Adriano Codato
[texto não publicado]
[Mario de Andrade,
por Loredano]
Qualquer livro que se examine sobre o pensamento político brasileiro coloca de saída a questão: existe algo que se possa chamar de “pensamento político brasileiro”?
O problema que a questão levanta não é saber se existe a disciplina universitária ‘pensamento político brasileiro’ (esse é um ponto indiscutível), ou se há uma literatura acadêmica especializada sobre o assunto, isto é, um conjunto de críticos e comentadores do pensamento nacional, mas a matéria de que trata a cadeira, ou seja, seu objeto.
Minha resposta é: não. Pelo menos não com esse nome. Pelas razões que menciono neste capítulo, é mais produtivo tomar as muitas interpretações sobre a política e a sociedade no Brasil como ideologias políticas ao invés de “pensamento político brasileiro”. Essa opção teórica e metodológica implica em duas coisas. Primeiro, diferenciar pensamento político, ideologia política e teoria política, rótulos quase sempre intercambiáveis. Segundo, expor e explicar o que se entende aqui por ideologia, já que esse é um termo controvertido. Seu emprego, sem maiores explicações, sugere um “saber” (um sistema de idéias) falso, parcial ou interessado.
A questão posta acima – existe um pensamento político brasileiro? – é menos fútil do que parece e a dificuldade reside nos dois termos da expressão: “pensamento político” e “brasileiro”.
Um pensamento político não é exatamente uma seqüência de autores dispostos em ordem cronológica. Um programa de estudos razoavelmente completo sobre o assunto poderia conter textos de Vieira, Bonifácio, Tavares Bastos, Tobias Barreto, Nabuco, Aberto Torres, Oliveira Vianna, Paulo Prado, Caio Prado, Furtado, Hélio Jaguaribe, por exemplo. Essa lista poderia engordar em qualquer direção. Escritores poderiam ser incluídos de acordo com os critérios mais diversos: por região, por período, por tema, por posição política etc. Ainda assim, não teríamos um sistema de pensamento. Não basta, portanto, haver uma série de “retratos do Brasil” mais ou menos fiéis realizados pelos seus intérpretes.
Mas se um “pensamento político” não pode ser simplesmente um conjunto de manifestações literárias sobre a política, apenas mudar o princípio de classificação das idéias e a ordem dos seus autores não resolve a questão. Se não, vejamos.
Um analista identificou e isolou certas linhagens existentes no pensamento político-social brasileiro. Essas linhagens, ou essas linhas de parentesco entre autores muito distantes no tempo e, aparentemente, muito diferentes ideologicamente, formariam o que ele chamou de “famílias intelectuais”. Tais famílias – os liberais-autoritários ou os reformistas-revolucionários – poderiam ser agrupadas conforme as mesmas preocupações, já que dariam origem a “formas de pensar” recorrentes. Por exemplo: a estirpe dos liberais-autoritários encarregou-se de fazer a crítica ao idealismo constitucional, uma praga que consiste em imaginar que se reformam os costumes e se aperfeiçoam as instituições mudando as leis; a estirpe dos reformistas-revolucionários assumiu por sua vez como tarefa fazer a crítica do conservantismo tradicional. Esse propósito está radicado em certo “radicalismo de classe média”, radicalismo esse esgrimido tanto por comunistas e socialistas, quanto por social-democratas. Ele é a base de todas as propostas de reformas econômicas e sociais no Brasil[1].
Ainda que essas duas críticas fossem encontráveis, explícita ou implicitamente, em convicções filosóficas, sociológicas e políticas heterogêneas, seria um exagero postular, com base em algumas coincidências, a existência de um programa intelectual comum equivalente a um pensamento político.
Nada disso diz respeito igualmente à existência de um pensamento brasileiro, isto é, um método de reflexão típico do Brasil. O fato de discutir “problemas brasileiros” não faz das considerações sobre a política um pensamento genuinamente nacional (como poderíamos dizer, por exemplo, do idealismo alemão, do racionalismo francês ou da economia política inglesa).
Da mesma forma que seria exagerado caracterizar maneiras diferentes de pensar o Brasil e discorrer sobre ele de “pensamento político brasileiro”, seria demasiado ver nessas manifestações culturais uma teoria política. Mesmo uma definição simples de “teoria” – um “conjunto de regras ou leis, mais ou menos sistematizadas, aplicadas a uma área específica” do conhecimento; ou ainda, a “doutrina ou sistema” de pensamento “resultantes dessas regras ou leis”[2] – seria, aqui, inadequada. Não existe uma “teoria política brasileira”.
Mas repare: sustentar que não há um pensamento político brasileiro não implica dizer que o que se escreveu sobre a política no Brasil do século XVII ao XXI é insuficiente e irrelevante. Essa literatura, muito rica e interessante, por sinal, possui algumas singularidades que fazem dela uma etapa obrigatória para que se compreenda o que fez o Brasil, “Brasil”.
Uma rápida inspeção no desenvolvimento intelectual nacional entre 1850 e 1950 (por exemplo) revelará a presença de alguns temas recorrentes, alguns problemas inabaláveis e certos preconceitos ideológicos que sobrevivem na doutrina política da pátria por gerações. Explico.
Mesmo considerando diferenças de estilo de obra para obra (uma prosa ora mais sociológica, ora mais ideológica), ou as obsessões específicas de determinadas “famílias intelectuais” (o predomínio do Estado sobre o mercado, para os liberais; o predomínio do mercado sobre o Estado, para os socialistas), um tema recorrente, isto é, que torna sempre a ser discutido não importa o autor, a época e sua posição política é o sentido da nacionalidade.
Essa é uma expressão importante para compreender o que vem a seguir. Isso porque a palavra “sentido”, presente na fórmula “sentido da nacionalidade”, tem aqui três acepções, as três encontráveis nos estudos políticos brasileiros: i) sentido como significado, ii) sentido como vocação e iii) sentido como direção. Essas acepções definem um conjunto de problemas próximos entre si – uma problemática – e comuns aos estudos políticos brasileiros.
Na primeira acepção, sentido como o significado da nacionalidade, o que os eruditos querem saber é o que, afinal de contas, nos define como um povo singular, original. Daí as perguntas: ‘o que é o Brasil?’; ‘quem são os brasileiros?’; ‘há uma essência nacional?’[3]. Essas interrogações serão respondidas de vários modos – somos mestiços, somos cordiais, somos católicos, somos malandros, por exemplo. A cada uma dessas respostas corresponderá, na fabulação dos nossos intelectuais, um tipo de estrutura política desejável ou simplesmente incontornável: precisamos de (ou merecemos) um Estado centralizado e forte, um governo autoritário, um chefe carismático e assim por diante.
Na segunda acepção, “sentido” entendido como vocação, propensão, pendor da nacionalidade – idéia essa que aparece na oração ‘qual a vocação do Brasil?’ –, o que se discute é se haveria uma espécie de tendência natural que orientaria o País. A inteligência nacional decretou que no terreno econômico, a vocação agrícola do Brasil se oporia à vocação industrial; no terreno político, a vocação autocrática atrapalharia a concretização da vocação democrática; e no terreno social, o tradicionalismo rejeitaria a modernidade.
Na terceira acepção, “sentido” entendido como direção, orientação, rumo, o sentido da nacionalidade, ou o caminho da nacionalidade, significa, nas várias interpretações sobre o Brasil, se perguntar: qual o ‘destino do País?’; enfim, ‘para onde vamos?’. Se na acepção anterior se sabe de antemão a resposta, qual é de fato a vocação do Brasil, nessa acepção a indefinição é total. As indagações do tipo ‘para onde vamos?’ são as indagações que se repararmos bem estão na base da famosa sentença: “Brasil, país do futuro”.
Mencionei acima que ao lado de temas recorrentes, como esse do sentido da nacionalidade, haveria, no “pensamento político brasileiro”, alguns problemas constantes e certos preconceitos ideológicos difíceis de destruir. Uma preocupação contínua, ligada ao futuro do País, é a preocupação com o atraso, a dependência, o subdesenvolvimento, qualquer nome que se dê à ausência de modernização[4]. Por sua vez, uma prevenção ou preconceito quase intransponível dos críticos sociais está na maneira de conceber a vida política ideal: uma sociedade sem conflito, uma política sem partidos, uma democracia sem povo.
Esse ponto permite ressaltar uma característica central da imaginação política brasileira, referida somente de passagem logo acima: sua extrema politização, ou mais propriamente, sua dificuldade em separar um discurso descritivo (o que é) de um discurso normativo (o que deve ser). Estudos que se incumbiram de discutir para onde vamos, em geral assumiram a tarefa de definir para onde deveríamos ir.
A vida intelectual nacional no século XX deu origem a uma série de visões sobre o Brasil. Mas deu origem também a uma série de programas políticos sobre como organizar a Nação, orientar o Povo, fortalecer o Estado, desenvolver o País. Assim, para entender melhor as concepções e as proposições de liberais, conservadores, progressistas, socialistas, autoritários etc. seria mais útil tomar o “pensamento político brasileiro” como um conjunto ora mais, ora menos articulado de ideologias teóricas (doutrinas) e de ideologias práticas (visões de mundo).
Essa opção metodológica requer um esclarecimento prévio sobre a noção de ideologia e seu uso na análise do pensamento ou da teoria política.
Notas
[1] Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007, p. 29-30.
[2] Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. CD-ROM. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[3] Como Fernando Novais observou, uma “problemática dessa natureza conferiu o ritmo do pensamento das diferentes gerações” intelectuais. “No período que se estende da Independência à Regência, os textos do Patriarca José Bonifácio são exemplares dessa inquietação. Durante a Belle Époque, são expressivas as figuras de Lima Barreto, Manuel Bonfim e, sobretudo, Euclides da Cunha [...]. Nos anos 30, estréiam os chamados intérpretes” do Brasil: Caio Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre. Fernando A. Novais, Aproximações: estudos de História e Historiografia. São Paulo: Cosac Naif, 2005, p. 266.
[4] Veja, sobre esse ponto, Luiz Guilherme Piva, Ladrilhadores e semeadores: a modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-1940). São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP. Ed. 34, 2000.
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