Adriano Codato
Umas das diferenças essenciais entre o regime do Estado Novo no Brasil (1937-1945) e os "totalitarismos" europeus (nazismo, fascismo) foi a inexistência de um partido único. Por quê?
A inexistência de um partido político e, principalmente, de um partido político nacional que unificasse a elite e sustentasse política e ideologicamente o regime ditatorial – uma dificuldade considerável do “modelo político autoritário” brasileiro – não era apenas a expressão das preferências doutrinárias do grupo no poder, grupo esse informado pela copiosa doutrina antiliberal então em voga nos anos 1930.
Embora esse sistema de idéias lhe fornecesse sempre que preciso as justificativas teóricas e os preceitos normativos para tanto, seja à custa do discurso “sociológico” de Oliveira Vianna, seja à custa das análises “histórico-comparativas” de Azevedo Amaral, seja enfim graças à sabedoria política e jurídica do Ministro Francisco Campos, a inexistência de um partido único e mesmo de alguma organização política na “sociedade civil” (isto é, fora do Estado e de sua área estrita de regulação e legislação) é a confissão plena de uma carência fundamental: a impossibilidade de fazer frente às oligarquias em dois terrenos estratégicos, o parlamentar e o eleitoral.
A sucessão de legiões, uniões, clubes etc. tentadas por Osvaldo Aranha entre 1930 e 1933 pode ser vista como se fossem ensaios sinceros, mas fracassados, de “organizar a Revolução”, isto é, combater nesse terreno e, por essa via, tentar monopolizar a cena política nacional(1).
Os muitos partidos regionais constituídos a partir das máquinas governamentais controladas pelos Interventores para concorrer às eleições federais de maio de 1933 e às eleições estaduais de outubro de 1934 (Partido Constitucionalista em São Paulo, Partido Progressista de Minas Gerais e assim por diante) são outra investida de Vargas e sua turma nesse campo privativo das oligarquias. A penúltima etapa desse empenho para agrupar os aliados numa organização política mais estável foi a aproximação efêmera (e polêmica) com a Ação Integralista Brasileira, em 1937, rapidamente descartada; e a última, o projeto do Interventor do Rio de Janeiro, bloqueado a tempo pelo próprio Presidente, de criar uma “Legião Cívica Nacional” em 1938, justamente para não encorajar antigos “regionalismos”. Leia-se: para não encorajar a ideologia regional e a capacidade de mobilização política que dela decorria(2).
Firmes por sua vez em seu liberalismo, as classes dirigentes se dispuseram a lutar nos domínios que conheciam e controlavam e a escrita do seu aparelho cultural mais combativo – O Estado de S. Paulo – é, em 1927, um presságio do que poderia vir mais adiante: “O regime do voto, com os seus defeitos, é o que menos desvirtua a vontade popular. sem eleições e sem partidos, os governos do Brasil serão a presa do primeiro soldado, ou de um tirano civil”(3).
A resposta das oligarquias, nesse contexto de ensaios organizacionais e certames ideológicos, consistiu em recorrer primeiro à estratégia das frentes únicas de partidos para enfrentar o tenentismo reformista (a Frente Única Paulista, que reunia o PD e o PRP, por exemplo, em 1932); depois a chapas e coligações para recuperar posições políticas quando os mecanismos eleitorais voltaram a funcionar (no caso, a Chapa Única por São Paulo Unido, de 1933, que era uma continuação do abençoado casamento anterior); em seguida à criação de novos partidos (como o Constitucionalista em São Paulo, em 1934), ou à evocação dos velhos (o Partido Republicano Paulista volta revigorado para os embates na Assembléia Constituinte estadual em 1935). Por fim, a uma frente política ampla – a União Democrática Brasileira – instrumento previdente quando a oligarquia “tradicional” lançou-se abertamente numa campanha eleitoral em 1937. Seu sucesso depois de 1933 em comandar estados importantes (São Paulo, Pernambuco, o Rio Grande do Sul), controlar o Parlamento nacional, orientar a Assembléia Constituinte e parir, conforme a visão conceituosa do Ministro da Justiça, o “monstruoso aparelhamento de 1934”, explica em parte por que na visão oficial “a Revolução de 30 só se operou, efetivamente, em 10 de novembro de 1937”(4).
Esse juízo é a melhor evidência de que além do conhecido diagnóstico sobre os vícios do poder legislativo, a “agravação dos dissídios partidários” e a “extremação [sic] de conflitos ideológicos”, a opção por um regime sem votações, sem partidos e sem políticos era uma estratégia mais defensiva que ofensiva(5).
Notas:
(1) Osvaldo Aranha empenhou-se desde novembro de 1930 em criar um partido nacional para evitar a militarização do governo, a desagregação da revolução e enfrentar e neutralizar os partidos políticos “republicanos” (PRP, PRM, PRR etc.). Os exemplos são a Legião de Outubro (depois “Partido Revolucionário Nacional”), o Clube Três de Outubro e a União Cívica Brasileira. V. Anita Leocadia Prestes, Tenentismo pós-30: continuidade ou ruptura? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 53-85.
(2) Na entrada do dia 4 de junho de 1938 de seu diário, o Presidente anotou: “Dei para trás nas legiões que estavam surgindo”. Elas tinham “o mesmo aspecto dos velhos partidos regionalistas”. Getúlio Vargas, Getúlio Vargas: diário. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995, vol. II, p. 138.
(3) Citação de O Estado de S. Paulo, 18 ago. 1927; apud Maria Helena Capelato, Os arautos do liberalismo: imprensa paulista, 1920-1945. São Paulo: Brasiliense, 1989, 161.
(4) Francisco Campos. Diretrizes do Estado nacional. In: _____. O Estado nacional: sua estrutura; seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 42 e 36, respectivamente.
(5) As expressões entre aspas são do preâmbulo da Constituição de 10 de novembro de 1937.
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