artigo recomendado
Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164.
Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy.
keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
20 de abril de 2009
As elites políticas de São Paulo em meados do século XX: uma análise prosopográfica
[Sao Paulo, September 1947.
Dmitri Kessel. Life]
Paper apresentado nas Jornadas Elites intelectuales y formación del Estado. Buenos Aires: Instituto de Desarrollo Económico y Social/ Universidad de SanAndrés/ Universidad Nacional de San Martín/ Instituto de Altos Estudios Sociales, abr. 2009.
Adriano Codato
O objetivo deste paper é descrever, com base nas biografias coletivas da elite, a configuração social e política dos grupos dirigentes de São Paulo durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil. O problema central é, em poucas palavras, o seguinte: dado certo tipo de recrutamento, qual o perfil da elite que integra, anima e ajuda a dirigir o Estado ditatorial?
Recorde que esse problema é tanto mais interessante no caso de São Paulo, e não apenas em função da força dos partidos oligárquicos, da influência nacional das lideranças políticas regionais, do conflito aberto com o governo federal que conduziu as duas partes a uma guerra em 1932 ou do monopólio da produção do café, a base da economia nacional no período. São Paulo é o cenário onde as relações entre a elite tradicional e o chefe ditatorial – Getúlio Vargas – deveriam assumir a figuração mais dramática entre todas; logo, mais paradigmática das dificuldades enfrentadas e das soluções adotadas para impor uma nova hierarquia no universo das elites políticas, em especial depois da Revolução de 1930.
O argumento que pretendo ilustrar é que o processo de mutação, ou melhor, o transformismo (Gramsci) das elites políticas brasileiras depois do Golpe de 1937 dependeu do sucesso de um filtro institucional que combinou certo grau de abertura do aparelho do Estado a certos indivíduos, com determinadas exigências políticas dirigidas a determinados grupos políticos remanescentes da República Oligárquica (1889-1930). Esse programa de recrutamento do pessoal político se deu em duas etapas: uma primeira, que é político-ideológica, ocorreu fora do Estado, na cena política e graças às lutas que definiram aliados e antagonistas segundo a lógica do tipo “amigo-inimigo”; e uma segunda, que é político-institucional, ocorreu não apenas dentro do Estado, mas por meio de seus aparelhos. Ambas foram responsáveis pela produção de uma nova classe política estadual (e não simplesmente pela cooptação da antiga), mais profissional que a anterior e menos dependente do estado-maior dos partidos regionais, apesar de saída deles. O profissionalismo do pessoal político é, possivelmente, o achado mais inesperado desta pesquisa.
As características típicas da nova classe política – paulista, no caso – derivam de uma peculiaridade deste contexto histórico que é mais que uma coincidência temporal. A desfiguração do perfil social dos antigos representantes políticos da classe dominante do estado embora seja simultânea ao processo de transformação capitalista da economia brasileira, não é, todavia, determinada por ele. A compreensão dessa alteração fundamental (que, em certa medida, viabiliza a própria transição de um modelo agro-exportador para um modelo urbano industrial) passa antes pelo entendimento do rearranjo das regras e dos procedimentos do jogo político e de sua institucionalização característica durante o Estado Novo. Ou melhor: passa fundamentalmente pela reconfiguração do “campo do poder” (Bourdieu).
O ponto a demonstrar empiricamente aqui é relativamente ambicioso e casa com a pretensão de realizar algo mais que uma sociografia da orgulhosa elite política paulista. Numa palavra: há um significativo rebaixamento dos coronéis e a promoção, ao primeiro plano da cena política estadual, dos bacharéis, palavra que designa os titulares de profissões liberais e não apenas de títulos universitários. O resultado é a produção de uma elite estratégica onde atributos adscritos (isto é, aqueles que foram acrescentados pela educação ou treinamento, por exemplo) contam mais para o controle de posições que os atributos adstritos (isto é, aqueles ligados a origem social) .
Todavia, a oposição tradicional entre notáveis e profissionais, diferenciação essa que engloba e define melhor aquela primeira entre coronéis e bacharéis, deve ser vista menos como um antagonismo entre dois tipos ideais, e mais como uma transformação induzida pelo regime a fim de afastar a idéia de uma progressão regular e planejada, marcada pela profissionalização desinteressada das práticas e pela racionalização da organização estatal. O Estado Novo não constitui, como é óbvio, a profissão política no Brasil, mas permite e, em certos casos, incentiva a profissionalização do pessoal político à disposição do regime ditatorial, já que ela é funcional à dominação da elite nacional sobre a outrora poderosa elite estadual.
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2 de abril de 2009
A dinâmica e o legado de 64
[Vice President Jango Goulart Rio Grande
do Sul Ranch, 1957. Dmitri Kessel. Life]
Um artigo de 15 anos atrás e atualíssimo (em vista da ausência de historiografia sobre o assunto). Incluí os links para melhor compreensão do texto e do contexto, fiz alguns comentários (sempre em cores diferentes), destaquei em negrito as passagens principais e listei algumas referências básicas sobre os assuntos tratados.
LUCIANO MARTINS
Folha de S. Paulo 31/03/1994 Página: 1-3
TENDÊNCIAS/DEBATES
A persistência até hoje de uma polaridade (golpe/revolução) para designar o que ocorreu em 64 não se explica apenas pela função valorativa (crítica ou laudatória, conforme o caso) que reveste cada um desses termos. Antes, parece indicar ainda uma dificuldade conceitual para entender a natureza da crise do início dos anos 60 e a arregimentação política que ela gerou.
Os grandes investimentos realizados no governo JK, que mudaram o perfil da economia, haviam sido possíveis graças ao concurso do capital estrangeiro e do financiamento estatal. Mas terminada a montagem da indústria de bens de consumo durável e a expansão dos setores de infra-estrutura, já eram outras as condições existentes.
De um lado, capital e financiamento estrangeiros se retraíram e, de outro, a utilização de recursos públicos não só já se havia tornado inflacionária como a disponibilidade desses recursos diminuiu consideravelmente, seja pela insensatez que foi a construção de Brasília, seja pelo desarmamento fiscal ocorrido durante o governo Janio Quadros (instrução 204 [da SUMOC]. Trata-se de uma medida de unificação das taxas de câmbio do dólar. Sobre a SUMOC, clique aqui). Estava posta, portanto, a questão do financiamento do desenvolvimento, como condição para a continuidade do processo.
Socialmente, os rápidos deslocamentos na posição relativa ocupada por estratos situados nas esferas média e superior do universo social geraram tensões sociais e inquietações latentes. A inflação e a queda no ritmo de crescimento potencializaram essas tensões e geraram um forte sentimento de insegurança quanto às perspectivas de futuro para as classes proprietárias e médias em ascensão.
Ao mesmo tempo, no outro extremo do espectro social criava-se a difusa e frustradora percepção de que os prometidos efeitos do progresso gerado pelos "50 anos em cinco" não se propagavam para as camadas inferiores da sociedade. Até porque os bens de alto valor unitário produzidos pela nova indústria conflitavam com o perfil de distribuição de renda então existente.
A resolução dessa crise socioeconômica se apresentava (ou era assim percebida) como um dilema: ampliar o mercado de consumo através de reformas sociais, de modo a adequá-lo à nova estrutura produtiva, ou estratificá-lo deliberadamente, de forma a circunscrever às esferas superiores e médias da distribuição da renda a demanda efetiva.
O Plano Trienal (1963) [para informações mais contextuais sobre o Plano de Furtado, clique aqui] foi uma tentativa de solucionar o dilema. Seu fracasso parece demonstrar (supondo que ele fosse economicamente viável) que já não haviam mais condições políticas para resolver o problema por meio de uma solução conciliatória.
É que a exacerbação social já se transformara em radicalização política e começava a se traduzir em crise de governabilidade. As classes proprietárias mobilizaram-se através de seus grupos de pressão (Ipes, Ibad etc.) [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais; Instituto Brasileiro de Ação Democrática], ao mesmo tempo que as classes médias saíam às ruas nas "marchas pela família e pela propriedade" [Marchas da Família com Deus pela Liberdade; para uma análise do movimento, clique aqui]. Os setores de esquerda, excitados pela Revolução Cubana, pensavam capitalizar as frustrações populares com a bandeira das reformas de base "na lei ou na marra".
Essa polarização interna [para algumas imagens, clique aqui], sobre a qual se projetavam os interesses da Guerra Fria, cindiu o populismo, privando-o de sua tradicional função mediadora. O governo Goulart tanto foi acusado de ceder à subversão da ordem econômica e política quanto de ser incapaz de promover as reformas sociais.
Sua fracassada tentativa de pedir o estado de sítio em outubro de 63, para fechar a brecha política, reprimindo tanto a direita quanto a esquerda, tornava claro que Goulart não mais controlava o rumo dos acontecimentos. Mais grave: os protagonistas em conflito pareciam convergir na crença da impossibilidade de resolvê-lo no quadro das instituições democráticas. [para uma análise que sustenta este ponto de vista como a causa principal do golpe, cf. Argelina Figueiredo. Democracia ou Reformas?]
É nesse quadro de polarização e impasse político, agravado pelos motins de sargentos e marinheiros, que se dá a intervenção militar.
A evidência histórica disponível demonstra que a conspiração militar, mesmo considerando suas ramificações políticas e a ação dos bolsões militares radicais existentes desde os anos 50, articula-se não em torno da tomada do poder (na forma clássica do golpe de Estado ), mas da resistência à intenção atribuída ao governo Goulart de mudar a configuração do poder: o fantasma da "república sindicalista".
O fato de a decisão dos dois generais de Minas de iniciar por conta própria as ações ofensivas ter contado com imediata cobertura civil e uma adesão militar em cascata, obrigou o núcleo decisório da conspiração (general Castello Branco) a passar à iniciativa para não perder o controle dos acontecimentos. [para uma compreensão melhor sobre como os militares viam a conjuntura, clique aqui]
Essa circunstância possibilitou aos militares reivindicarem para si, com função legitimadora, o papel de intérpretes de um amplo sentimento existente na sociedade. O que denominaram de "revolução" serviu para justificar sua permanência no poder e, em seguida, para redefinir os suportes sociais e políticos que lhes permitiram relançar o processo de desenvolvimento em outras bases.
Nesse sentido, 64 não foi nem um "golpe" nem uma "revolução". Seria, com mais propriedade, uma "contra-revolução preventiva". Muito embora seja importante assinalar que tanto os temores que alimentavam a inquietação social conservadora quanto as esperanças que animavam a retórica radical dos setores de esquerda se baseavam numa falsa percepção da realidade e da correlação de forças existente. A ausência de resistência e a facilidade com que se realizou a tomada do poder constituiu uma enorme surpresa para ambos os lados. [sobre os militares e o governo Goulart, clique aqui]
Os recursos utilizados pelos militares para institucionalizar o regime autoritário e a direção impressa ao processo econômico é que vão, em planos diferentes, criar novas realidades no país e constituir o legado de 64.
O legado social e econômico é contraditório. De um lado, é inegável que houve uma extraordinária expansão e integração da estrutura produtiva. De outro, o irresponsável endividamento interno e externo e o descaso pelas desigualdades sociais criaram entraves para o equilíbrio social e econômico do país.
Já o legado político é fortemente negativo. O arbítrio, o desrespeito aos direitos civis, a desmoralização do Direito e da Justiça como princípios de organização social, a nefanda prática da tortura etc. banalizaram a violência na sociedade e corromperam a noção de cidadania. Ao mesmo tempo, a introdução do princípio da irresponsabilidade política dos governantes face aos governados e as contínuas desorganizações da estrutura partidária deixaram graves seqüelas para a reconstrução democrática.
Houve quem entendesse que o advento nos anos 60 desses regimes burocrático-autoritários modernizantes na América Latina correspondiam a uma "necessidade" do aprofundamento do capitalismo na região. José Serra, no final dos anos 70, fez uma crítica devastadora dessa tese no que diz respeito ao Brasil [ver “As Desventuras do Economicismo: Três Teses Equivocadas sobre a Conexão entre Autoritarismo e Desenvolvimento”. Dados, n. 20, 1979, pp. 3-45]. E se é inegável que, sob o regime autoritário, ocorreu uma generalização sem precedentes do "ethos" capitalista no país, nada autoriza afirmar a existência de uma relação causal entre esses dois fenômenos. É provável que ainda se tenha que esperar algum tempo para que desvendar o verdadeiro significado histórico de 64.
LUCIANO MARTINS DE ALMEIDA, 73, sociólogo, foi professor titular de ciência política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Escreveu Estado Capitalista e Burocracia no Brasil Pós-64, entre outros livros.
referências bibliográficas para entender melhor o texto:
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rev. Bras. Hist , vol.24, n.47, pp. 29-60, 2004.
FIGUEIREDO, Argelina Cheilub. Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política: 1961-1964. São Paulo, Paz e Guerra, 1993.
MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 28, n. 55, jun. 2008.
MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 23, n. 67, jun. 2008.
SANFELICE, José Luís. O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais. Cad. CEDES, Campinas, v. 28, n. 76, dez. 2008.
SILVA, Ricardo. Planejamento econômico e crise política: do esgotamento do plano de desenvolvimento ao malogro dos programas de estabilização. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, n. 14, jun. 2000.
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.
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do Sul Ranch, 1957. Dmitri Kessel. Life]
Um artigo de 15 anos atrás e atualíssimo (em vista da ausência de historiografia sobre o assunto). Incluí os links para melhor compreensão do texto e do contexto, fiz alguns comentários (sempre em cores diferentes), destaquei em negrito as passagens principais e listei algumas referências básicas sobre os assuntos tratados.
LUCIANO MARTINS
Folha de S. Paulo 31/03/1994 Página: 1-3
TENDÊNCIAS/DEBATES
A persistência até hoje de uma polaridade (golpe/revolução) para designar o que ocorreu em 64 não se explica apenas pela função valorativa (crítica ou laudatória, conforme o caso) que reveste cada um desses termos. Antes, parece indicar ainda uma dificuldade conceitual para entender a natureza da crise do início dos anos 60 e a arregimentação política que ela gerou.
Os grandes investimentos realizados no governo JK, que mudaram o perfil da economia, haviam sido possíveis graças ao concurso do capital estrangeiro e do financiamento estatal. Mas terminada a montagem da indústria de bens de consumo durável e a expansão dos setores de infra-estrutura, já eram outras as condições existentes.
De um lado, capital e financiamento estrangeiros se retraíram e, de outro, a utilização de recursos públicos não só já se havia tornado inflacionária como a disponibilidade desses recursos diminuiu consideravelmente, seja pela insensatez que foi a construção de Brasília, seja pelo desarmamento fiscal ocorrido durante o governo Janio Quadros (instrução 204 [da SUMOC]. Trata-se de uma medida de unificação das taxas de câmbio do dólar. Sobre a SUMOC, clique aqui). Estava posta, portanto, a questão do financiamento do desenvolvimento, como condição para a continuidade do processo.
Socialmente, os rápidos deslocamentos na posição relativa ocupada por estratos situados nas esferas média e superior do universo social geraram tensões sociais e inquietações latentes. A inflação e a queda no ritmo de crescimento potencializaram essas tensões e geraram um forte sentimento de insegurança quanto às perspectivas de futuro para as classes proprietárias e médias em ascensão.
Ao mesmo tempo, no outro extremo do espectro social criava-se a difusa e frustradora percepção de que os prometidos efeitos do progresso gerado pelos "50 anos em cinco" não se propagavam para as camadas inferiores da sociedade. Até porque os bens de alto valor unitário produzidos pela nova indústria conflitavam com o perfil de distribuição de renda então existente.
A resolução dessa crise socioeconômica se apresentava (ou era assim percebida) como um dilema: ampliar o mercado de consumo através de reformas sociais, de modo a adequá-lo à nova estrutura produtiva, ou estratificá-lo deliberadamente, de forma a circunscrever às esferas superiores e médias da distribuição da renda a demanda efetiva.
O Plano Trienal (1963) [para informações mais contextuais sobre o Plano de Furtado, clique aqui] foi uma tentativa de solucionar o dilema. Seu fracasso parece demonstrar (supondo que ele fosse economicamente viável) que já não haviam mais condições políticas para resolver o problema por meio de uma solução conciliatória.
É que a exacerbação social já se transformara em radicalização política e começava a se traduzir em crise de governabilidade. As classes proprietárias mobilizaram-se através de seus grupos de pressão (Ipes, Ibad etc.) [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais; Instituto Brasileiro de Ação Democrática], ao mesmo tempo que as classes médias saíam às ruas nas "marchas pela família e pela propriedade" [Marchas da Família com Deus pela Liberdade; para uma análise do movimento, clique aqui]. Os setores de esquerda, excitados pela Revolução Cubana, pensavam capitalizar as frustrações populares com a bandeira das reformas de base "na lei ou na marra".
Essa polarização interna [para algumas imagens, clique aqui], sobre a qual se projetavam os interesses da Guerra Fria, cindiu o populismo, privando-o de sua tradicional função mediadora. O governo Goulart tanto foi acusado de ceder à subversão da ordem econômica e política quanto de ser incapaz de promover as reformas sociais.
Sua fracassada tentativa de pedir o estado de sítio em outubro de 63, para fechar a brecha política, reprimindo tanto a direita quanto a esquerda, tornava claro que Goulart não mais controlava o rumo dos acontecimentos. Mais grave: os protagonistas em conflito pareciam convergir na crença da impossibilidade de resolvê-lo no quadro das instituições democráticas. [para uma análise que sustenta este ponto de vista como a causa principal do golpe, cf. Argelina Figueiredo. Democracia ou Reformas?]
É nesse quadro de polarização e impasse político, agravado pelos motins de sargentos e marinheiros, que se dá a intervenção militar.
A evidência histórica disponível demonstra que a conspiração militar, mesmo considerando suas ramificações políticas e a ação dos bolsões militares radicais existentes desde os anos 50, articula-se não em torno da tomada do poder (na forma clássica do golpe de Estado ), mas da resistência à intenção atribuída ao governo Goulart de mudar a configuração do poder: o fantasma da "república sindicalista".
O fato de a decisão dos dois generais de Minas de iniciar por conta própria as ações ofensivas ter contado com imediata cobertura civil e uma adesão militar em cascata, obrigou o núcleo decisório da conspiração (general Castello Branco) a passar à iniciativa para não perder o controle dos acontecimentos. [para uma compreensão melhor sobre como os militares viam a conjuntura, clique aqui]
Essa circunstância possibilitou aos militares reivindicarem para si, com função legitimadora, o papel de intérpretes de um amplo sentimento existente na sociedade. O que denominaram de "revolução" serviu para justificar sua permanência no poder e, em seguida, para redefinir os suportes sociais e políticos que lhes permitiram relançar o processo de desenvolvimento em outras bases.
Nesse sentido, 64 não foi nem um "golpe" nem uma "revolução". Seria, com mais propriedade, uma "contra-revolução preventiva". Muito embora seja importante assinalar que tanto os temores que alimentavam a inquietação social conservadora quanto as esperanças que animavam a retórica radical dos setores de esquerda se baseavam numa falsa percepção da realidade e da correlação de forças existente. A ausência de resistência e a facilidade com que se realizou a tomada do poder constituiu uma enorme surpresa para ambos os lados. [sobre os militares e o governo Goulart, clique aqui]
Os recursos utilizados pelos militares para institucionalizar o regime autoritário e a direção impressa ao processo econômico é que vão, em planos diferentes, criar novas realidades no país e constituir o legado de 64.
O legado social e econômico é contraditório. De um lado, é inegável que houve uma extraordinária expansão e integração da estrutura produtiva. De outro, o irresponsável endividamento interno e externo e o descaso pelas desigualdades sociais criaram entraves para o equilíbrio social e econômico do país.
Já o legado político é fortemente negativo. O arbítrio, o desrespeito aos direitos civis, a desmoralização do Direito e da Justiça como princípios de organização social, a nefanda prática da tortura etc. banalizaram a violência na sociedade e corromperam a noção de cidadania. Ao mesmo tempo, a introdução do princípio da irresponsabilidade política dos governantes face aos governados e as contínuas desorganizações da estrutura partidária deixaram graves seqüelas para a reconstrução democrática.
Houve quem entendesse que o advento nos anos 60 desses regimes burocrático-autoritários modernizantes na América Latina correspondiam a uma "necessidade" do aprofundamento do capitalismo na região. José Serra, no final dos anos 70, fez uma crítica devastadora dessa tese no que diz respeito ao Brasil [ver “As Desventuras do Economicismo: Três Teses Equivocadas sobre a Conexão entre Autoritarismo e Desenvolvimento”. Dados, n. 20, 1979, pp. 3-45]. E se é inegável que, sob o regime autoritário, ocorreu uma generalização sem precedentes do "ethos" capitalista no país, nada autoriza afirmar a existência de uma relação causal entre esses dois fenômenos. É provável que ainda se tenha que esperar algum tempo para que desvendar o verdadeiro significado histórico de 64.
LUCIANO MARTINS DE ALMEIDA, 73, sociólogo, foi professor titular de ciência política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Escreveu Estado Capitalista e Burocracia no Brasil Pós-64, entre outros livros.
referências bibliográficas para entender melhor o texto:
FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rev. Bras. Hist , vol.24, n.47, pp. 29-60, 2004.
FIGUEIREDO, Argelina Cheilub. Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política: 1961-1964. São Paulo, Paz e Guerra, 1993.
MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 28, n. 55, jun. 2008.
MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 23, n. 67, jun. 2008.
SANFELICE, José Luís. O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais. Cad. CEDES, Campinas, v. 28, n. 76, dez. 2008.
SILVA, Ricardo. Planejamento econômico e crise política: do esgotamento do plano de desenvolvimento ao malogro dos programas de estabilização. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, n. 14, jun. 2000.
TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.
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