Associação Latino-americana de Ciência Política
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP
Campinas - SP - 4 a 6 de Setembro de 2006
O espaço político em Marx: a noção de cena política revisitada
Adriano Nervo Codato
(Departamento de Ciências Sociais/Universidade Federal do Paraná/Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira)
Trabalho apresentado no 3º Congresso Latino-americano de Ciência Política Área Temática AT 11 – O lugar da teoria democrática frente às desigualdades MESA 5 - MARXISMO Y TEORIA DEMOCRÁTICA Coordenador: José Arthur Giannotti, USP/Cebrap
Resumo:
No seu mais famoso livro sobre a política, O 18 Brumário de Luís Bonaparte, Marx oferece uma definição da democracia burguesa pouco comentada: esse regime “vive do debate”. Segundo o autor, na cena política democrática, “a luta dos oradores na tribuna evoca a luta dos escribas na imprensa; o clube de debates do Parlamento é necessariamente suplementado pelos clubes de debates dos salões e das tabernas; os representantes, que apelam constantemente para a opinião pública, dão à opinião pública o direito de expressar sua verdadeira opinião nas petições. O regime parlamentar deixa tudo à decisão das maiorias”. Para além da discussão sobre o regime político democrático, essa passagem permite pôr uma questão mais geral: como pensar o “espaço político” de um ponto de vista marxista? Minha hipótese é que o “espaço político” não é um campo (de lutas sociais por posições estratégicas), nem um sistema (de instituições funcionalmente integradas), nem uma estrutura jurídico-política (apreensível através dos seus efeitos – políticos, ideológicos – no mundo social). O “espaço político” pode ser concebido, pelo marxismo clássico, como uma forma. O exame dos escritos políticos de Marx permitiria afirmar que a cena política funciona, no espaço político-social, assim como a forma-mercadoria funciona no espaço econômico-social. Poder-se-ia falar então, propriamente, numa “forma-política”. A forma-política teria as mesmas propriedades da forma-mercadoria.
“Por detrás de todas [as] controvérsias esconde-se uma mesma e única questão fundamental: por que é que o domínio de classe não se mantém aquilo que é, a saber, a sujeição de uma parte da população por outra? Por que é que ele assume a forma de um domínio estatal oficial ou, o que vem a dar no mesmo, por que é que o aparelho de coação estatal não se constitui como aparelho privado da classe dominante, por que é que ele se separa desta última e assume a forma de um aparelho de poder público impessoal, destacado da sociedade?”
E. Pašukanis, A teoria geral do direito e o marxismo.
E. Pašukanis, A teoria geral do direito e o marxismo.
A indagação que motiva minha intervenção neste debate pode ser formulada nos termos seguintes: como pensar o “espaço político” de um ponto de vista marxista?
Minha hipótese de leitura do imenso material formado pelos escritos de Marx sobre a política européia, redigidos com grande assiduidade, mas sem muita sistematicidade, de fins da década de 1840 até meados da década de 1850, é que o “espaço político” não é um campo de lutas sociais por posições estratégicas; nem um sistema de instituições funcionalmente integradas; nem uma estrutura jurídico-política, apreensível através dos seus efeitos – políticos, ideológicos – no mundo social. O “espaço político” pode ser concebido, pelo marxismo clássico, como uma forma.
O exame dos textos políticos de Marx[1] permitiria afirmar que a cena política funciona, no espaço político-social, assim como a forma-mercadoria funciona no espaço econômico-social. Poder-se-ia falar então, propriamente, numa “forma-política”. E a forma-política teria as mesmas propriedades da forma-mercadoria.
Esta nota de leitura não pretende indagar sobre o estatuto do político na teoria social marxiana. Meu objetivo aqui é mais restrito e limitado. Gostaria de sugerir, a partir de O 18 Brumário de Luís Bonaparte (1852), outra interpretação a respeito da natureza, do lugar e da função da prática política (de classe) na obra de maturidade de Marx.
Possivelmente a maior vantagem em se estudar um autor quase banido das Ciências Sociais, fora de moda nos meios universitários “cosmopolitas” e completamente desacreditado em questões práticas, é que se pode lê-lo em paz. Isto é: sem que cada interpretação, reinterpretação, desconstrução etc. signifiquem um movimento a mais na luta ideológica, seja na política, seja na teoria. Essa atividade intelectual deve converter-se assim numa atitude científica: um comentário de texto sem, contudo, cair na tentação do marxismo ocidental: a primazia “do trabalho epistemológico centrado essencialmente nos problemas do método” (Anderson, 1976, p. 121).
I
As questões relativas ao poder e ao Estado foram reintroduzidas na problemática marxista – depois de o marxismo ocidental ter abandonando progressivamente os estudos sobre “a economia e a política pela filosofia” (Anderson, 1976, p. 43) – em fins dos anos 1960 por dois trabalhos essenciais: Pouvoir politique et classes sociales, de Nicos Poulantzas (publicado em 1968) e The State in Capitalist Society, de Ralph Miliband (publicado em 1969). Nos anos setenta o tema recebeu mais um impulso a partir da polêmica entre os últimos na New Left Review a propósito da relação entre o aparelho do Estado, a classe economicamente dominante e a elite estatal; assim como dos livros de Claus Offe e Jürgen Habermas, publicados na Alemanha simultaneamente aos debates da Teoria da Derivação ou da Escola Lógica do Capital (conduzidos por Wolfgang Müller, Christel Neusüss, Elmar Altvater e Joachim Hirsch). Na França, o estímulo veio primeiro dos estudos sobre o Capitalismo Monopolista de Estado (de Paul Boccara) e, em seguida, da proposição da Teoria da Regulação (por Michel Aglietta, Alain Lipietz, Robert Boyer e Bruno Théret)[2]. Nos Estados Unidos, James O’Connor e Erik Olin Wright incumbiram-se do desenvolvimento da teoria política marxista.
Tomando o marxismo clássico como ponto de partida, todos esses autores, em alguma medida, releram os textos canônicos de Marx e Engels, seja para extrair uma teoria específica do Estado capitalista (Miliband), seja para construir uma teoria geral do político (Poulantzas). Com graus de sofisticação variados, propuseram uma série de conceitos operacionais para compreender e explicar as relações concretas entre o Estado e a sociedade e entre o Estado e a economia contemporâneos. É o caso, por exemplo, das noções de “bloco no poder” (Poulantzas), “elite estatal” (Miliband), “seletividade estrutural” (Offe), “regime de acumulação” (Lipietz), “forma Estado” (Hirsch) e “tecnologia organizativa” (Therborn).
Uma das questões mais importantes e que constituiu tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada de algumas dessas formulações teóricas foi a questão da “autonomia relativa do Estado” capitalista, e O 18 Brumário de Luís Bonaparte, de Marx, tem sido celebrado como a referência principal para o estudo desse problema.
A leitura e a compreensão desse trabalho, que não é apenas um comentário sabido da política francesa de 1848 a 1851, permitiu ao marxismo, como se sabe, avançar em muitas direções, contrariando as acusações dos seus adversários – teóricos e ideológicos – a propósito do “intrumentalismo”, do “mecanicismo”, do “reducionismo” e do “economicismo” presentes na teoria social marxiana.
Entretanto, toda essa literatura produziu e impôs uma agenda de pesquisa excessivamente centrada na questão do “Estado” e no problema – incontornável – da relação entre o Estado e as classes dominantes. À medida que o poder de classe não poderia ser automaticamente traduzido em poder de Estado (Miliband, 1977), as conexões entre a “política” e a “economia” tornaram-se o assunto por excelência da “teoria do Estado”. E a principal conquista das releituras do trabalho de 1852 foi a afirmação da “autonomia” do Estado sobre a sociedade civil, mas de maneira um tanto vaga.
A esse respeito, penso que seja necessário separar, em rigor, três idéias complementares, mas distintas, presentes n’O 18 Brumário: (i) a idéia de autonomia (relativa) do político; (ii) a idéia de autonomia (relativa) da política; e (iii) a idéia de autonomia (relativa) do Estado[3].
Note-se que “relativa” tem, no caso presente, dois sentidos. A palavra designa em relação a que ou a quem alguma coisa é autônoma: autonomia da (atividade) política em relação à economia; autonomia do (nível jurídico-)político em relação ao (nível) econômico; autonomia do aparelho do Estado em relação à sociedade em geral ou às classes dominantes em particular. Aqui, portanto, a “autonomia” é absoluta, variando o segundo termo da equação. O outro sentido de “relativa” designa o grau, limitado, incompleto, parcial, do exercício dessa autonomia: a prática política nunca é completamente autônoma em relação à economia (ou mais apropriadamente: aos interesses econômicos das classes); o nível jurídico-político (a superestrutura) nunca é completamente autônomo em relação ao nível econômico (a infra-estrutura) – é a idéia do “todo social”; o Estado nunca é completamente autônomo em relação à “sociedade civil”.
É usual nas interpretações d’O 18 Brumário a fusão dessas proposições numa só ou a confusão que resulta ao se tomar um sentido pelo outro. Caso se queira afirmar a originalidade das teses de Marx sobre a política capitalista, a integridade lógico-argumentativa do texto e seu status como um trabalho de teoria política e de análise política (ao mesmo tempo), é necessário ter presente essas diferenças e suas implicações analíticas.
As nuanças de cada uma dessas três idéias deveriam ser mais bem desenvolvidas, o que não posso fazer aqui. Vou me limitar a destacar o problema da autonomia da política (i.e., da prática política) e tentar refletir sobre o modo marxista de pensá-la.
II
A autonomia da política designa precisamente a autonomia da prática política dos agentes sociais diante das práticas econômicas.
A prática política se exprime, institucionalmente, nos partidos, no Parlamento, na formação de facções exclusivamente políticas ou ideológicas (os «republicanos puros» (18 Br., p. 448)[4], por exemplo), e pode ser apreendida num espaço social especial: na cena política.
O que é a cena política?
Partindo do princípio de que é preciso evitar a confusão usual que (i) reduz as relações de classe às relações entre partidos (confusão típica da corrente dominante da Ciência Política atual) e (ii) que reduz a relação entre partidos às relações de classe (como reivindica a “ortodoxia”)[5], pode-se dizer que a cena política “é um lugar privilegiado, nas formações [sociais] capitalistas, da ação aberta das forças sociais através da sua representação partidária”[6].
Ou seja: é na cena política que as classes sociais agem (politicamente) e agem através de uma instituição própria (inventada no século XIX), os partidos políticos. É onde se poderia ler essa relação classe-partido. A cena política é um lugar, portanto, de desvelamento.
Mas ao mesmo tempo a cena política é o lugar de encobrimento, através do sistema de partidos e das relações entre eles, e das relações complexas que se estabelecem entre classe e partido[7].
Partindo dessa noção provisória de cena política – como um lugar ao mesmo tempo de desvelamento e encobrimento das relações entre classe e instituições políticas – podemos pensar que a atividade política tem não apenas um espaço próprio (“autônomo”), mas adquire um interesse por si mesma, isto é, pode constituir-se em objeto de reflexão específica – daí a possibilidade de uma “Ciência Política” marxista. A atividade política tem não apenas um espaço próprio (“autônomo”), mas adquire um interesse por si mesma: pode constituir-se em objeto de exposição e reflexão.
O 18 Brumário de Luís Bonaparte é então a descrição pormenorizada das ações dos indivíduos (Bonaparte, Berryer, Thiers, Cavaignac, Marrast, Ledru-Rollin), dos partidos políticos (democrata, republicano, da ordem), das organizações (Sociedade do 10 de Dezembro), dos grupos político-parlamentares (orleanistas, legitimistas, bonapartistas, republicanos formalistas, montagnards) e das várias tendências político-ideológicas da II República francesa. Desnecessário exaltar aqui as virtudes do livro como crônica política. O trabalho de Marx evidencia o interesse, para a observação dos processos políticos concretos, dos “atores” – i.e., os agentes sociais – e do “palco” onde transcorre a ação: a cena política.
Esse lugar ou espaço social exige, enquanto espaço social específico, um entendimento duplo: (i) uma percepção da evolução/transformação da cena política numa conjuntura concreta; e (ii) uma compreensão da sua função para a prática (e, principalmente, para a análise da prática) política de classe.
O primeiro ponto é o mais evidente e trata-se, resumidamente, do que N. Poulantzas designou como a periodização da cena política. Isto é, não somente a disposição simplista dos eventos/acontecimentos numa ordem cronológica, mas a sua reunião e divisão em fases distintas: o «Período de Fevereiro»; o «Período da Assembléia Nacional Constituinte»; o «Período da República Constitucional», com suas respectivas etapas intermediárias e subdivisões mais específicas (18 Br., p. 443 e p. 525-526.). Cada um desses intervalos designa a sucessão de diferentes formas de Estado e, no seu interior, de diferentes formas de regime[8].
Mas, já sabemos, O 18 Brumário é também explicação do teatro político, dessa «aparência superficial que dissimula a luta de classes» (18 Br., p. 464), é a reafirmação da «existência comum» contra o simples «nome» que as coisas em política adquirem (18 Br., p. 450), contra os rótulos que os partidos se auto-concedem, contra “as palavras de ordem, os figurinos” que vestem os atores (18 Br., p. 438). O diagnóstico de Marx do «cretinismo parlamentar», uma doença que desde 1848 encerrava «num mundo imaginário todos aqueles que, contagiados por ela, perdiam todo bom senso, toda memória e toda compreensão do rude mundo exterior» (18 Br., p. 503), não é precisamente uma advertência contra os males de se tomar o que parece pelo que é? Contra a “autonomia da política”, das suas leis exclusivas e movimentos próprios? E seu remédio não consiste em tecer o fio que liga as instituições (políticas) e as representações (ideológicas) à realidade? E essa realidade não são os interesses em última instância econômicos que agem por detrás da cena política? Esse é, por assim dizer, o trabalho prático do livro. Como se recorda, a variável independente na explicação é a “luta de classes”[9] e o trabalho de explanação é antes de tudo um trabalho de desmistificação – ou para recuperar a metáfora da primeira seção do livro, um esforço de desmascaramento[10].
Mas qual o princípio teórico que guia esse esforço de desmascaramento? A relação entre essência e aparência. Essa relação é particularmente complexa na cena política. Voltarei a ela logo adiante. Por ora quero enfatizar que, em Marx, é tendo presente essa noção teórica de cena política que se pode superar a mera descrição dos acontecimentos em nome da explicação dos processos. Isso já foi notado por vários comentadores.
Mas por que “cena”? O recurso de Marx n’O 18 Brumário a uma série de metáforas derivadas do teatro (“drama, comédia, tragédia, ato, entreato, personagem, cena, proscênio etc”[11]) indica precisamente, penso eu, que o espaço político é o espaço de uma “representação”. Nos dois sentidos que o vocábulo admite: é uma encenação e é o espaço de uma procuração (que o cidadão dá ao seu representante). Tal como na representação teatral, a noção de cena descreve aqui duas coisas, o proscênio e os bastidores. O proscênio é a parte da frente dos palcos dos teatros. Nós podemos chegar, por derivação, ao seu uso em sentido figurado: o lugar onde acontecem os fatos à vista de todos. Ele se opõe à parte de trás do palco, o fundo da cena, os bastidores. Metaforicamente: o lugar oculto, que funciona em segredo e que é ignorado pela maioria. Logo, o espaço daquilo que não é visível. Esse é um sentido possível da oposição, postulada pelo materialismo histórico, entre essência e aparência.
Todavia, a cena política não é apenas um lugar onde transcorre a ação – o palco das lutas entre forças puramente políticas. A cena política tem uma função. Ou melhor: é um “mecanismo”. É isso que é preciso reter agora.
Assim, é preciso observar as funções complexas da “cena política” tanto como realidade tangível (e seu papel na análise da história política francesa) quanto como noção teórica (e seu papel na análise da política em geral), para não tomá-la como simples projeção de uma realidade que é anterior a ela, independente dela e que é a sua essência.
Aqui seria interessante retomar o antagonismo entre essência e aparência para dar a ele um sentido diferente daquele exposto n’A Ideologia Alemã: como se recorda, para Marx e Engels “[...] todas as lutas no interior do Estado, a luta entre democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc., etc. são apenas as formas ilusórias nas quais se desenrolam as lutas reais entre as diferentes classes”[12].
Todavia, a equação filosofante que opõe verdadeiro (a luta de classes) e falso (a luta política) cede lugar, no pensamento posterior de Marx e do último Engels, a uma formulação mais completa, porque integra os deferentes níveis da realidade, e mais complexa, porque realiza essa integração dando um lugar mais ativo a essas “formas ilusórias”. Sem abandonar o termo – forma – cujo emprego poderia sugerir exatamente a dissociação que se quer evitar, entre o aspecto exterior e o conteúdo efetivo, a idéia de forma (forma política, forma ideológica etc.) irá adquirir, no Prefácio de 1859, uma nova tradução. A forma política será o espaço social de manifestação da luta de classes, e a forma ideológica, o meio de autoconsciência da luta de classes. Consideremos mais uma vez essa passagem:
“De formas de desenvolvimento dessas forças produtivas, essas relações [de produção] transformam-se em seus grilhões. Sobrevém então uma época de revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de tais transformações [“da base econômica” e da “enorme superestrutura”] é necessário distinguir sempre entre a transformação material das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o conduzem até o fim” (Marx, “Prefácio de 1859”, p. 25, grifos meus).
A cena política é um espaço social onde a aparência produz efeitos socialmente eficazes, repercutindo, de maneira decisiva, sobre as práticas políticas de classe:
«Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições sociais de existência ergue-se toda uma superestrutura de sentimentos, de ilusões, de modos de pensamento e de concepções filosóficas cujas expressões são infinitamente variadas. A classe inteira os cria e os molda a partir de seus fundamentos materiais e das condições sociais correspondentes. O indivíduo isolado, que os adquire através da tradição e da educação, pode certamente imaginar que eles são os verdadeiros motivos e o fundamento de sua conduta» (18 Br., p. 464).
Parece-me, portanto, exagerada a interpretação que vê a cena política tão somente como “uma realidade superficial, enganosa, que deve ser desmistificada, despida de seus próprios termos, para que se tenha acesso à realidade profunda dos interesses e dos conflitos de classes”[13]. Esse entendimento conduz, em minha opinião, a projetar sobre essa noção uma antinomia essencialista e “abstrata”[14] do tipo verdadeiro-versus-falso, reduzindo o alcance propriamente teórico da descoberta de Marx: a função específica de mediação das instituições políticas (cujo espaço de existência e manifestação é a cena política) no processo de dominação social no capitalismo.
III
Essa função de mediação parece se realizar, tomando o caso francês como exemplo, de quatro formas combinadas. Teríamos assim quatro funções subsidiárias da “cena política”:
i) a cena política é o lugar de constituição de tal ou qual “grupo socioeconômico” (classes, frações, camadas) enquanto grupo especificamente político; é ela que unifica os monarquistas rivais no «partido da ordem», por exemplo, alçando seus interesses específicos em um nível próprio – o político – da realidade social. É na cena política que a pequena burguesia (na expressão de Marx, os shopkeepers) se vê efetivamente representada pelo partido social-democrata. Essa é a função política da cena política[15];
ii) a cena política é o lugar de expressão refratada dos interesses sociais. Como enfatizou Engels, “[...] cada um dos partidos políticos é a expressão política mais ou menos adequada [das] classes ou frações de classes”[16]. O espaço social onde a prática política tem lugar – a luta pelo poder político, a competição política legal etc. – não reflete fatalmente o espaço social da luta de classes, ainda que não possa ser indiferente a ele. A anáclase é a função social da cena política[17];
iii) a cena política é o lugar de tradução dos interesses sociais numa linguagem política. Marx irá notar, inclusive, que, se a política não é uma linguagem, ela exige, produz e impõe uma linguagem própria. Essa linguagem pode ser alugada:
“[...] seus gladiadores encontraram nas austeras tradições clássicas da República romana os ideais e as formas artísticas, as ilusões de que necessitavam para esconderem de si próprios o conteúdo estritamente burguês de suas lutas e manterem sua paixão à altura da grande tragédia histórica. Da mesma maneira, em outro estágio de desenvolvimento, um século antes, Cromwell e o povo inglês haviam tomado emprestado ao Antigo Testamento a linguagem, as paixões e as ilusões para sua revolução burguesa” (18 Br., p. 439).
Mas, mais eficaz quando a linguagem política adquire um significado direito, próprio. Uma vez feita a Revolução Gloriosa, “Locke suplantou Habacuc” (18 Br., p. 439). Essa é a função simbólica da cena política. E, por fim,
iv) a cena política é o lugar de ocultação dos interesses sociais. A função ideológica da cena política é inseparável da sua função simbólica. Essa relação entre a realidade e a representação da realidade se realiza de maneira complexa.
Penso, assim, com base principalmente nas três últimas funções – expressão, tradução, ocultação –, que seja possível sustentar que a cena política funciona, no espaço político-social, tal qual a forma-mercadoria funciona no espaço econômico-social.
Poder-se-ia falar então, propriamente, numa forma-política. A forma-política teria as mesmas propriedades da forma-mercadoria.
Essa diferença terminológica (de cena política para forma-política) possui a meu ver duas vantagens: desloca o sentido latente que a expressão cena política traz consigo (um exterior “falso” contra um interior “verdadeiro”) e repõe, em outro sentido, a relação essência e aparência.
Desde a crítica de Marx à Economia Política clássica, conhecemos o segredo da produção capitalista. Por analogia “à região nebulosa do mundo da religião”[18], que cultua os objetos porque lhes concede propriedades mágicas, há um fetichismo da mercadoria – essa forma que oculta o processo social de sua produção e à qual se atribui a propriedade de promover a relação real entre os produtores[19].
A consciência social, sob o capitalismo, percebe três relações básicas
terra – renda da terra
capital – juros
trabalho – salário
capital – juros
trabalho – salário
não somente como relações óbvias, mas como relações mágicas: dinheiro que produz dinheiro, terra que produz renda, trabalho que tem como contrapartida um salário justo.
O que se elide aqui é o processo de valorização pelo qual o trabalho é responsável e o processo de exploração que é constitutivo da relação capital-trabalho.
Essa aparência, contudo, não é uma ilusão subjetiva, mas o modo mesmo de funcionamento da realidade. Não é um defeito de entendimento ou uma ilusão da consciência. É a forma pela qual as relações sociais no capitalismo se dão e que são apreendidas na sua verdade possível.
Poderíamos imaginar que a cena política cumpre igualmente os mesmos papéis: ela é o lugar por excelência de manifestação (“institucional”) da luta política de classes – e não uma simples “aparência” que encobre uma realidade essencial – e, ao mesmo tempo, o espaço onde essa luta parece ser, mesmo para seus protagonistas, tão somente um conflito político entre forças rivais sem conexão com a luta em torno dos interesses econômicos de classe. Daí as “descobertas” da Ciência Política de partidos ‘sem base social’, políticos que representam a si mesmos, ações legislativas compreendidas em função de seus próprios meios e fins etc.
Acredito que essa noção de forma-política é um pequeno passo na enorme tarefa de desmistificação das relações de dominação sob o capitalismo.
Referências
ANDERSON, P. (1976). Considerações sobre o marxismo ocidental. Porto: Edições Afrontamento.
ARONOWITZ S. & BRATSIS P. (eds.). (2002). Paradigm Lost. State Theory Reconsidered. Minneapolis: University of Minnesota Press.
ARTOUS, A. (1999). Marx, l’État et la politique. Paris: Syllepse.
BOITO JR., A. (2002). Cena política e interesse de classe na sociedade capitalista. Comentário em comemoração ao sesquicentenário da publicação de O 18 Brumário de Luís Bonaparte. Crítica Marxista, n. 15, out.
JESSOP, B. (1990). State Theory: Putting Capitalist State in its Place. Pennsylvania: The Pennsylvania University Press.
JESSOP, B. (2002). The Political Scene and the Politics of Representation: Periodising Class Struggle and the State in The Eighteenth Brumaire. In: Cowling, M. & M. James (eds.). Marx’s Eighteenth Brumaire: (Post)modern Interpretations. London: Pluto Press,
MARX, K. & ENGELS, F. (1984). A Ideologia Alemã (I – Feuerbach). São Paulo: Hucitec.
MARX, K. (1982). As lutas de classe em França de 1848 a 1850. Lisboa/Moscou: Avante!/Progresso.
MARX, K. (1994). Œuvres. Trad. Maximilien Rubel. Paris: Gallimard. Vol. IV, Tomo I: Politique. Bibliothèque de La Pleiade.
MARX, K. (1983). O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural.
MILIBAND, R. (1977). Marxism and Politics. Oxford: Oxford University Press.
POULANTZAS, N. (1968). Pouvoir politique et classes sociales. Paris: Maspero,
POULANTZAS, N. (1977). Poder político e classes sociais. São Paulo: Martins Fontes,
RUBIN, I. I. (1980). A teoria marxista do valor. São Paulo: Brasiliense.
WILLIAMS, R. (1979). Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar.
Notas
[1] Eles compreendem sua colaboração regular em dois periódicos: na Nova Gazeta Renana (cujos trabalhos mais famosos foram reunidos sob dois títulos: Revolução e contra-revolução na Europa (1848-1849) e As lutas de classe na França de 1848 a 1850 (1850)) e no New York Daily Tribune: Crônicas Inglesas (1852-1854); Lord Palmerston (1853); A Espanha Revolucionária (1854). Além do mais famoso de todos: O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. V. Marx, 1994.
[2] Cf. Anderson, 1984; Jessop, 1990; e Aronowitz & Bratsis (eds.), 2002.
[3] A inspiração aqui é Poulantzas, 1968.
[4] Para todas as citações literais do texto de Marx adotarei esta notação: (18 Br., p.). Ela corresponde à paginação da tradução francesa do livro, por Maximilien Rubel. V. Marx, 1994. As traduções para o português são minhas.
[5] Cf. Poulantzas, 1977, p. 245.
[6] Poulantzas, 1977, p. 242.
[7] Como já deve ter ficado claro, o problema empírico aqui é: em que medida um partido político representa uma classe social determinada?
[8] Para uma discussão da diferença entre periodização e cronologia, cf. Poulantzas, 1968, vol. II, p. 70-71; e Jessop, 2002, p. 184.
[9] Cf. O Prefácio do autor para a segunda edição d’O 18 Brumário.
[10] O efeito prático das aparências sobre a prática política pode ser estimado pelo uso que os heróis (ou os comediantes) do presente fizeram dos heróis do passado: “Assim, Lutero adotou a máscara do apóstolo Paulo, a Revolução de 1789-1814 travestiu-se alternadamente como República romana e como Império romano, e a Revolução de 1848 não soube fazer nada melhor do que parodiar às vezes 1789, às vezes a tradição revolucionária de 1793-1795” (18 Br., p. 438). E, no caso, o sobrinho pelo tio.
[11] Como notou Boito Jr., 2002, p. 131.
[12] Marx & Engels, 1984, p. 48, grifos meus.
[13] Boito Jr., 2002, p. 129.
[14] A expressão é de Williams, 1979, p. 73.
[15] Por outro lado, “a estrutura do campo político pode [...] produzir uma corrente [política] que não é definida pela representação que ela realiza de uma camada ou de uma classe social, mas pela função que ela ocupa nesse campo”. Artous, 1999, p. 166. É o caso precisamente do “partido” do National.
[16] “Introdução de Friedrich Engels à edição de 1895”. In: Marx, 1982, p. 189, grifos meus.
[17] Não se pode estabelecer ponto a ponto a correspondência objetiva entre partido (político) e classe (social), nem se deve fazê-lo. Sob o capitalismo, esse desvio (essa refração), que ocorre quando os interesses sociais passam de um meio a outro, é uma das condições tanto da dominação ideológica – pois as facções políticas adquirem a faculdade de representarem “a sociedade como um todo” – quanto da eficácia do discurso político.
[18] Marx, 1983, p. 71.
[19] Para uma explicação mais detalhada desse ponto, v. Rubin, 1980, p. 19 e segs.
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