[Students at New York University. 1949
Photographer: Herbert Gehr. Life]
Photographer: Herbert Gehr. Life]
A política de cotas (sociais e "raciais", i.e., baseadas na cor), os vários programas de apliação do acesso à universidade pública e privada (REUNI, PROUNI, PROVAR etc.) desencadearam uma discussão tensa entre os intelectuais brasileiros, particularmente entre os profissionais das ciências sociais (em sentido amplo). Entidades estudantis também se pronunciaram, principalmente para combater os critérios baseados em atributos socio-econômicos ou "raciais".
É impossível analisar e comentar aqui todas as teses CONTRA as políticas de inclusão e universalização. Chamo a atenção, todavia, para um ponto recorrente e renitente: a defesa do critério do "mérito". A defesa dessa idéia como princípio, ou mais propriamente, a defesa desse princípio como uma idéia, em abstrato, desligado das CONDIÇÕES SOCIAIS de produção de indivíduos capazes de exibir mais méritos que outros, produz o que P. Bourdieu chamou de "racismo da inteligência". Abaixo, uma conferência de Bourdieu sobre. Destaquei em negrito as partes essenciais e em vermelho escuro as teses principais. Pretendo voltar a esse tema em outro post a fim de tratar de outro tipo de discriminação: o racismo de classe.
o racismo da inteligência
Pierre Bourdieu
Primeiramente eu gostaria de dizer que é preciso ter em mente que não há um racismo, mas vários racismos: há tantos racismos quantos grupos que precisem justificar sua existência como tal, o que constitui a função invariante dos racismos.
Parece-me muito importante analisar as formas de racismo que, sem dúvida, são as mais sutis, as mais irreconhecíveis, e portanto as mais raramente denunciadas, talvez porque os que comumente denunciam o racismo possuam certas propriedades que levam a esta forma de racismo.
Estou pensando no racismo da inteligência. O racismo da inteligência é um racismo da classe dominante que se distingue por uma enorme quantidade de propriedades daquilo que se costuma designar como racismo, isto é, o racismo pequeno-burguês que é o objetivo central da maior parte das críticas clássicas ao racismo, a começar pelas mais vigorosas, como a de Sartre [trad.: Reflexões sobre o racismo. Rio de Janeiro: Difel, 1968].
Este racismo é próprio de uma classe dominante cuja reprodução depende em parte da transmissão do capital cultural, capital herdado que tem como propriedade o fato de ser um capital incorporado, e portanto, aparentemente natural, inato. O racismo da inteligência é aquilo que os dominantes utilizam para produzir uma "teodicéia de seu próprio privilégio", como diz Weber, isto é, uma justificativa da ordem social onde eles dominam. É isto que faz com que os dominantes se sintam justificados de existir como dominantes; que eles se sintam como possuindo uma essência superior. Todo racismo é um essencialismo e o racismo da inteligência é a forma da sociodicéia característica de uma classe dominante cujo poder repousa em parte sobre a posse de títulos que, como os títulos escolares, são considerados como uma garantia de inteligência e que substituíram, em muitas sociedades, inclusive para o próprio acesso às posições de poder econômico, os antigos títulos, como os títulos de propriedade e os títulos de nobreza.
Este racismo deve também algumas de suas propriedades ao fato de que, tendo sido reforçadas as censuras em relação às formas de expressão grosseiras e brutais do racismo, a pulsão racista só pode se exprimir sob formas altamente eufemizadas e sob a máscara da denegação (no sentido da psicanálise): o G.R.E.C.E (Groupe de Recherche et Étude sur Ia Civilization Europèene) mantém um discurso onde o racismo é dito, mas sob uma forma que não o diz. Levado assim a um grau muito alto de eufemização, o racismo se torna quase irreconhecível [ver nota 1]. Os novos racistas são colocados diante de um problema de otimização: ou aumentar o conteúdo do racismo declarado do discurso (afirmando-se, por exemplo, a favor do eugenismo), mas com o risco de chocar e perder em comunicabilidade, em transmissibilidade, ou aceitar dizer pouco e sob uma forma altamente eufemizada, de acordo com as normas de censura em vigor (falando, por exemplo, de genética ou ecologia), e assim aumentar as chances de "passar" a mensagem fazendo-a passar desapercebida.
O modo de eufemização mais difundido hoje em dia é evidentemente a cientificidade aparente do discurso. Se o discurso científico é invocado para justificar o racismo da inteligência, não é apenas porque a ciência representa a forma dominante do discurso legítimo; é também e sobretudo porque um poder que se crê fundado na ciência, um poder de tipo tecnocrático, pede naturalmente à ciência para fundar o poder;
quando a inteligência é o que legitima para governar, o governo se pretende fundado na ciência e na competência "científica" dos governantes (pensamos no papel das ciências na seleção escolar, onde a matemática se tornou a medida de qualquer inteligência). A ciência pactua com aquilo que lhe pedem para justificar.
Dito isto, acho que se deve pura e simplesmente recusar o problema, no qual os psicólogos se deixaram encerrar, dos fundamentos biológicos ou psicológicos da "inteligência". E, antes de tentar resolver cientificamente o dilema, tentar fazer ciência com a própria questão; tentar analisar as condições sociais do surgimento deste tipo de dúvida e do racismo de classe que ela introduz.
De fato, o discurso do G.R.E.C.E. não passa da forma limite dos discursos mantidos há anos por certas associações de antigos alunos das grandes escolas, das propostas de chefes que se sentem fundados pela "inteligência" e que dominam uma sociedade fundada numa discriminação baseada na "inteligência", isto é, fundada naquilo que o sistema escolar mede sob o nome de inteligência. A inteligência é aquilo que os testes de inteligência medem, isto é, aquilo que o sistema escolar mede. Eis a primeira e a última palavra do debate que não poderá ser resolvido enquanto permanecermos no terreno da psicologia, porque a própria psicologia (ou pelo menos, os testes de inteligência) é o produto de determinações sociais que estão na origem do racismo da inteligência, racismo próprio das "elites" que têm vínculos com a [promoção] escolar, com uma classe dominante que consegue sua legitimidade pelas classificações escolares.
A classificação escolar é uma classificação social eufemizada, portanto naturalizada, absolutizada, uma classificação social que já sofreu uma censura, portanto uma alquimia, uma transformação tendendo a transformar as diferenças de classe em diferenças de "inteligência", de "dom", isto é, em diferenças de natureza.
As religiões jamais fizeram isto tão bem. A classificação escolar é uma discriminação social legitimada e que recebe a sanção da ciência. É lá que se encontra a psicologia e o reforço que ela deu desde o começo ao funcionamento do sistema escolar. O aparecimento de testes de inteligência, como o teste Binet-Simon, está ligado à escolarização obrigatória, com a entrada de alunos que o sistema de ensino não sabia como lidar, pois não eram "predispostos", "dotados", isto é, dotados por seu ambiente familiar das predisposições que o funcionamento comum do sistema escolar pressupõe: um capital cultural e uma boa vontade em relação às sanções escolares. Testes que medem a predisposição social exigida pela escola − daí seu valor preditivo dos sucessos escolares − são bons para legitimar com antecedência os vereditos escolares que os legitimam.
Por que esta recrudescência atual do racismo da inteligência? Talvez porque inúmeros professores, intelectuais − que sofreram em cheio os contragolpes da crise do sistema de ensino − estejam mais inclinados a exprimir ou a deixar que se exprimam sob as formas mais brutais aquilo que até então não passava de um elitismo da boa sociedade (quero dizer dos bons alunos).
Mas é preciso se perguntar também por que a pulsão que leva ao racismo da inteligência também aumentou. Acho que isto se deve em grande parte ao fato do sistema escolar ter se defrontado recentemente com problemas relativamente sem precedentes, como a entrada de pessoas desprovidas das predisposições socialmente constituídas que tacitamente são exigidas por ele; pessoas que sobretudo devido a seu número, desvalorizam os títulos escolares e desvalorizam até mesmo as funções que ocuparão graças a estes títulos. Daí o sonho, já realizado em alguns domínios, como o da medicina, do numerus clausus [número restrito*]. Todos os racismos se parecem. O numerus clausus é uma espécie de medida protecionista, análoga ao controle da imigração, uma resposta contra a obstrução que é suscitada pelo fantasma do número, da invasão pelo número.
Estamos sempre prontos a estigmatizar o estigmatizador, a denunciar o racismo elementar, "vulgar", do ressentimento pequeno-burguês. Mas é fácil demais. Temos que fazer o papel dos credores endividados e nos perguntarmos qual é a contribuição que os intelectuais dão ao racismo da inteligência. Seria bom estudar o papel dos médicos na medicalização, isto é, na naturalização das diferenças sociais, dos estigmas sociais, e o papel dos psicólogos, dos psiquiatras e dos psicanalistas na produção dos eufemismos que permitem designar os filhos de sub-proletários ou de emigrados de tal forma que os casos sociais se tornam casos psicológicos, as deficiências sociais, deficiências mentais, etc. Colocando de outra maneira, seria preciso analisar todas as formas de legitimação de segunda ordem que vêm redobrar a legitimação escolar como discriminação legítima, sem esquecer os discursos de aparência científica, o discurso psicológico e os próprios propósitos que nós temos.
*The numerus clausus is currently used in countries and universities where the number of applicants greatly exceeds the number of available places for students. This is the case in many countries of continental Europe. ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Numerus_clausus
Fonte: In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. p. 205-208. Intervenção no colóquio do MRAP, em maio de 1978, publicada em Cahiers Droit et Liberte (Races, societés et aptitudes: apports et limites de la science).
Disponível em:
Acesso em: 7 dez. 2008
O autor do site de onde tirei o texto recomenda a leitura também de:
Pierre Bourdieu, Classement, déclassement, reclassement.
Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
Volume 24 Numéro 24 pp. 2-22, 1978.
baixe o artigo aqui (em francês; em pdf).
4 comentários:
Lamento.
Andas-te a sublinhar o texto onde vias "as ideias importantes" MAS AS IDEIAS IMPORTANTES NEM SEQUER TRADUZIS-TE.
As verdadeiras ideias importantes pareceram-te promenores e mudas-te-as completamente na tradução!
O teu problema foi não teres percebido o texto que dizes ter lido. Depois ainda dizes que o compreendes-te e poes-te a destacar chavões com cores como se o autor quisesse que andasses a sublinhar e cortar o texto dele.
Ficou a prova para a posterioridade. Quem ler ve que não percebes-te o texto. Nem sequer tentas-te.
como tu traduzis-te:
"o discurso psicológico e os próprios propósitos que nós temos."
no original era:
"...and the very remarks we make ourselfs."
Le o texto. Vale a pena. Tem la coisas escondidas.
É pena teres trucidado o texto todo. No google books estava e tiraram.
"high-table elitism"
tens-te sentado a mesa?
caro anônimo,
apesar do tom grosseiro e descortês, agradeço por me chamar a atenção para eventuais problemas de traduçao.
nao conferi com o original e nao fui eu quem o traduziu.
Pelo visto vc leu em inglês?
Assim que tiver um tempo, confiro as discrepâncias que vc apontou.
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