Na pesquisa que Fernando Leite conduz sob minha orientação, acerca das frações dominantes no campo na Ciência Política brasileira, é usual a crítica, reiterada nas discussões do GT 18 do último encontro da Anpocs, que usar critérios produzidos pelos dominantes para aferir sua dominância é um contra-senso.
Abaixo, Fernando explica, com meu aval, nosso ponto de vista, justifica a metodologia e defende a técnica de pesquisa a ser empregada no estudo das "elites" da Ciência Política brasileira hoje.[Adriano Codato]* * *
Como utilizamos a classificação do
Qualis CAPES como um dos principais indicadores para escolher e avaliar os periódicos a serem analisados a fim de identificar se há e quais são as correntes e/ou escolas dominantes na Ciência Política brasileira contemporânea e, por extensão, os pesquisadores e os centros hegemônicos, freqüentemente se faz a objeção de que estaríamos usando
os critérios definidos ou impostos pelos próprios “hegemônicos” para dizer quem é “hegemônico”.
O mesmo poderia ser dito a respeito de outros indicadores como, por exemplo, o índice de impacto (que avalia um artigo pelo seu número de citações) ou o número de artigos produzidos num dado período.
Trata-se de uma acusação de circularidade, e que tende a gerar reações controversas. Mas cremos que isso é um mal-entendido, e não consiste num problema metodológico real. Explicaremos por etapas.
Em primeiro lugar, vamos tocar no ponto que acreditamos ser o principal foco de inquietação, relativo às implicações político-acadêmicas dos critérios adotados.
Ora, lembramos que o método “circular” que adotamos não equivale a tomar como naturais ou isentos os critérios do Qualis – ou qualquer outro. Não se trata de aquiescência em relação aos “valores dominantes”. Está no próprio princípio da pesquisa que os indicadores e critérios adotados
são representações teóricas de estados cristalizados de processos de lutas, de conflitos; de mecanismos de luta e dominação.
Sabemos, pois, que eles são
construções sociais arbitrárias que se institucionalizaram e se legitimaram por meio de conflitos sociais e de disputas simbólicas.
Em segundo lugar, como nosso objetivo é identificar as frações hegemônicas (para, a seguir, dizer por que o são), é necessário que os indicadores e critérios que tomamos para identificar as frações hegemônicas produzam
efeitos sociais pertinentes, que efetivamente hierarquizem e ajudem a conservar a hierarquia do campo.
Assim, se por acaso os critérios do Qualis forem a cristalização de certa visão interessada do trabalho acadêmico na forma de referenciais de avaliação que atingem todo o campo acadêmico – exercendo assim influência ou constrangimento sobre as instâncias do campo –, persiste que eles são socialmente eficazes, sendo parte dos elementos responsáveis por hierarquizar o campo e por conservar certa hierarquia. E esse é justamente nosso interesse no momento.
Assim, por exemplo, se os “dominantes” controlam o Qualis da Ciência Política e Relações Internacionais, incluindo nele critérios que contribuem para que ocupam essa posição e que fornecem-lhes certos "privilégios", persiste que isso é um
fato sociológico [e não moral] e que é efetivamente responsável pela hierarquização do campo. É algo que obriga os desfavorecidos a se conformarem ou a tomarem um curso de ação, caso queiram mudar sua situação. A própria dominação é um mecanismo social circular, em que o capital hegemônico recria suas próprias condições de reprodução (em nosso caso, instituindo
regras acadêmicas de consagração), com bases essencialmente arbitrárias. Ao constatá-las, não estamos concordando com elas, e muito menos estamos enunciando (o que acreditamos que são) os fatos porque concordamos com eles ou porque queremos que tudo continue como está.
Em terceiro lugar, no que se refere às possíveis implicações político-acadêmicas de nossa posição metodológica, entendemos que tornar explícitos os mecanismos de dominação e a lógica de seu funcionamento é, na verdade, o maior instrumento para combatê-los.
Acreditamos que há certas vícios de pensamentos nas ciências sociais, oriundos talvez de sua falta de autonomia científica e sua proximidade com a política e a ideologia, que fazem com que associemos significados políticos a considerações de fato. Tende-se muito frequentemente a se confundir "ser" com "dever ser".
Quando se fala de "hegemonia", entende-se que implicitamente se sugere que "hegemônico" significa "melhor", "mais qualidade", "mais contribuição ao conhecimento" etc.
Os agentes do campo podem efetivamente, em suas práticas e representações, relacionar "prestígio" (i.e.: poder) com qualidade acadêmica, intelectual e científica; mas garantimos nós não fazemos ou estamos interessados nisso.
Não estabelecemos qualquer relação entre hegemonia e qualidade acadêmica ou intelectual [ainda que ela possa, evidentemente, existir]. Para nós, inclusive, o poder ("capital") acadêmico, intelectual ou científico pode ou não estar a serviço do conhecimento.
O que importa para nossa pesquisa é que um fator tomado como indicador seja ou não socialmente pertinente para produzir a hierarquia (estrutura) do campo. A nosso ver, a utilidade do Qualis vai além de definir quais são os periódicos que merecem ser analisados. Achamos que ele é muito importante na determinação da
hierarquia do campo acadêmico, incluindo aí o da Ciência Política contemporânea.
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