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18 de janeiro de 2010

A política no Haiti


[Série Prestes Maia, 2006.
São Paulo. Júlio Bittencourt.
coleção Pirelli/MASP]

Folha de S. Paulo, 17 jan. 2010

Entrevista de Robert Fatton, Jr.
CV aqui

ele é o autor de Haiti's Predatory Republic: The Unending Transition to Democrac. Boulder, Co.: Lynne Rienner Publishers, Inc., 2002.
resenha do livro aqui

FOLHA - Como avalia a situação do Haiti antes do terremoto e o que pode mudar agora?
ROBERT FATTON JR. - A situação política havia se estabilizado, a violência havia diminuído, mas a situação como um todo ainda era muito precária. Eleições estavam programadas para este ano [legislativas em fevereiro e presidencial em novembro], mas não imagino que possam ser realizadas. O terremoto pode ser um desastre completo ou uma oportunidade para mudar algo. O fato de que todos os haitianos estão diante da catástrofe pode levar a um contrato social diferente, numa sociedade muito dividida. Do seu lado, a comunidade internacional precisa mudar algumas políticas, que em última instância limitaram a capacidade do Estado haitiano. Hoje, nas operações de socorro, você pode ver que não há instituições nacionais, só ONGs. Espero também que a ajuda internacional dê mais ênfase à área rural. Embora ela não tenha sido tão afetada pelo tremor, 60% da população ainda vive lá. O fato de quase 3 milhões de pessoas se aglomerarem em Porto Príncipe em condições terríveis é consequência de não haver política agrícola.

FOLHA - Uma das críticas à política dos EUA para o Haiti é a de que, quando Jean-Bertrand Aristide foi reconduzido à Presidência com apoio militar americano (1994), uma das condições foi que ele implantasse uma política econômica liberalizante. Isso teria dizimado a agricultura. É uma crítica correta?
FATTON - Isso é absolutamente verdade. Mesmo antes da volta de Aristide, os militares começaram a abrir a economia, em particular para o arroz americano. Esse arroz, que é subsidiado, era vendido muito mais barato do que a produção local, que entrou em declínio. Quando Aristide voltou, ele assinou um acordo com o FMI e o Banco Mundial consolidando o projeto neoliberal. A abertura teve um impacto devastador na produção de comida e nas pequenas indústrias que produziam para o mercado interno. A estratégia continua sendo a mesma, voltada para a criação de núcleos urbanos de confecção de produtos baratos para exportação aos EUA, principalmente têxteis.

FOLHA - Como as maquiladoras mexicanas?
FATTON - É o modelo. Na minha visão, não funciona. Já foi tentado sob [o ditador] Jean-Claude Duvalier [1971-1985] e levou a uma catástrofe. Não é que o Haiti não tenha que ter uma base exportadora, mas ela não deve ser o motor do desenvolvimento do país. Se esse rumo for mantido, haverá pequenos encraves, com trabalhadores mal pagos, e o campo continuará negligenciado.

FOLHA - O Haiti é dependente de ajuda internacional. Por que esse dinheiro não produziu resultados na redução da pobreza, por exemplo?
FATTON - Se você olhar os últimos 15, 20 anos, muito dinheiro foi enviado ao Haiti, mas boa parte dele ligado a companhias americanas. Há um círculo vicioso, porque o dinheiro volta para os EUA. Em meados dos anos 90, os EUA davam anualmente US$ 3 bilhões ao Haiti, mas uma parte significativa ia para os soldados americanos que estavam lá, para os assessores americanos e para a compra de produtos americanos. As doações também evitavam o Estado e eram dadas a instituições não governamentais, porque a premissa era a de que o governo era corrupto e ineficaz. O problema é que ONGs em geral têm base local, e suas atividades não são filtradas através de um programa nacional abrangente. E, apesar de haver ONGs que prestam ótimos serviços a pessoas pobres, há outras que são igualmente corruptas. E não se sabe o quanto do que recebem vai de fato para ajuda ao desenvolvimento.

FOLHA - A debilidade do Estado é fenômeno recente no Haiti ou sempre foi assim?
FATTON - A ideia de um Estado fraco é complicada. Sob os Duvalier [1957-1985] havia um Estado incompetente e corrupto, mas forte na repressão. Após a queda da ditadura, houve uma série de crises, com eleições fracassadas e golpes, que minaram o Estado por dentro. Essa tendência se agravou sob a orientação dos principais doadores, que viam o Estado como um problema. Agora, se a comunidade internacional tem intenções sérias de reconstruir o país, deve contribuir para a implantação de um serviço público efetivo. Do contrário, haverá alívio, mas não desenvolvimento.

FOLHA - Como avalia o trabalho da Minustah, a força de paz da ONU?
FATTON - Se não fosse pela Minustah, o país estaria sob caos ainda maior. Goste-se ou não, ela é elemento essencial da situação atual. Foi criticada às vezes por ser muito violenta, outras vezes por não ser violenta o suficiente. Não é surpreendente que os haitianos tenham uma relação de amor e ódio com a Minustah. Não gostamos de tropas estrangeiras em nosso solo, mas sabemos que não podemos ficar sem ela. O ponto-chave é como fazer a transição da Minustah para uma força local.

FOLHA - Países como o Brasil, com posição de comando na Minustah, podem influenciar políticas de instituições multilaterais para o Haiti?
FATTON - Tenho a esperança de que possam mover os EUA para uma orientação diferente da política econômica prescrita para o Haiti. Se têm o poder para fazer isso, é outra questão. A Minustah é em grande parte um assunto latino-americano, com o Brasil no centro. Os EUA gostam disso, porque não precisavam mandar seus próprios soldados. Isso dá peso ao Brasil. Mas, pelo discurso de [Barack] Obama [na última quinta-feira], haverá de novo um enorme envolvimento americano no Haiti.

FOLHA - O senhor disse que o terremoto poderia produzir um novo contrato social no Haiti. Por quê?
FATTON - O terremoto afetou a todos, pobres e ricos. Claro que muitos dos ricos têm mais condições de reagir à catástrofe, mas há outros que perderam tudo. Acho que isso pode forçar a minoria rica a ver a situação do país com olhos diferentes, com mais simpatia pelos haitianos comuns. Claro, a experiência histórica não recomenda otimismo, mas a catástrofe é tão grande que talvez possa mudar percepções e a maneira como as pessoas se tratam.

FOLHA - A clivagem entre pobres e ricos é a principal na sociedade haitiana?
FATTON - Certamente, é a chave. Estamos falando de 5% a 10% da população com algum recurso, 5% que vão muito bem e 70%, 80% que não têm nada. Temos divisões de cor, mas elas são menores se comparadas à clivagem entre pobres e ricos.

FOLHA - Mas os ricos ainda controlam o sistema político?
FATTON - Agora não há mais sistema político, não há governo. A comunidade internacional está no comando, o aeroporto está sob controle dos americanos. Antes do terremoto, apesar de o governo ter algumas tendências populistas, a situação estava claramente nas mãos da minoria rica.

FOLHA - Grupos ligados a Aristide haviam sido excluídos das eleições deste ano. Como vê isso?
FATTON - Acho que o presidente [René] Préval conseguiu dividir o Lavalas [movimento de Aristide] de tal forma que ele não pode mais mobilizar grandes segmentos da população. Aristide continua sendo popular, mas o movimento foi dizimado. Ao mesmo tempo, é improvável que as principais potências, EUA e França, aceitem a volta de Aristide.

FOLHA - E isso o senhor considera positivo ou negativo?
FATTON - Difícil dizer. Aristide é uma figura muito carismática, mas ao mesmo tempo há hoje uma forte oposição a ele, que não vem só da elite, mas de setores que costumavam apoiá-lo. Seu poder diminuiu. Por outro lado, o terremoto pode dar a ele uma chance de se reafirmar, o que vai depender do resultado da operação de socorro e do que virá depois dela. Se a operação for mal administrada, pode haver uma reemergência do Lavalas, se não necessariamente da figura de Aristide.

FOLHA - Se Préval foi tão hábil em dividir o Lavalas, por que seu governo é instável, já no terceiro premiê?
FATTON - O governo se tornou instável depois dos distúrbios contra o aumento do preço dos alimentos [em março de 2008]. Foi um momento de crise. Mas não acho que você deva olhar para as trocas de primeiro-ministro como sintoma de instabilidade. Elas geralmente significam apenas transferir pessoas para novos cargos, mas não mudam a estrutura.
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