artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections

20 de abril de 2009

As elites políticas de São Paulo em meados do século XX: uma análise prosopográfica


[Sao Paulo, September 1947.
Dmitri Kessel. Life]


Paper apresentado nas Jornadas Elites intelectuales y formación del Estado. Buenos Aires: Instituto de Desarrollo Económico y Social/ Universidad de SanAndrés/ Universidad Nacional de San Martín/ Instituto de Altos Estudios Sociales, abr. 2009.

Adriano Codato

O objetivo deste paper é descrever, com base nas biografias coletivas da elite, a configuração social e política dos grupos dirigentes de São Paulo durante a ditadura do Estado Novo (1937-1945) no Brasil. O problema central é, em poucas palavras, o seguinte: dado certo tipo de recrutamento, qual o perfil da elite que integra, anima e ajuda a dirigir o Estado ditatorial?

Recorde que esse problema é tanto mais interessante no caso de São Paulo, e não apenas em função da força dos partidos oligárquicos, da influência nacional das lideranças políticas regionais, do conflito aberto com o governo federal que conduziu as duas partes a uma guerra em 1932 ou do monopólio da produção do café, a base da economia nacional no período. São Paulo é o cenário onde as relações entre a elite tradicional e o chefe ditatorial – Getúlio Vargas – deveriam assumir a figuração mais dramática entre todas; logo, mais paradigmática das dificuldades enfrentadas e das soluções adotadas para impor uma nova hierarquia no universo das elites políticas, em especial depois da Revolução de 1930.

O argumento que pretendo ilustrar é que o processo de mutação, ou melhor, o transformismo (Gramsci) das elites políticas brasileiras depois do Golpe de 1937 dependeu do sucesso de um filtro institucional que combinou certo grau de abertura do aparelho do Estado a certos indivíduos, com determinadas exigências políticas dirigidas a determinados grupos políticos remanescentes da República Oligárquica (1889-1930). Esse programa de recrutamento do pessoal político se deu em duas etapas: uma primeira, que é político-ideológica, ocorreu fora do Estado, na cena política e graças às lutas que definiram aliados e antagonistas segundo a lógica do tipo “amigo-inimigo”; e uma segunda, que é político-institucional, ocorreu não apenas dentro do Estado, mas por meio de seus aparelhos. Ambas foram responsáveis pela produção de uma nova classe política estadual (e não simplesmente pela cooptação da antiga), mais profissional que a anterior e menos dependente do estado-maior dos partidos regionais, apesar de saída deles. O profissionalismo do pessoal político é, possivelmente, o achado mais inesperado desta pesquisa.

As características típicas da nova classe política – paulista, no caso – derivam de uma peculiaridade deste contexto histórico que é mais que uma coincidência temporal. A desfiguração do perfil social dos antigos representantes políticos da classe dominante do estado embora seja simultânea ao processo de transformação capitalista da economia brasileira, não é, todavia, determinada por ele. A compreensão dessa alteração fundamental (que, em certa medida, viabiliza a própria transição de um modelo agro-exportador para um modelo urbano industrial) passa antes pelo entendimento do rearranjo das regras e dos procedimentos do jogo político e de sua institucionalização característica durante o Estado Novo. Ou melhor: passa fundamentalmente pela reconfiguração do “campo do poder” (Bourdieu).

O ponto a demonstrar empiricamente aqui é relativamente ambicioso e casa com a pretensão de realizar algo mais que uma sociografia da orgulhosa elite política paulista. Numa palavra: há um significativo rebaixamento dos coronéis e a promoção, ao primeiro plano da cena política estadual, dos bacharéis, palavra que designa os titulares de profissões liberais e não apenas de títulos universitários. O resultado é a produção de uma elite estratégica onde atributos adscritos (isto é, aqueles que foram acrescentados pela educação ou treinamento, por exemplo) contam mais para o controle de posições que os atributos adstritos (isto é, aqueles ligados a origem social) .

Todavia, a oposição tradicional entre notáveis e profissionais, diferenciação essa que engloba e define melhor aquela primeira entre coronéis e bacharéis, deve ser vista menos como um antagonismo entre dois tipos ideais, e mais como uma transformação induzida pelo regime a fim de afastar a idéia de uma progressão regular e planejada, marcada pela profissionalização desinteressada das práticas e pela racionalização da organização estatal. O Estado Novo não constitui, como é óbvio, a profissão política no Brasil, mas permite e, em certos casos, incentiva a profissionalização do pessoal político à disposição do regime ditatorial, já que ela é funcional à dominação da elite nacional sobre a outrora poderosa elite estadual.

clique aqui para baixar o paper completo
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2 de abril de 2009

A dinâmica e o legado de 64

[Vice President Jango Goulart Rio Grande
do Sul Ranch, 1957. Dmitri Kessel. Life]

Um artigo de 15 anos atrás e atualíssimo (em vista da ausência de historiografia sobre o assunto). Incluí os links para melhor compreensão do texto e do contexto, fiz alguns comentários (sempre em cores diferentes), destaquei em negrito as passagens principais e listei algumas referências básicas sobre os assuntos tratados.

LUCIANO MARTINS

Folha de S. Paulo 31/03/1994 Página: 1-3
TENDÊNCIAS/DEBATES

A persistência até hoje de uma polaridade (golpe/revolução) para designar o que ocorreu em 64 não se explica apenas pela função valorativa (crítica ou laudatória, conforme o caso) que reveste cada um desses termos. Antes, parece indicar ainda uma dificuldade conceitual para entender a natureza da crise do início dos anos 60 e a arregimentação política que ela gerou.

Os grandes investimentos realizados no governo JK, que mudaram o perfil da economia, haviam sido possíveis graças ao concurso do capital estrangeiro e do financiamento estatal. Mas terminada a montagem da indústria de bens de consumo durável e a expansão dos setores de infra-estrutura, já eram outras as condições existentes.

De um lado, capital e financiamento estrangeiros se retraíram e, de outro, a utilização de recursos públicos não só já se havia tornado inflacionária como a disponibilidade desses recursos diminuiu consideravelmente, seja pela insensatez que foi a construção de Brasília, seja pelo desarmamento fiscal ocorrido durante o governo Janio Quadros (instrução 204 [da SUMOC]. Trata-se de uma medida de unificação das taxas de câmbio do dólar. Sobre a SUMOC, clique aqui). Estava posta, portanto, a questão do financiamento do desenvolvimento, como condição para a continuidade do processo.

Socialmente, os rápidos deslocamentos na posição relativa ocupada por estratos situados nas esferas média e superior do universo social geraram tensões sociais e inquietações latentes. A inflação e a queda no ritmo de crescimento potencializaram essas tensões e geraram um forte sentimento de insegurança quanto às perspectivas de futuro para as classes proprietárias e médias em ascensão.

Ao mesmo tempo, no outro extremo do espectro social criava-se a difusa e frustradora percepção de que os prometidos efeitos do progresso gerado pelos "50 anos em cinco" não se propagavam para as camadas inferiores da sociedade. Até porque os bens de alto valor unitário produzidos pela nova indústria conflitavam com o perfil de distribuição de renda então existente.

A resolução dessa crise socioeconômica se apresentava (ou era assim percebida) como um dilema: ampliar o mercado de consumo através de reformas sociais, de modo a adequá-lo à nova estrutura produtiva, ou estratificá-lo deliberadamente, de forma a circunscrever às esferas superiores e médias da distribuição da renda a demanda efetiva.

O Plano Trienal (1963) [para informações mais contextuais sobre o Plano de Furtado, clique aqui] foi uma tentativa de solucionar o dilema. Seu fracasso parece demonstrar (supondo que ele fosse economicamente viável) que já não haviam mais condições políticas para resolver o problema por meio de uma solução conciliatória.

É que a exacerbação social já se transformara em radicalização política e começava a se traduzir em crise de governabilidade. As classes proprietárias mobilizaram-se através de seus grupos de pressão (Ipes, Ibad etc.) [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais; Instituto Brasileiro de Ação Democrática], ao mesmo tempo que as classes médias saíam às ruas nas "marchas pela família e pela propriedade" [Marchas da Família com Deus pela Liberdade; para uma análise do movimento, clique aqui]. Os setores de esquerda, excitados pela Revolução Cubana, pensavam capitalizar as frustrações populares com a bandeira das reformas de base "na lei ou na marra".

Essa polarização interna [para algumas imagens, clique aqui], sobre a qual se projetavam os interesses da Guerra Fria, cindiu o populismo, privando-o de sua tradicional função mediadora. O governo Goulart tanto foi acusado de ceder à subversão da ordem econômica e política quanto de ser incapaz de promover as reformas sociais.

Sua fracassada tentativa de pedir o estado de sítio em outubro de 63, para fechar a brecha política, reprimindo tanto a direita quanto a esquerda, tornava claro que Goulart não mais controlava o rumo dos acontecimentos. Mais grave: os protagonistas em conflito pareciam convergir na crença da impossibilidade de resolvê-lo no quadro das instituições democráticas. [para uma análise que sustenta este ponto de vista como a causa principal do golpe, cf. Argelina Figueiredo. Democracia ou Reformas?]

É nesse quadro de polarização e impasse político, agravado pelos motins de sargentos e marinheiros, que se dá a intervenção militar.

A evidência histórica disponível demonstra que a conspiração militar, mesmo considerando suas ramificações políticas e a ação dos bolsões militares radicais existentes desde os anos 50, articula-se não em torno da tomada do poder (na forma clássica do golpe de Estado ), mas da resistência à intenção atribuída ao governo Goulart de mudar a configuração do poder: o fantasma da "república sindicalista".

O fato de a decisão dos dois generais de Minas de iniciar por conta própria as ações ofensivas ter contado com imediata cobertura civil e uma adesão militar em cascata, obrigou o núcleo decisório da conspiração (general Castello Branco) a passar à iniciativa para não perder o controle dos acontecimentos. [para uma compreensão melhor sobre como os militares viam a conjuntura, clique aqui]

Essa circunstância possibilitou aos militares reivindicarem para si, com função legitimadora, o papel de intérpretes de um amplo sentimento existente na sociedade. O que denominaram de "revolução" serviu para justificar sua permanência no poder e, em seguida, para redefinir os suportes sociais e políticos que lhes permitiram relançar o processo de desenvolvimento em outras bases.

Nesse sentido, 64 não foi nem um "golpe" nem uma "revolução". Seria, com mais propriedade, uma "contra-revolução preventiva". Muito embora seja importante assinalar que tanto os temores que alimentavam a inquietação social conservadora quanto as esperanças que animavam a retórica radical dos setores de esquerda se baseavam numa falsa percepção da realidade e da correlação de forças existente. A ausência de resistência e a facilidade com que se realizou a tomada do poder constituiu uma enorme surpresa para ambos os lados. [sobre os militares e o governo Goulart, clique aqui]

Os recursos utilizados pelos militares para institucionalizar o regime autoritário e a direção impressa ao processo econômico é que vão, em planos diferentes, criar novas realidades no país e constituir o legado de 64.

O legado social e econômico é contraditório. De um lado, é inegável que houve uma extraordinária expansão e integração da estrutura produtiva. De outro, o irresponsável endividamento interno e externo e o descaso pelas desigualdades sociais criaram entraves para o equilíbrio social e econômico do país.

Já o legado político é fortemente negativo. O arbítrio, o desrespeito aos direitos civis, a desmoralização do Direito e da Justiça como princípios de organização social, a nefanda prática da tortura etc. banalizaram a violência na sociedade e corromperam a noção de cidadania. Ao mesmo tempo, a introdução do princípio da irresponsabilidade política dos governantes face aos governados e as contínuas desorganizações da estrutura partidária deixaram graves seqüelas para a reconstrução democrática.

Houve quem entendesse que o advento nos anos 60 desses regimes burocrático-autoritários modernizantes na América Latina correspondiam a uma "necessidade" do aprofundamento do capitalismo na região. José Serra, no final dos anos 70, fez uma crítica devastadora dessa tese no que diz respeito ao Brasil [ver “As Desventuras do Economicismo: Três Teses Equivocadas sobre a Conexão entre Autoritarismo e Desenvolvimento”. Dados, n. 20, 1979, pp. 3-45]. E se é inegável que, sob o regime autoritário, ocorreu uma generalização sem precedentes do "ethos" capitalista no país, nada autoriza afirmar a existência de uma relação causal entre esses dois fenômenos. É provável que ainda se tenha que esperar algum tempo para que desvendar o verdadeiro significado histórico de 64.

LUCIANO MARTINS DE ALMEIDA, 73, sociólogo, foi professor titular de ciência política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Escreveu Estado Capitalista e Burocracia no Brasil Pós-64, entre outros livros.

referências bibliográficas para entender melhor o texto:

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rev. Bras. Hist , vol.24, n.47, pp. 29-60, 2004.

FIGUEIREDO, Argelina Cheilub.
Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política: 1961-1964. São Paulo, Paz e Guerra, 1993.

MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 28, n. 55, jun. 2008.

MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 23, n. 67, jun. 2008.

SANFELICE, José Luís. O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais. Cad. CEDES, Campinas, v. 28, n. 76, dez. 2008.

SILVA, Ricardo. Planejamento econômico e crise política: do esgotamento do plano de desenvolvimento ao malogro dos programas de estabilização. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, n. 14, jun. 2000.

TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.
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31 de março de 2009

Feias, sujas e malvadas...


[Mussolini/Hitler Pins celebrating
the Rome-Berlin Axis Pact, 1936.
Peter Stackpole, Life]

José L. Szwako

Curitiba, mais uma vez, teve de encarar seus monstros. Semana passada, a Câmara Municipal de Vereadores negou o Título de Utilidade Pública à Associação Paranaense da Parada da Diversidade, APPAD. Os dois lados da peleja, contra ou favor do reconhecimento público da organização, tiveram em comum as referências à Cidade: os contrários empunhavam a ‘família curitibana’, com a prosápia dos ‘bons costumes’ e, de quebra, alegavam que eventos assim ‘não acrescentam nada à nossa cidade’. Do outro lado, aqueles que se colocaram a favor da APPAD não hesitaram em dizer que aquele era ‘um dia para envergonhar os curitibanos’.

As escassas coberturas jornalísticas enfatizaram o clima de ‘tensão’ no dia da votação e também o fato de que esse tipo de reconhecimento nunca havia sido objeto de discussão tão calorosa naquela casa. A descrição da distribuição das pessoas nas bancadas era clara: de um lado, feias, sujas e malvadas, estavam as travestis, as bichas, as lésbicas, ... De outro lado, os evangélicos e, pasmem, as crianças. Essa descrição acompanha a auto-imagem das pessoas veiculada pelos argumentos na internet: tudo se passa como se não existissem intersecções. Ou você é um, ou é Outro, afinal, não existem travestis evangélicas e sequer evangélicos gays. (E isso deixa a argumentação muito mais fácil para o lado progressista da peleja.) Mas, pior: “Como seria seu filho ou filha aderindo a isto?” – questionou um leitor. Ora, as nossas crianças não serão imundas, assim como essa gente estranha que, tendo nascido já adulta, não é (e alguns se desesperam, ‘essa gente não pode ser !‘) curitibana, como ‘nós’.

No olho do furacão conservador, estava a pergunta que não quer calar: Porque cargas d’água o Estado – e não é qualquer Estado, é a Câmara-de-Vereadores-de-Curitiba – deveria reconhecer um grupo tão estranho de pessoas? Ou, como vi no site de um jornal tradicional: "QUAL O INTERESSE PÚBLICO RELEVANTE NA REALIZAÇÃO DESTA PARADA?" Ironia das ironias, coube a essa minoria imaginária a hercúlea tarefa de publicizar para um público mais amplo o fato de que a Cidade é habitada por múltiplas cidades. Por meio da luta por reconhecimento, com ou sem sucesso imediato, o grupo mobilizado em torno da APPAD torna público que existe um tipo de opressão baseada em supostas ‘opções sexuais’, civiliza o público curitibano e o convida à democratização de seu imaginário – tudo isso, de graça.

José L. Szwako é doutorando em Ciência Sociais na Unicamp.

18 de março de 2009

O Estado no Estado Novo

[Brazil's Pres. Getulio Vargas,
1939. John Phillips. Life]


Adriano Codato

O Estado do Estado Novo era uma instituição politicamente forte, burocraticamente centralizada e, em termos organizacionais, independente.

“Forte” em função da sua capacidade de intervenção na vida social – pela via policial e pela via ideológica – e do seu poder de regulamentação da vida econômica.

“Centralizada” em função da concentração das decisões político-administrativas no Executivo federal.

E “independente” em função da sua distância diante não só da sociedade, mas dos interesses tradicionais da sociedade tradicional.

Se essa força decorre da ampliação dos recursos organizativos à disposição dos agentes estatais, sobretudo o monopólio do uso da força física e simbólica e da centralização autoritária de funções e papéis no governo central, sua independência permite que esse Estado forte passe a agir não mais em nome (nem mais a mando) dos interesses agroexportadores, mas cada vez mais em nome (ainda que não a mando) dos interesses urbano-industriais. Essa é de resto a precondição para a mudança do modelo de acumulação.


Todavia, não se deve entender as transformações históricas do aparelho do Estado brasileiro – no caso, a redefinição de suas prerrogativas, a ampliação de seus encargos, o desenvolvimento de sua estrutura antes e depois de 1937 – tão-somente em função do processo de industrialização da economia e modernização da sociedade, desprezando-se com isso seja o jogo político intra-elites, que não desaparece, apenas será jogado em outro lugar e sob novas regras (isto é, conforme uma nova configuração institucional); seja o marco institucional que regulará essas disputas, e que não está sequer previsto na Carta Constitucional do Estado Novo, sendo preciso inventá-lo.
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17 de março de 2009

A democracia da classe culta paulista na República Velha

[A sweaty worker loading sacks
onto the McCormack line boat.
John Phillips, 1939. Life]


Adriano Codato

As práticas oligárquicas das elites dirigentes de São Paulo na Primeira República (1889-1930) podem ser lidas nos documentos do tenentismo radical.

Os juízos de Prestes a respeito dos propósitos da Aliança Liberal e de seus líderes, “meia dúzia de senhores que, proprietários da terra e dos meios de produção, se julgam a elite capaz de dirigir um povo de analfabetos e desfribrados, na opinião deles, e dos seus sociólogos de encomenda” (nota 1), não chegam a valer por uma análise científica dessa estrutura de poder, mas quase.

Todavia, são nos próprios documentos da oligarquia que se vão encontrar os modos de justificação dessa política excludente.

Seria supérfluo demonstrar as “estratégias típicas de construção simbólica” (Thompson) de que se vale a retórica dessa ideologia para reproduzir valores e produzir crenças.

Exemplo: universalização dos interesses dos grandes proprietários rurais através do “agrarismo”; racionalização de sua aversão ao capitalismo industrial através do “liberalismo” econômico; deslocação do sentido efetivo da idéia de representação popular através do “elitismo” embutido nas concepções da vida política; naturalização dos privilégios políticos de classe e também da incapacidade do sistema promover uma participação eleitoral um pouco menos insignificante através do reconhecimento tácito da incompetência social da maioria dos cidadãos; e assim por diante.

Uma das sentenças mais significativas e menos dissimuladas do Manifesto Republicano não é aquela que afirma “Somos da América e queremos ser americanos” (isto é, não súditos e sim cidadãos), mas a que diz: “No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza [sic] de estabelecer o princípio federativo” (nota 2).

O progresso material de São Paulo, garantido pela aplicação estrita desse princípio federativo nos cinqüenta anos seguintes, tornou a “idéia democrática” mais natural, com a condição de não haver, na realidade, democracia.

Ou melhor: a democracia liberal permaneceu só como idéia, já que, para as situações oligárquicas, ela era de fato impraticável e para as oposições, inalcançável como um direito.

Embora as dissidências oligárquicas criticassem o modo de funcionamento do regime político (combinações secretas, perseguições abertas, designações ao invés de eleições etc. (nota 3)), a tônica dessas insatisfações poderia resultar ou na tentativa de recuperação dos verdadeiros princípios liberais da Carta de 1891 (definíveis segundo uma duvidosa hermenêutica jurídica), ou pura e simplesmente na emancipação deles.

Os movimentos de “regeneração democrática” das décadas de 1910 e 1920 consistiram tão só em apelos literários à purificação dos costumes políticos nacionais. Na maior parte das vezes, o propósito era, como enfatizou Décio Saes (Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985), a radicalização dos aspectos mais excludentes da democracia liberal-oligárquica.

O exemplo seguinte é especialmente eloqüente.

Em sua luta pelo aperfeiçoamento da democracia, os homens mais ilustrados do liberalismo paulista tinham a faculdade de tornar quase dispensável qualquer exposição do conteúdo latente de sua ideologia espontânea.

Em 1924, logo depois da crise militar em São Paulo, alguns deles (Monteiro Lobato, Rangel Moreira, Spencer Vampré, Fernando de Azevedo, Renato Jardim, Plinio Barreto, Mario Pinto Serva, Paulo Nogueira Filho e outros) firmaram um documento remetido como presente de aniversário ao Presidente Bernardes no qual enfileiravam todos os males que contaminavam a própria classe dirigente: desinteresse da vida institucional do estado, apatia cívica, “espírito de revolta” contra a profissionalização política e o corporativismo dos políticos profissionais, cristalização da classe política numa casta impenetrável. Etc.

Solução: cassar o direito daqueles que não têm o “direito natural” ao voto (a expressão é deles) e reservá-lo à “parte nobre do País”: ou seja, “os fazendeiros, os negociantes, os doutores, os letrados”. Se não, vejamos:

Pergunta-se: mas por que a elite não concorre às urnas? [...] Porque considera absoluta inutilidade ela, minoria consciente, lutar com a massa bruta inconsciente, que é maioria. [...] O raciocínio geral é este: se meu voto, estudado, ponderado, calculado, livre, tem de ser anulado pelo voto do meu criado, que é um imbecil, sem discernimento nem cultura, prefiro ficar em casa. [Qual a solução? Responde-se: os meios para evitar esse estado de coisas é a adoção do censo alto e do voto secreto]. Porque o censo alto é o controle da política pela elite da Nação, é o respeito à lei feudal [sic] de todos os organismos, é a parte-cérebro desempenhando suas funções de cérebro e a parte-músculo (massa bruta, populaça, gente rural sem cultura nem capacidade de discernimento) subordinada naturalmente ao cérebro (nota 4).

A democracia que a classe dirigente paulista irá defender em 1932 não é muito diferente desta.

Notas:

(1) Manifesto de Luís Carlos Prestes (maio 1930). In: Bonavides, Paulo e Amaral, Roberto (orgs.), Textos políticos da história do Brasil, vol. IV, p. 169.

(2) Manifesto republicano (3 dez. 1870), reproduzido parcialmente em Edgard Carone, A Primeira República (1889-1930): texto e contexto. 3ª. ed. aum. São Paulo: Difel, 1976, p. 272 e 270, conforme a ordem das citações.

(3) Ver Mario Pinto Serva, O voto secreto ou a organização dos partidos nacionaes. São Paulo: Imprensa Methodista, 1924. O livro, escrito como uma ladainha, é um compêndio dos defeitos do regime republicano. Leia-se, como ilustração, os seguintes capítulos: A mistificação eleitoral, O monopólio político em São Paulo, A representação paulista.

(4) O Manifesto assinado pelos expoentes políticos das letras do estado pode ser lido com proveito em: Edgard Carone, A Primeira República (1889-1930): texto e contexto, op. cit., p. 129-132.
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12 de março de 2009

Quando o Brasil era moderno: o Estado antes da crise do Estado

artigo publicado em
doispontos, Curitiba, São Carlos, vol. 5, n. 2, p.143-168, outubro, 2008

[Rio de Janeiro, 1943.
Thomas D. Mcavoy. Life]



Adriano Codato

resumo
O artigo propõe e desenvolve um esquema analítico baseado no neo-institucionalismo histórico para compreender e explicar a gênese da capacidade estatal a partir de variáveis exclusivamente políticas.

Tomando como problema o caso do aumento exponencial do poder estatal durante o regime do Estado Novo no Brasil (1937-1945), procura-se refletir sobre os determinantes empíricos e, derivados deles, os critérios teóricos responsáveis por dar conta de três acontecimentos simultâneos: a centralização decisória no topo do executivo federal; a influência das instituições formais de governo sobre o processo de seleção e recrutamento do pessoal político; e a divisão desigual do poder de decidir entre os diferentes grupos da elite dirigente.

Esses três processos estão na base da construção da autoridade do Estado sobre a sociedade (a “soberania”) e da nacionalização das estruturas de dominação. Eles funcionaram como precondição para a mudança no modelo de desenvolvimento econômico na primeira metade do século XX.

Por contraste, essas variáveis podem servir para pensar o movimento oposto em fins do século XX, onde há, como efeito da “crise do Estado nacional-desenvolvimentista”, uma erosão da capacidade estatal e a constituição de uma nova dependência econômica.


palavras-chave: Estado nacional; instituições políticas; Getúlio Vargas; Estado Novo; neo-institucionalismo


[para ler o manuscrito, clique aqui]
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9 de março de 2009

A elite destituída: a classe política paulista nos anos trinta

In: Caldeira, J. R. (org.). História do Estado de São Paulo.
São Paulo: Ed. Unesp, 2009. NO PRELO


Adriano Codato

Qual foi a configuração da cena política paulista entre 1930 e 1940?

E que repercussões os conflitos que sucederam nesse espaço político impuseram aos direitos de representação da elite e a suas formas de organização partidária?

A proposição dessas perguntas exige alguns esclarecimentos prévios tanto sobre o foco da análise (para onde se olha), quanto sobre o modo da análise (como se enxerga a luta política regional).

Antes de tratá-los, contudo, é preciso listar o que estava de fato em jogo nesse momento da história nacional, definindo assim as razões das sucessivas aproximações e afastamentos dos representantes das oligarquias estaduais de Getúlio Vargas e de sua política autoritária, a questão de fundo deste capítulo.

No caso de São Paulo, há dois fatores que organizam a infinidade de fatos, feitos e personagens dessa época. Em primeiro plano, há a questão do domínio exclusivo, depois da influência efetiva e, por fim, da autoridade possível da elite tradicional sobre o aparelho regional do Estado (o governo e suas secretarias), ou do barulho pela falta de tudo isso, melhor dizendo.

Em segundo plano, há a questão da “organização nacional” (se unitária, se federal), assunto esse que disfarça o problema da divisão do poder de Estado com a “União”. O privilégio de continuar tocando os próprios negócios e, através deles, os negócios do País, é, nesse contexto, bem mais importante do que a questão filosófica a respeito da melhor forma de regime (se democrático, se ditatorial) e da sua famosa legalidade ou ilegalidade “constitucional”, o cavalo de batalha da oligarquia e dos seus ideólogos.

Ter presente esses contratempos causados pela Revolução de 1930 e em torno dos quais se dá efetivamente a luta política e propagandística da classe dirigente de São Paulo, é uma precaução conveniente contra a onda que deseja reescrever a história do liberalismo brasileiro em função do papel progressista que os partidos da elite teriam heroicamente desempenhado na guerra contra o getulismo.

O propósito deste capítulo é expor a variação do espaço político regional ao longo da década de trinta levando em conta apenas a concorrência no interior da classe política de São Paulo.

Para destrinçar a confluência entre a história estadual e a história nacional , dividi este resumo explicativo em quatro partes.

Na primeira, proponho uma delimitação da política paulista em cinco períodos sucessivos sublinhando a questão comum que atravessa todas as conjunturas; na segunda parte, discuto o que estava por trás da demanda obstinada dos políticos do estado (que terminou inclusive num levante armado) para devolver São Paulo a São Paulo, como se dizia; na terceira seção, analiso as conseqüências para a ordenação das classes dirigentes do retorno da política institucional; no quarto item, sintetizo as principais questões que agitaram a cena política paulista depois do golpe do Estado Novo.

[leia o texto completo aqui]

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4 de março de 2009

sobre a "metodologia de pesquisa"

[Yale Professor of Zoology Alexander Petrunkevitch
filming a spider in a laboratory. New Haven, 1944.
Andreas Feininger. Life
]

Adriano Codato


Howard Becker escreveu que “A metodologia é importante demais para ser deixada aos metodólogos”. A frase bem humorada faz eco com a famosa tirada de C. Wright Mills: “Metodólogos: ao trabalho!”.

As duas sentenças enfatizam uma única coisa: que a "metodologia", significando aqui o discurso (abstrato) sobre os procedimentos científicos, não pode nem deve vir separada da prática científica.

É o que ocorre quando certas categorias admitem profissionais especialistas em ciência (os cientistas) e especialistas em ensinar a fazer ciência de modo correto (os vigilantes da ciência).


O discurso abstrato dos guardiões do método sobre o método científico produz umas tantas esquisitices.
Um dos principais defeitos dos cursos e dos manuais de "metodologia de pesquisa" é pretender oferecer ao estudante um repertório completo das técnicas de pesquisa disponíveis ao cientista social — tarefa, ao meu ver, tão impossível quanto inócua. Pois que sentido haveria em apresentar, como num cardápio imaginário, todas as alternativas possíveis (survey, observação participante, métodos qualitativos diversos) sem se perguntar pela sua utilidade real?

Nesse sentido, os cursos/manuais de "Metodologia de Pesquisa" poderiam especializar-se em ensinar técnicas bem mais prosaicas, tais como: “como ler um texto científico” e “como escrever clara e ordenadamente”. Elas são a base para a elaboração de um projeto de pesquisa, a etapa que mais angustia os estudantes.


Uma outra característica dessa curiosa área de estudos é a insistência na discussão "epistemológica" sobre as (im)possibilidades do processo de conhecimento (da ‘verdade’, do ‘real’ etc.) nas ciências sociais, acompanhada pelo gosto por reavivar constantemente a insepulta polêmica da diferença entre as ciências naturais e as ciências "do espírito". Um ponto bem mais útil, a meu ver, é explicar qual a diferença substantiva entre relatar e descrever, de um lado, e compreender e explicar, de outro.


É bem mais produtivo, quando se trata de discutir como se faz pesquisa, tratar um ponto fundamental: quais são as dificuldades lógicas e práticas envolvidas no
processo de construção do objeto de pesquisa a partir de um interesse difuso? Minha experiência como professor dessa disciplina na graduação em Ciências Sociais e na Especialização (latu sensu) em Sociologia Política me convenceram que este é o ponto de partida mais produtivo.

Sendo mais específico, um curso de "metodologia de pesquisa" em Ciência/Sociologia Política poderia enfrentar diretamente problemas típicos dessa tarefa (e que envolvem: a definição do tema, a construção do objeto, a formulação de hipóteses de trabalho, a “escolha” do marco teórico etc.), discutindo alguns tópicos que perpassam nossa prática científica: a questão da “originalidade”, a amplitude da pesquisa, a necessidade da “generalização”, o conhecimento teórico ornamental e um imperativo: diferenciar a abordagem de senso comum da atitude crítica i.e., científica.
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2 de março de 2009

dictabranda - o capítulo final

23 de fevereiro de 2009

"ditabranda" e "democradura"

[general
Ernesto Geisel]



Adriano Codato

O barulho que se fez nos círculos acadêmicos e jornalísticos em torno do editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro último tem lá sua razão de ser.

Comentando o plebiscito na Venezuela, naquele tom professoral dos que acreditam ter o dom da Revelação e o monopólio sobre o segredo e o sentido da Democracia Verdadeira, o diretor daquele jornal decretou: “[...] se as chamadas ‘ditabrandas’ – caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru”, e continuado agora por Hugo Chávez, “faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente”.

Como seria de se esperar, choveram cartas à redação.

O motivo da indignação geral não foi a censura ao presidente venezuelano, mas a referência ao modelo político que vigorou no Brasil entre os governos Castello Branco e Figueiredo. A expressão “ditabranda” (neologismo derivado da contração da palavra ‘ditadura’ com a palavra ‘branda’) evoca, para qualquer um, uma forma de dominação cujo traço distintivo é sua amenidade e, como quer o jornal, o caráter autolimitado do exercício do poder pelos militares. As ditabrandas seriam portanto a alternativa educada aos regimes tirânicos, arbitrários e opressivos, como foi o caso das ditaduras nada suaves que usaram e abusaram do recurso à violência física contra os adversários.

Boa parte dos leitores protestou lembrando as perseguições, as prisões, as torturas, os assassinatos políticos da ditabranda brasileira. Impávido, o jornal reafirmou seu ponto de vista dois dias depois: “Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”.

Como não se define um regime político pela contabilidade de mortos que ele produz, mas pelas regras do jogo que ele estipula e que decidem como serão as relações no interior do governo (o exercício do poder) e como serão as relações entre o governo e a sociedade (o controle do poder), penso que vale a pena aprender um pouco mais sobre a cultura política nacional a partir dessa discussão. Assim, essa querela semântica interessa mais pelo que ela deixa de fora do que por aquilo que inclui.

No debate público, os conceitos teóricos perdem aquela estampa de neutralidade e objetividade que os justifica para tornarem-se acusações políticas. Talvez por isso todos aqueles circunlóquios inventados, seja por especialistas, seja por protagonistas, para evitar o termo cientificamente correto – ditadura militar – para discriminar o “caso do Brasil entre 1964 e 1985”: situação autoritária, Estado de Segurança Nacional, democracia relativa, regime forte e outros parentes do tipo. O próprio Manual da Redação da Folha adverte seus funcionários para utilizar “com critério” o termo ditadura. “É melhor qualificar regimes autoritários de forma objetiva: governo militar”. Além disso, solicita-se não usar “a expressão ditadura militar”. Solicita-se também não escrever “Revolução de 64 para designar o movimento militar ocorrido no Brasil naquele ano”.

As razões de tanta objetividade não são um mistério tão grande assim. Ditadura, ditador, ditatorial são vocábulos do mesmo gênero daquelas expressões condenadas pelo dicionário dos políticos e dos seus assessores de imagem. Ninguém quer ser populista, oligarca, tecnocrata etc. A propósito, partidos de esquerda e de centro-esquerda não se referem bondosamente à ditadura do Estado Novo (1937-1945) como “o primeiro governo Vargas”?

Empenhado em encontrar um designativo mais de acordo com sua própria concepção histórica de como foi o regime brasileiro “entre 1964 e 1985”, o redator da Folha enganou-se duas vezes.

A primeira vez porque, como lembraram vários intelectuais que se mobilizaram para repudiar a versão do jornal (corre inclusive um abaixo-assinado na Internet; assine aqui), a repressão não é uma questão de grau (mais, menos, médio...), mas uma questão de método. A forma de excluir os oponentes do regime não passava apenas pelo monopólio das posições políticas através da manipulação de dispositivos eleitorais, mas pela eliminação física dos adversários.

Fosse a polarização ideológica tão crítica como no Chile, fosse a politização tão intensa como na Argentina, fosse a esquerda armada brasileira mais representativa socialmente, quem garante não teria havido mais baixas?

Acrescentaria que o redator enganou-se uma segunda vez porque empregou de maneira displicente, e errada, a expressão ditabranda. Esse emprego é sintomático de uma certa disposição da cultura política nacional.

Ditabranda é um termo inventado por Guillermo O’Donnell e Philippe Schmitter, dois cientistas políticos que se especializaram em estudar transições do “regime autoritário”, como querem eles (ver o livro Transitions from Authoritarian Rule: Tentative Conclusions about Uncertain Democracies).

Ela não designa um regime político, mas uma fase intermediária entre um regime ditatorial e um regime democrático. Portanto, “ditabrandas” não são ditaduras incompletas, limitadas ou amenas, com baixo grau de repressão política e pouco controle social. São estruturas políticas que já deixaram de ser completamente autoritárias, mas que ainda não são plenamente democráticas. As ditabrandas são definidas pelo grau de liberdades políticas que toleram. Digamos que parte do governo do general Figueiredo e o governo de José Sarney se encaixam aqui.

Sua continuação são as “democraduras”, palavrão dos mesmos autores acima. Esses regimes intermediários são democracias limitadas onde a competição política ainda é restrita a alguns grupos confiáveis e onde há formas atípicas de consulta eleitoral, como plebiscitos, assembléias corporativas, apelos diretos ao “povo” etc. O governo Collor seria o exemplo.

Essas classificações não dizem respeito a palavras, como é óbvio.

No entanto, chama a atenção a resistência difundida ao emprego da expressão ditadura militar, tão corrente, por exemplo, na imprensa da Argentina ou do Chile. Penso que esse fato tem menos a ver com o placar de mortos e desaparecidos dos três regimes e mais com a interdição que pesou sobre o debate político no Brasil a respeito dos governos “entre 1964 e 1985”. Qual foi a natureza, quais foram as razões, qual o legado desse período para a configuração política nacional?

A pressa com que se decretou o restabelecimento da democracia no Brasil em 1985 impediu inclusive de matutarmos sobre a democracia tutelada que se seguiu e seus efeitos sobre o sistema político.
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17 de fevereiro de 2009

Comentário do filme La sociologie est un sport de combat, sobre Pierre Bourdieu


Réalisateur Pierre Carles;
durée: 2h 26min;
année de production: 2001.

Adriano Codato

« Une bonne partie de ceux qui se désignent comme sociologues ou économistes sont des ingénieurs sociaux qui ont pour fonction de fournir des recettes aux dirigeants des entreprises privées et des administrations. Ils offrent une rationalisation de la connaissance pratique ou demi-savante que les membres de la classe dominante ont du monde social. Les gouvernements ont aujourd’hui besoin d’une science capable de rationaliser, au double sens, la domination, capable à la fois de renforcer les mécanismes qui l’assurent et de la légitimer. »

Pierre Bourdieu, Choses dites (1).
[Palestra proferida na Semana de Antropologia UFPR: Desafios da Alteridade; Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2007]

I. O filme: as escolhas da narrativa

Se vocês repararam, no filme de Pierre Carles nunca encontramos Pierre Bourdieu na intimidade. Em seu apartamento, em sua residência secundária, almoçando ou jantando, com sua mulher: isto é, “em família”. Por que isso?

Eu penso que Carles não quer suscitar aquela simpatia fácil que decorre da humanização da personagem: alguém como nós, mas mais famoso; alguém como nós, mas mais inteligente; alguém como nós, mas mais poderoso etc. Dessa maneira, a via escolhida para desmontar a torre de marfim onde, diz-se, os intelectuais vivem encerrados, não é a camaradagem diante de alguém, afinal, “simpático”: atencioso, solidário, paternal.

Nesse sentido, a sedução da Sociologia não vem de quem exerce o ofício, o mestre, o guru, como nas seitas, mas a sedução da Sociologia vem da sua prática por um sociólogo radical que leva os princípios da disciplina ao extremo.

Daí que o documentário de não seja um olhar íntimo sobre o homem Pierre Bourdieu. Como vocês viram, o Autor, em carne e osso, só surge em seu cotidiano de trabalho: num seminário de pesquisa no CSE, num debate com outro “grande intelectual” (Günter Grass), numa escola da periferia de Paris, na rádio comunitária etc.

Creio que essa é a forma para produzir no espectador um olhar simpático sem que a abordagem tenha de ser hagiográfica.

II. A Sociologia como arma

A opção de Pierre Carles, penso eu, é mostrar o interesse prático da Sociologia através do pensamento de um sociólogo em particular e sugerir o interesse político que sua mensagem pode ter para os destinatários privilegiados desse “esporte de combate”: os miseráveis do mundo.

Comentando a seqüência do encontro com as pessoas em Mantes-la-Jolie, onde o protagonista do filme se explica com uma clareza até desconcertante para nós acostumados com a sua escritura, e comparando-a com a irritação de Bourdieu diante do anti-intelectualismo dos jovens do Val-Fourré, Pierre Carles diz o seguinte:

« Dans cette séquence, Bourdieu s'énerve surtout contre l'anti-intellectualisme ambiant qui tend à faire passer l'intellectuel pour un type chiant, éloigné des réalités. Citant l'exemple du sociologue algérien Abdelmalek Sayad, dont il a édité le livre posthume, Bourdieu dit à ces jeunes d'origine algérienne : ce livre, c'est vous, c'est votre histoire, vos expériences. C'est une boite à outils pour vous prendre en main. Si vous vous privez de ce livre sous prétexte qu'il a été écrit par un universitaire, vous vous privez d'un instrument qui vous permettrait de comprendre votre propre situation et d'être un peu moins écrasée par elle. (2) »

A Sociologia é uma caixa de ferramentas para seu utilizada. Quando se recusa a Sociologia, se recusa o conhecimento e o potencial libertador que esse conhecimento pode produzir.

Loïc Wacquant sugeriu a seguinte interpretação:

“Je pense que ce film va profondément modifier le regard que les gens portent sur la sociologie, qui est souvent perçue comme une science-guimauve. Telle que la pratiquent les consultants d'entreprise et que l'invoquent les journalistes bavards, elle ne sert qu'à renforcer une vision molle du monde. Le film de Carles, lui, donne à voir une science dure, tranchante comme un couteau. Il montre le processus qui mène à faire de la sociologie une forme de service public de la pensée critique. C'est un film qui donne envie d'en être et qui va sûrement créer des vocations...” (3)

III. O filme: o estilo a serviço de uma idéia

Uma qualidade importante do filme, a meu ver, é que ele é documental sem ser oficial.

Ele é fiel a uma idéia (isto é, defende uma “tese”, um argumento) sem ser pretensamente “objetivo”. Daí que não haja “outras posições” sobre o assunto. Os críticos de Bourdieu não comparecem para o contraditório.

Enfim, o filme, como os outros dois documentários do diretor sobre a imprensa na França, não é neutro. É engajado e militante, mas de uma militância estranha: uma militância que aposta no poder revelador e liberador da Ciência – no caso, da Sociologia; posição tanto mais esquisita para aqueles que estão, graças aos “delírios pós-modernos” (4), sempre desconfiados da Razão e do discurso científico.

A ausência de artifícios – sem narração em off (não há uma história para contar, a vida do biografado, a sociologia francesa do século XX etc., ou uma moral edificante para transmitir), sem edição aparente, cortes abruptos, sem “estilização”: isto é, um filme “feio” – parece ter um objetivo explícito: mostrar que o pensamento de Bourdieu responde a problemas reais, concretos, colocados pelas pessoas e que não segue um esquema pré-fixado. Um modelo que a edição revelará.

Mas por que no filme não aparece o Bourdieu militante das causas sociais antiliberais?

« L’ambiguïté dans le combat de Pierre Bourdieu est qu’en tant que sociologue, surtout dans la haute idée qu’il s’en fait, il se doit de ne pas clairement exprimer ses opinions politiques sur l’ultra-libéralisme, afin de protéger l’indépendance et la place de la sociologie, mais tout en exposant sa pensée et ses travaux qui, par constat, sont une critique radicale des effets de ce système économique et politique sur le corps social » (5).

IV. Por que a sociologia deve ser um esporte de combate?

O que é mais curioso é que se trata de um filme feito não de imagens, mas de palavras.

O objetivo declarado de Pierre Carles não era ilustrar o discurso cientifico de Bourdieu (e assim facilitar a compreensão de sua sociologia através de associações simples retiradas do repertório do senso comum), mas justamente apostar no poder de evocação da palavra: “O filme deve conduzir o espectador a produzir suas próprias imagens” (6).

Há, claro, uma pedagogia aí. Loïc Wacquant, ao comentar a fita, disse em uma entrevista, o seguinte:

« la sociologie est effectivement un " sport de combat ", dans la mesure où elle sert à se défendre contre la domination symbolique, l'imposition de catégories de pensée, la fausse pensée. Elle permet de ne pas être agi par le monde social comme un bout de limaille dans un champ magnétique. Pour Bourdieu, il s'agit au contraire de penser les forces qui agissent sur nous afin de s'en libérer et de se réapproprier sa propre histoire. » (7)

Notas:
1. cit. por Sylvain Marcelli http://www.interdits.net/2001juin/bourdieu.htm

2. http://www.homme-moderne.org/images/films/pcarles/socio/cyran.html

3. http://www.homme-moderne.org/images/films/pcarles/socio/cyran.html

4. P. Bourdieu, Science de la science et réflexivité. Paris: Éditions Raisons d'Agir.

5. Jerome Bonnefoi, La démocratie est un sport de combat.
http://www.homme-moderne.org/kroniks/blabla/bonnefoi/democ.html

6. http://www.homme-moderne.org/images/films/pcarles/socio/cyran.html

7. http://www.homme-moderne.org/images/films/pcarles/socio/cyran.html
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14 de fevereiro de 2009

a construção autoritária da autoridade do Estado no Brasil: a ditadura de Vargas


[foto: Getulio Vargas
no Palácio do Catete.
1941. Hart Preston. Life]

Adriano Codato

A nacionalização das estruturas de poder, ao mesmo tempo propósito e produto da centralização política no pós-1930, foi em geral interpretada pela historiografia e pela sociologia brasileiras de duas maneiras: em termos teóricos, como condição de possibilidade de autonomização do Estado diante da sociedade; em termos históricos, como a concretização da vontade de um Presidente imperial.

Nesse registro, o “caudilhismo”, ou sua versão modernizada, o “populismo autoritário” são confissões de um modo de desenvolvimento político em que o programa de superação dos poderes privados (os “imperialismos estaduais”) ou carece de mediações institucionais, tal como no fenômeno da ligação direta entre o Presidente e as elites políticas; ou excede em mediações institucionais, como atestam todos os relatos sobre o crescimento e a burocratização do Executivo federal nesse período (1).

Em quaisquer dessas explicações o Estado Novo fica assimilado apenas a uma experiência relativamente bem-sucedida de “‘desapropriação’ dos instrumentos locais e regionais de poder estruturados sob o Estado oligárquico”(2).

Talvez não tenha sido enfatizado suficientemente que a transferência de poder de um nível a outro do sistema político brasileiro – do regional para o nacional – não foi apenas uma questão de cessão de direitos ou alienação de “funções” dos estados ao Estado. Esse processo não poderia prescindir de arranjos formais que garantissem, ao lado da unificação do mercado econômico, a unificação do “mercado político”. Explico.

Assim como o deslocamento do eixo dinâmico da acumulação (da economia agromercantil para a industrial), ele mesmo o resultado prático da ação efetiva de órgãos de planejamento, agências decisórias, burocracias públicas e da atuação de uma elite estatal planejadora – enfim, da “intervenção” do Estado – não resultou da “lógica do sistema capitalista” (seja nacional, seja internacional), a mudança de escala em que o poder de classe e o poder de Estado passaram a ser exercidos não derivou de adaptações paulatinas e sucessivas da estrutura de poder.

Tanto é assim que o problema da hierarquização e da integração entre os subsistemas econômicos regionais, o problema do controle político sobre as elites políticas estaduais e a questão da dominação ideológica sobre a sociedade só foram suficientemente resolvidos no Estado Novo. Eles exigiram uma mudança de regime, uma transformação política, portanto (3).

Assim, gênese institucional do Estado ditatorial e sua compreensão são estratégicas para entender o programa de construção institucional da capacidade estatal, afastando assim as concepções que, com base numa “história administrativa” que faz abstração da sociedade e de seus conflitos, tende a ver a criação e a imposição de novos parâmetros burocráticos apenas como o efeito de manobras adaptativas ao novo “ambiente político”; ou como correções marginais das disfunções do desenho institucional original; ou ainda, tende a tomar tais parâmetros por simples imitação de modelos externos, ou por decorrências automáticas de reformulações das visões correntes sobre a melhor forma de governar, e assim por diante.

Pierre Bourdieu lembrou que, em se tratando do Estado e dos processos de instituição do poder do Estado, não há maneira de romper com a visão naturalizada do desenvolvimento natural das instituições políticas e das práticas administrativas e jurídicas estabelecidas desde sempre “mais poderosa do que a reconstrução da gênese: ao fazer com que ressurjam os conflitos e os confrontos dos primeiros momentos e, concomitantemente, os possíveis excluídos”, essa perspectiva sócio-genética “reatualiza a possibilidade de que houvesse sido [...] de outro modo [...] e recoloca em questão” aquele modo de organização que historicamente “se concretizou entre todos os outros” (4).

Notas:
1. Ver Mario Wagner Vieira da Cunha, O sistema administrativo brasileiro (1930-1950). Rio de Janeiro: Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, 1963.

2. Sônia Draibe, Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do Estado e as alternativas da industrialização no Brasil, 1930/1960. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 62.

3. Para a idéia, ver Luciano Martins, A revolução de 1930 e seu significado político. In: CPDOC/FGV, A revolução de 1930: seminário internacional. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1983, p. 685.

4. Pierre Bourdieu, Espíritos de Estado. Gênese e estrutura do campo burocrático. In: _____. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 98.
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