[African American student
Ernest Green.
Little Rock, AR, US.
May 1958.
Grey Villet, Life]
Ernest Green.
Little Rock, AR, US.
May 1958.
Grey Villet, Life]
por Muniz Sodré
Observatório da imprensa
27 out. 2009
Há uma questão atravessada na garganta de grupos empenhados na defesa das políticas afirmativas da cidadania negra. Trata-se de saber por que os jornalões (nome talvez mais palatável do que “grande mídia impressa”) brasileiros não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial. Como bem se sabe, esses jornais vêm dando largo espaço a jornalistas e intelectuais decididos a demonstrar que as ações afirmativas constituem uma nova forma de racismo, já que raça não existe e, ademais, como a população brasileira é predominantemente miscigenada, todos os nossos concidadãos teriam a sua cota de negritude. Logo, não faria qualquer sentido ficar procurando saber quem é negro ou branco para proteger o primeiro.
Foi essa a questão debatida nos dias 14 e 15 de outubro, durante o seminário “Comunicação e Ação Afirmativa: o papel da mídia no debate sobre igualdade racial”, realizado na Associação Brasileira de Imprensa por entidades como Comdedine, Cojira e Seppir. É bem sabido que há vozes discordantes das opiniões oficiais dos jornalões, por parte de jornalistas de peso, alguns dos quais pertencentes aos quadros desses mesmos jornais. É o caso de Elio Gaspari, Miriam Leitão e Ancelmo Gois. Estes dois últimos, aliás, foram palestrantes no seminário.
Na mesa sobre “a responsabilidade social da mídia e o debate sobre raça” – que dividi com a jornalista Márcia Neder, da revista Claudia –, comecei afirmando que há certas visibilidades que nos cegam. O sol, por exemplo, se tornado excessivamente visível (olhado de frente), nos impede de enxergar. Mas há também objetos sociais que, se tornados visíveis demais, podem bloquear a visão de quem antes acreditava ver. Parece-me ser este o dilema da cor, do fenótipo escuro, na atualidade brasileira, onde vislumbro um caso de cegueira cognitiva.
De fato, a questão vem sendo tratada como ser pró ou contra o racialismo. A maioria dos favoráveis a propostas como o Estatuto da Igualdade Racial, cotas para universitários etc., lastreia os seus argumentos com as razões do anti-racismo; os desfavoráveis, embora reconhecendo a existência episódica e anacrônica de incidentes racistas, tentam fazer crer que vivemos no melhor dos mundos em termos de conciliação das diferenças étnicas e que seria, portanto, um retrocesso civilizatório racializar a população. Curioso é que esses mesmos argumentos desfavoráveis, sem que seus autores se dêem conta, são racialistas em última análise, ao apelarem para as noções de miscigenação biológica.
Por outro lado, de modo geral, todos se habituaram a pensar na escravidão ora como uma mácula humanitária, ora como um anacronismo, uma instituição retrógrada na história do progresso. Vale, entretanto, apresentar uma opinião de outro matiz, a de Alberto Torres, autor de O Problema Nacional Brasileiro. Foi um dos grandes explicadores do Brasil entre o final do século 19 e início do 20.
Conservador em termos sociais (refratário à urbanização e à industrialização), propugnador de uma República autoritária, Torres revela-se, entretanto, interessante em termos metodológicos e teóricos. Diz em seu livro que “a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu. (…) Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos e fundou toda a produção material que ainda temos”.
Torres era, insisto, autoritário e conservador. Gerou epígonos como Oliveira Vianna, esse mesmo que chegou a justificar em sua obra o extermínio do “íncola inútil”, isto é, do habitante das regiões empobrecidas do país. Era, entretanto, um conservador diferente: discordava das teses sobre a inferioridade racial do brasileiro, não era racista. Sua frase sobre a escravidão é algo a ser ponderado, principalmente quando cotejada com o dito de Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (…) Ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância” (Minha Formação).
É célebre essa passagem sobre a memória afetiva da escravidão – a saudade do escravo. Ela é a superfície psicológica do fato histórico-econômico de que as bases da organização nacional foram dadas pelo escravismo. Por isso, vale perguntar que apreensão os brasileiros fazem desse fato, pouco mais de um século depois da Abolição.
Alguns pontos devem ser considerados:
1. A palavra “apreensão” não diz respeito a concepções intelectuais, e sim, à incorporação emocional ou afetiva do fenômeno em questão. No interior de uma forma social determinada, nós apreendemos por consciência e por hábito o seu ethos, isto é, a sua atmosfera sensível que nos diz, desde a nossa mais tenra infância, o que aceitar e o que rejeitar.
2. A reinterpretação afetiva da “saudade do escravo”, que envolve (a) as relações com empregadas domésticas e babás (sucedâneas das amas-de-leite); (b) o afrodescendente como objeto de ciência (para sociólogos e antropólogos); (c) imagens pasteurizadas da cidadania negra na mídia.
Diferentemente da discriminação do Outro ou do racismo puro e simples, a saudade do escravo é algo que se inscreve na forma social predominante como um padrão subconsciente, sem justificativas racionais ou doutrinárias, mas como o sentimento – decorrente de uma forma social ainda não isenta do escravagismo – de que os lugares do socius já foram ancestralmente distribuídos. Cada macaco em seu galho: eu aqui, o outro ali. A cor clara é, desde o nascimento, uma vantagem patrimonial que não deve ser deslocada. Por que mexer com o que se eterniza como natureza?
Nada, portanto, da velha grosseria racista, da velha sentença de “pão, pano e pau” proferida pelo padre Antonil a propósito dos negros. Não há mais lugar histórico para o “pau” desde a Abolição, ou melhor, desde a Lei Caó. O argumento explicitamente racista não leva ninguém a lugar algum no império das tecnologias do self incrementadas pelo mercado e pela mídia.
Mas é imperativo para o senso comum da direita social que as posições adrede fixadas não se subvertam. O escravismo é mais uma lógica do lugar do que do sentido. É dele que, de fato, têm saudade os que acham um escândalo racial proteger as vítimas históricas da dominação racial. E os jornalões, intelectuais coletivos das classes dirigentes, não fazem mais do que assim se confirmarem ao lhes darem voz exclusiva em seus editoriais e em suas páginas privilegiadas, ao se perpetuarem como cães de guarda da retaguarda escravista. É oportuno prestar atenção à letra da canção de Cartola (“Autonomia”) em que ele afirma a necessidade de “uma nova Abolição”.
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Um comentário:
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