempre variou em torno de três ou quatro temas obrigatórios: a afinidade entre as organizações partidárias e as ideologias políticas de esquerda, a questão da base social dos partidos de classe e o papel (positivo ou negativo) das suas lideranças sociais, o problema da representatividade política dos partidos anti-sistema, para ficarmos no principal das discussões. Mas, como notou Michael Löwy, em todo esse debate, esteve sempre presente no horizonte a questão da correspondência, ou não, entre três coisas: i) a consciência de classe (consciência “espontânea”, consciência “sindicalista”, consciência “socialista”), ii) o alcance das lutas sociais que ela poderia ou não empolgar (reformistas ou revolucionárias) e iii) as formas de organização propostas para assegurar a eficácia da ação transformadora (“partido de vanguarda”, em Lênin, “espontaneísmo” revolucionário, em Rosa, “partido-príncipe”, para Gramsci). Daí que, nesse registro, a teoria do partido deveria ser tão só a teoria das estratégias e dos mecanismos mediante os quais uma classe, ou uma aliança de classes, trataria de conquistar o poder de Estado e impor, pela via da revolução social, uma nova hegemonia. Como consequência, os estudos empíricos dos partidos comunistas tornaram-se, em sua maioria, investigações sobre os sucessos ou os insucessos de suas respectivas ações políticas em determinados contextos histórico-sociais.
Espremido pela relação ideal postulada pelos teóricos entre uma vanguarda de revolucionários profissionais e as massas populares, pela relação real entre a consciência verdadeiramente transformadora e a luta puramente econômica (“economicismo”), pela forma mais útil da organização política que se deveria “historicamente” adotar e pela questão da representatividade “orgânica” do partido da classe trabalhadora, o problema da composição social dos seus quadros dirigentes tendeu a desaparecer de vista. “O que fazer”, para citar um livro famoso, quando fazer, como fazer, sempre foi mais importante do que “quem” poderia fazê-lo em nome da classe.
Além de tudo, por uma dessas questões de terminologia, onde há mais ideologia que sociologia, a “elite partidária” dos partidos da esquerda comunista dificilmente foi chamada como tal, historiadores e sociólogos preferindo referir-se tanto às cúpulas como às bases indistintamente como “militantes comunistas”. Essa operação verbal, generosa com a atividade muitas vezes heroica dessas pessoas, elidiu a divisão, típica de todas as organizações estruturadas, entre dirigentes e dirigidos. A falta de foco na “oligarquia partidária”, para retomarmos a famosa expressão de Robert Michels, certamente não ajudou a compreender melhor os dilemas enfrentados pelas organizações da esquerda revolucionária.
É precisamente esse o assunto principal do livro de Marcio Kieller. Foram pesquisados oitenta e nove dirigentes do PCB do Paraná que, por algum momento entre 1945 e 1964, ocuparam cargos destacados no Partido. O perfil sócio-profissional dos comandantes desenhado ao final por Kieller colabora, de fato, para avançar no conhecimento histórico e sociológico dos comunistas brasileiros e também para responder, sempre à luz do caso tratado, uma das perguntas básicas dos estudos sobre grupos dirigentes: “Quais são os atributos sociais, econômicos, culturais e políticos dos membros de uma dada organização que atingiram suas posições institucionais de mando?”.
Já sabemos que origens sociais e familiares, trajetória profissional, carreira política, posições de status, entre outros elementos, estruturam disposições duráveis. Nesse sentido, compreender o social background desses indivíduos é um passo importante, ainda que não o único, para explicar seus comportamentos políticos, suas escolhas militantes e, no caso, a aprendizagem do métier de revolucionário profissional. A origem social pode, sim, inspirar o “estilo político” de um agente político. Por exemplo: pode influenciar as formas como ele encara o sistema político e como age para mudá-lo, seus valores sociais e a distância em relação aos valores dominantes, suas aspirações intelectuais e culturais, os tipos de interação que ele estabelece dentro do grupo de origem e fora dele, as funções que ele assume no interior da organização e a forma particular de exercê-las, etc. Por outro lado, pode-se argumentar que a conexão entre origem sócio-profissional e comportamento político militante não é uma relação necessária; mas até para negá-la é preciso estudar se há ou não essa conexão – a partir de casos empíricos.
Marcio Kieller tem presente esse problema em toda sua pesquisa e seu estudo deve ser lido como uma contribuição efetiva nesse campo. Aliando rigor documental, curiosidade histórica e um elogiável senso de proporções sobre os alcances dos seus achados, Kieller indaga as biografias dessa “elite vermelha” não para mostrar que o Partido era, afinal, tocado por indivíduos de classe média. Mas, ao invés, para mostrar que foram precisamente esses indivíduos de carne e osso, e não outros, que deram vida à organização, emprestando dela as condições concretas da sua vivência política.
Quem sabe essa perspectiva inspire, com o mesmo profissionalismo, muitos outros trabalhos do gênero.
Adriano Codato
Curitiba, outono de 2011.
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Curitiba, outono de 2011.