Lampião em Mossoró
Xilogravura - 20 x 20]
Rio de Janeiro, 12 de novembro de 1945.
Só agora, lido o último artigo da série que V. me dedicou, posso mandar-lhe estas linhas e conversar um pouco. Muito obrigado. Mas não lhe escrevo apenas por causa dos agradecimentos: o meu desejo é trazer-lhe uma informação ajustável ao que V. assevera num dos seus rodapés.
Arriscar-me-ia a fazer restrições ao primeiro e ao segundo, se isto não fosse considerado falsa modéstia. E impertinência: com as vivas atenções dispensadas a meu romance de estreia, foram apontados vários defeitos, o que de certo modo atenua a parcialidade otimista.
Onde as nossas opiniões coincidem é no julgamento de Angústia. Sempre achei absurdos os elogios concedidos a este livro, e alguns, verdadeiros disparates, me exasperaram, pois nunca tive semelhança com Dostoiévski nem com outros gigantes. O que eu sou é uma espécie de Fabiano, e seria Fabiano completo se a seca houvesse destruído minha gente, como V. muito bem reconhece.
Por que é que Angústia saiu ruim? Diversas pessoas procuraram razões, que não me satisfizeram. Olívio Montenegro usou frases ingênuas e pedantes, misturando ética e estética. João Gaspar Simões afirmou que o americano é incapaz de introspecção – e com esta premissa arrasou-me. Veja só. Nada há mais falso que um silogismo. Álvaro Lins veio com aquele negócio de tempo metafísico. Mas isso diz pouco, não é verdade? Se eu constituísse uma exceção à regra de João Gaspar Simões e contentasse Olívio Montenegro e Álvaro Lins,Angústia não deixaria de ser um mau livro, apesar de haver nele páginas legíveis.
Por que é mau? Devemos afastar a ideia de o terem prejudicado as reminiscências pessoais, que não prejudicaram Infância, como V. afirma. Pego-me a esta razão, velha e clara: Angústia é um livro mal escrito. Foi isto o que o desgraçou. Ao reeditá-lo, fiz uma leitura atenta e percebi os defeitos horríveis: muita repetição desnecessária, um divagar maluco em torno de coisinhas bestas, desequilíbrio, excessiva gordura enfim, as partes corruptíveis tão bem examinadas no seu último artigo. É preciso dizermos isto e até exagerarmos as falhas: de outro modo o nosso trabalho seria inútil.
E aqui vem a informação a que me referi. Forjei o livro em tempo de perturbações, mudanças, encrencas de todo o gênero, abandonando-o com ódio, retomando-o sem entusiasmo. Matei Julião Tavares em vinte e sete dias; o último capítulo, um delírio enorme, foi arranjado numa noite. Naturalmente seria indispensável recompor tudo, suprimir excrescências, cortar pelo menos a quarta parte da narrativa. A cadeia impediu-me essa operação. A 3 de março de 1936 dei o manuscrito à datilógrafa e no mesmo dia fui preso. Nos longos meses de viagens obrigatórias supus que a polícia me houvesse abafado esse material perigoso. Isto não aconteceu – e o romance foi publicado em agosto. Achava-me então na sala da capela. Não se conferiu a cópia com o original. Imagine. E a revisão preencheu as lacunas metendo horrores na história. Só muito mais tarde os vi. Um assunto bom sacrificado, foi o que me pareceu.
Esta explicação tem apenas o fim de exibir-lhe o prazer que me causou o seu juízo. Quando um modernista retardatário e pouco exigente me vem seringar amabilidades a Angústia, digo sempre: – “Nada impede que seja um livro pessimamente escrito. Seria preciso fazê-lo de novo.”
Permita-me que apenas toque nos seus estudos relativos a São Bernardo, Vidas secas e Infância. Ser-me-ia difícil estender-me sobre eles. O que faço é agradecer. Por muito vaidoso que sejamos, às vezes certas opiniões nos amarram: diante delas ficamos atrapalhados e sem jeito.
Adeus, Antonio Candido. Abraços do admirador e amigo
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