artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
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12 de fevereiro de 2013

Carnaval e materialismo histórico

[Luiz Sacilotto] 

 ENTREVISTA DA 2ª - JOÃO JORGE RODRIGUES
A Bahia virou a terra de uma artista só: Ivete Sangalo
Presidente do olodum diz que divisão desigual de recursos no carnaval empobrece a Bahia e que 'Afródromo' empurraria negros para gueto
NELSON BARROS NETODE SALVADOR
É Carnaval em Salvador, e João Jorge Rodrigues, 57, presidente do Olodum, crava: há um monopólio na divisão de recursos na folia da Bahia, que é "terra de uma artista só" -Ivete Sangalo.
Na força da cantora, o líder do "bloco mais aclamado e conhecido no planeta", em suas palavras, vê um caráter étnico: ela é branca.
A vinda a Salvador de atrações como o sul-coreano Psy, diz, é mais um retrato de uma Bahia que não valoriza seus artistas, sua negritude.
João Jorge falou à Folha na sede do Olodum, em um belo sobrado encravado no Pelourinho. Em seguida, tinha outra entrevista: com o americano Spike Lee, 55, que filma "Go Brazil Go!", documentário sobre a ascensão econômica do país, que também vai abordar o Brasil da perspectiva racial.
Sobre isso, ele sentencia: a capital baiana "é campeã mundial de apartheid". Sobretudo nos dias de folia.
Mestre em direito público pela Universidade de Brasília (UnB), João Jorge vai na contramão do discurso dominante entre os envolvidos no Carnaval de Salvador.
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Folha - Enquanto cresce a participação popular em blocos de rua no Sudeste, o Carnaval é criticado na academia e por referências do samba e do próprio axé.
João Jorge - O Carnaval do país é um retrato do Brasil atual. Ele é um Carnaval discriminatório, segregado, com mecanismos que reproduzem o capitalismo brasileiro: a grande exclusão da maioria em beneficio de uma minoria.
Seria ingenuidade esperar que no Carnaval de Salvador, de São Paulo, do Recife ou do Rio nós tivéssemos democracia, oportunidade, igualdade. Você passa 359 dias no ano praticando toda forma de violência institucional, de racismo institucional, e você quer que em seis dias o Carnaval seja democrático?
A situação é pior na Bahia?
Aqui, ainda mais. Você tem um segmento que tem os melhores patrocínios, maior visibilidade, todos os recursos. Há cordas separando os blocos do povo.
Estamos falando da possibilidade de o Carnaval ser mais generoso. Além de ser uma festa da alegria, proporcionar também àqueles que fazem cultura ter apoios tão generosos quanto o de quatro grupos. Mas é ilusão achar que isso mudará em curto prazo. Os atores que podiam brigar por isso estão às vezes mais preocupados em fazer parte do jogo.
O chamado 'Afródromo' ajuda ou atrapalha o cenário? [a iniciativa de Carlinhos Brown e outras seis entidades de criar um novo circuito, exclusivo para os blocos afro, estrearia neste ano, mas foi adiada pela nova gestão na prefeitura]
O Olodum tem brigado muito para sair mais cedo e poder ser visto pela televisão. Para que empresas patrocinem de forma equitativa os blocos afros.
Ao mesmo tempo, eles resolveram fazer algo separado. O que a sociedade mais quer é que os negros escolham um gueto para ir e se afastem da disputa com eles. É como se soubéssemos o lugar em que deveríamos ficar, em vez de aparecermos na Barra, no Campo Grande.
Mais ainda: obriga o poder público a ter gastos com outro circuito, quando os recursos poderiam ser distribuídos de uma forma melhor.
Até que ponto o monopólio afeta a festa, a música local?
A diversidade, que antes era a riqueza do Carnaval, foi diminuindo, e hoje o Ilê Aiyê, o Filhos de Gandhy, a Timbalada e o Olodum correm um pouco no meio disso.
Mas nos demais lugares você não tem novidades. A Bahia virou a terra de uma artista só. Parece que os outros estão todos mortos.
Isso mata os artistas emergentes, mata os que estão trabalhando e, em vez de fortalecer essa própria artista, a fulmina, porque é a galinha dos ovos de ouro aberta para pegar ovos. A festa faz de conta que está enriquecendo uma pessoa, mas na verdade está empobrecendo uma cidade, um Estado.
A pessoa é Ivete Sangalo?
Sim, ela.
E como o senhor vê a vinda de celebridades como o sul-coreano Psy, para ações publicitárias, com o discurso de prestigiar o Carnaval?
Essa mudança, de a gente precisar de elementos como esses, é uma coisa recente, tem 20 anos. Antes, as pessoas vinham para participar, para conhecer o Carnaval de Salvador. Com o tempo, passou a ser: 'Eu quero que você venha para você ser importante para o Carnaval'. Inverteu. O Carnaval é que era importante para essas pessoas.
O pessoal pergunta: qual é a atração deste ano do Olodum? É a banda Olodum. A banda mais internacional da Bahia: 37 países, quatro Copas do Mundo, tocou com os últimos 30 grandes nomes da música mundial. Na visão de outros grupos, outros artistas, eles não são atrações no Carnaval de Salvador, atração é o coreano, é a atriz da Globo.
A novidade do Olodum é o samba-reggae, é a força biológica da música que a gente tem, a música de protesto...
E existem novas músicas do Olodum assim?
Tem, e atuais. Agora, qual rádio que toca pagode, sertanejo e funk vai tocar música de protesto? Vou dar um exemplo bem simples: ninguém consegue mudar a ordem do desfile de Salvador, porque foi imposta pelo capital. A ordem é: quem tem mais dinheiro.
Mas qual prefeito ou governador vai dizer: "A gente banca o Carnaval, dá segurança, saúde, infraestrutura, gasta R$ 84 milhões, e todos terão de cumprir a seguinte diretriz -será um desfile alternativo, com um bloco afro, depois um afoxé e um bloco de trio. Um bloco travestido e um trio independente. Em horários que todos possam aparecer na TV". Quero ver qual autoridade da Bahia vai fazer isso.
E Claudia Leitte? Parte do público e da crítica diz que ela tenta repetir Ivete, que não teria identidade...
Não posso falar disso, porque esse é um problema dessas cantoras, desse tipo de personalidade cuja força é o caráter étnico. A força delas é que são cantoras brancas. Se elas se imitam ou não, não posso dizer nada, é o mercado que elas escolheram. De serem cantoras brancas, que dominam todo o mercado de publicidade, todo o mercado de shows, e que uma compete com a outra.
Recentemente, uma delas colocou o filho para subir no palco, e a outra fez o mesmo.
E tem a gravidez de cada uma, tudo que é feito para gerar noticia. Estou preocupado inclusive com Spike Lee, para ele não engravidar ninguém aqui nesse período [risos], para criar notícia, entendeu?
Agora, um fato é importante: elas exercem um papel importante na música brasileira e souberam dar um ar profissional a isso que é uma resposta também às demandas da própria comunidade negra. Você, com ótimas cantoras negras aqui, numa cidade de maioria negra, não capitalizar isso é um erro estratégico. Para você ver a força do racismo e da alienação. As cantoras negras da Bahia seriam milionárias nos EUA.
E os desfiles das escolas de samba no Rio e em São Paulo?
Olha, eles foram importantes nos anos 10 e 20 do século passado para formar uma cultura do samba. Depois, foram engessados pelo modelo de desfile, pelo sambódromo e continuam sendo um espetáculo maravilhoso... De ver. Mas sem participação ampla, e isso difere do Recife, de Olinda e de Salvador.
Por isso o Rio está tendo essa explosão de blocos de rua, mostrando que as pessoas cansaram desse modelo da fantasia, das alas, da batida, de 90 minutos de desfile. Sem falar da guerra publicitária, dos enredos patrocinados.
Em algum momento o Carnaval foi uma festa popular?
Nunca, ainda não é e talvez não seja. É uma festa de multidões, mas que tem uma repressão muito grande sobre tudo. O Carnaval é extremamente limitado, onde se desfila, se bate foto, é preciso pagar taxas. E não é isso que é vendido para o mundo.
Veja, um dos fenômenos mais interessantes do Carnaval é a visibilidade da homossexualidade. Mas é também no Carnaval em que os homossexuais são mais agredidos. Ao mesmo tempo em que parece que a cidade fica liberal, receptiva ao outro, ela é extremamente conservadora.
O Carnaval está migrando para ter os bailes de novo, os camarotes, uma estrutura mais apartada ainda do que se conseguiu ter nos blocos de trio nos horários de desfile.
Mas o Olodum segue nela...
O Carnaval não é a salvação, não é o fim do mundo. É algo importante para a civilidade que precisa emergir, mas não se resolvem os problemas das cidades sem o confronto. O Carnaval é a cara da sociedade. Só em um momento o brasileiro se mostra como ele é. É no Carnaval.

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/93300-a-bahia-virou-a-terra-de-uma-artista-so-ivete-sangalo.shtml

7 de outubro de 2011

o imbecil politicamente incorreto

[Public Enemy, 1991.
© Claudio Elisabetsky. 
Pirelli/MASP]


Por Cynara Menezes,
na CartaCapital

Em 1996, três jornalistas – entre eles o filho do Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, Álvaro –lançaram com estardalhaço o “Manual do Perfeito Idiota Latino-Americano”. Com suas críticas às idéias de esquerda, o livro se tornaria uma espécie de bíblia do pensamento conservador no continente. Vivia-se o auge do deus mercado e a obra tinha como alvo o pensamento de esquerda, o protecionismo econômico e a crença no Estado como agente da justiça social.

Quinze anos e duas crises econômicas mundiais depois, vemos quem de fato era o perfeito idiota.
Mas, quem diria, apesar de derrotado pela história, o Manual continua sendo não só a única referência intelectual do conservadorismo latino-americano como gerou filhos.

No Brasil, é aquele sujeito que se sente no direito de ir contra as idéias mais progressistas e civilizadas possíveis em nome de uma pretensa independência de opinião que, no fundo, disfarça sua real ideologia e as lacunas em sua formação. Como de fato a obra de Álvaro e companhia marcou época, até como homenagem vamos chamá-los de “perfeitos imbecis politicamente incorretos”. Eles se dividem em três grupos:

1. O “pensador” imbecil politicamente incorreto: ataca líderes LGBTs (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Trânsgeneros) e defende homofóbicos sob o pretexto de salvaguardar a liberdade de expressão. Ataca a política de cotas baseado na idéia que propaga de que não existe racismo no Brasil. Além disso, ações afirmativas seriam “privilégios” que não condizem com uma sociedade em que há “oportunidades iguais para todos”. Defende as posições da Igreja Católica contra a legalização do aborto e ignora as denúncias de pedofilia entre o clero. Adora chamar socialistas de “anacrônicos” e os guerrilheiros que lutaram contra a ditadura de “terroristas”, mas apoia golpes de Estado “constitucionais”. Um torturado? “Apenas um idiota que se deixou apanhar.” Foge do debate de idéias como o diabo da cruz, optando por ridicularizar os adversários com apelidos tolos. Seu mote favorito é o combate à corrupção, mas os corruptos sempre estão do lado oposto ao seu. Prega o voto nulo para ocultar seu direitismo atávico. Em vez de se ocupar em escrever livros elogiando os próprios ídolos, prefere a fórmula dos guias que detonam os ídolos alheios – os de esquerda, claro. Sua principal característica é confundir inteligência com escrever e falar corretamente o português.

2. O comediante imbecil politicamente incorreto: sua visão de humor é a do bullying. Para ele não existe o humor físico de um Charles Chaplin ou Buster Keaton, ou o humor nonsense do Monty Python: o único humor possível é o que ri do próximo. Por “próximo”, leia-se pobres, negros, feios, gays, desdentados, gordos, deficientes mentais, tudo em nome da “liberdade de fazer rir.” Prega que não há limites para o humor, mas é uma falácia. O limite para este tipo de comediante é o bolso: só é admoestado pelos empregadores quando incomoda quem tem dinheiro e pode processá-los. Não é à toa que seus personagens sempre estão no ônibus ou no metrô, nunca num 4X4. Ri do office-boy e da doméstica, jamais do patrão. Iguala a classe política por baixo e não tem nenhum respeito pelas instituições: o Congresso? “Melhor seria atear fogo”. Diz-se defensor da democracia, mas adora repetir a “piada” de que sente saudades da ditadura. Sua principal característica é não ser engraçado.

3. O cidadão imbecil politicamente incorreto: não se sabe se é a causa ou o resultados dos dois anteriores, mas é, sem dúvida, o que dá mais tristeza entre os três. Sua visão de mundo pode ser resumida na frase “primeiro eu”. Não lhe importa a desigualdade social desde que ele esteja bem. O pobre para o cidadão imbecil é, antes de tudo, um incompetente. Portanto, que mal haveria em rir dele? Com a mulher e o negro é a mesma coisa: quem ganha menos é porque não fez por merecer. Gordos e feios, então, era melhor que nem existissem. Hahaha. Considera normal contar piadas racistas, principalmente diante de “amigos” negros, e fazer gozação com os subordinados, porque, afinal, é tudo brincadeira. É radicalmente contra o bolsa-família porque estimula uma “preguiça” que, segundo ele, todo pobre (sobretudo se for nordestino) possui correndo em seu sangue. Também é contrário a qualquer tipo de ação afirmativa: se a pessoa não conseguiu chegar lá, problema dela, não é ele que tem de “pagar o prejuízo”. Sua principal característica é não possuir ideias além das que propagam os “pensadores” e os comediantes imbecis politicamente incorretos.”

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15 de maio de 2010

a farra do racismo de classe

[Queimada, 1981
Santa Luzia d'Oeste, RO
Marcos Santilli.
Pirelli/MASP]

“O Setor de Ciências Humanas Letras e Artes, por iniciativa do Departamento de Antropologia, manifesta repúdio à matéria publicada na revista VEJA intitulada  “A Farra da Antropologia Oportunista” (edição 2163, de 5 de maio de 2010). Apresentada como um alerta aos seus leitores, a matéria da VEJA afirma que a antropologia é responsável pelo “surgimento de uma aberração científica” que defende direitos territoriais e sociais de grupos que criam obstáculo ao desenvolvimento do país. Segundo a revista, atualmente 77,6% da extensão territorial brasileira é formada por terras indígenas, quilombolas e por áreas de proteção ecológica. Informação manipulada, incorreta e absurda que embasa não apenas a crítica à antropologia, mas também a ridicularização de povos tradicionais e suas lideranças. Neste caso o  desrespeito configura-se como racismo, pois grupos indígenas e quilombolas são retratados por meio de expressões explicitamente pejorativas como: “Os novos Canibais”, “Teatrinho na Praia”, “Made in Paraguay”, “Macumbeiros de Cocar” e “Os Carambolas”. Apesar de o Brasil ser signatário de convenções internacionais de proteção a minorias étnicas e a despeito dos dispositivos constitucionais que garantem a reprodução física e cultural destas populações, a revista VEJA define as terras indígenas e quilombolas como ameaças à soberania e ao futuro do país. As informações incorretas, o declarado escárnio às estratégias locais de ascensão à cidadania e a crítica grosseira à antropologia envergonham o jornalismo brasileiro e nossa capacidade intelectual.

O conhecimento antropológico ganha estatuto científico a partir do emprego de princípios metodológicos rigorosos e da constante sistematização do conhecimento adquirido. A valorização do ponto de vista dos grupos pesquisados bem como o comprometimento ético do pesquisador são condições fundamentais para a produção antropológica. Condições estas reconhecidas e respeitadas internacionalmente, seja no âmbito da pesquisa acadêmica seja no âmbito dos debates políticos, jurídicos ou administrativos. A Universidade Federal do Paraná orgulha-se de participar, há mais de cinqüenta anos, da formação da antropologia brasileira. Em nossas salas de aula, nos museus, nos eventos científicos, na realização de pesquisas acadêmicas e na contribuição com a elaboração de laudos e estudos institucionais, acolhemos, ao lado de nossos professores e pesquisadores, indígenas, quilombolas, pescadores, faxinalenses, caiçaras e todos aqueles que constroem a diversidade cultural brasileira. Matérias como a veiculada pela revista semanal de maior circulação nacional merecem nosso total descrédito, repúdio e desaprovação."
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21 de março de 2010

futebol e preconceito de classe no Brasil

[Life. 1981]

Nostalgia da lama
JOSÉ GERALDO COUTO
Folha de S. Paulo, Mais!, 21 mar. 2010.

Talvez não seja correto dizer que o esporte é um espelho da sociedade, mas a maneira como os fatos do esporte e seu entorno são lidos pela mídia certamente diz muito sobre ambas (a sociedade e a própria mídia).

O "mea culpa" do golfista Tiger Woods diante das câmeras expôs muito mais que suas infidelidades conjugais. Colocou a nu uma cultura manifestamente puritana que transforma em espetáculo midiático a repressão de suas pulsões.

Como se sabe, muitos norte-americanos, talvez a maioria, acham que gostar de sexo é uma espécie de doença.

No Brasil, a cobertura e a repercussão crítica dos recentes escândalos envolvendo os astros do futebol Adriano e Vagner Love revelam, entre outras coisas, um indisfarçável preconceito de classe.

O que mais escandaliza a chamada crônica esportiva, com honrosas exceções, parece ser o ambiente em que os personagens foram "flagrados". A própria recorrência desse verbo é significativa, como se estar num baile funk ou simplesmente na favela fosse por si só uma atitude ilícita ou, no mínimo, suspeita.

O vínculo entre os termos favela e crime, martelado durante décadas pelos meios de comunicação, parece ter-se tornado indissolúvel.

Condena-se Adriano não tanto por trocar socos com a namorada, mas por fazê-lo no morro da Chatuba, e não numa cobertura na Barra da Tijuca ou num palacete em Milão.

O viés de classe nunca ficou tão evidente, aliás, como quando o jogador, um ano atrás, deixou de se reapresentar a seu clube, a Internazionale de Milão, e se refugiou durante três dias no bairro onde se criou, no Rio de Janeiro. A perplexidade foi geral, na imprensa e no mundo futebolístico.

A pergunta que se repetia era: como um sujeito abre mão de milhões de euros, do destaque num clube de ponta, de uma cidade sofisticada, para voltar à favela? O corolário, explícito ou subjacente, era mais ou menos o seguinte: "Quem nasceu na maloca nunca vai deixar de ser maloqueiro".

Uma espécie de "nostalgia da lama" arrastaria Adriano para baixo -ainda que, topograficamente, para cima.
O que escandaliza, no fundo, é a recusa em aderir aos valores, condutas e discursos tornados praticamente compulsórios para quem "vence" na nossa sociedade.

Não se perdoa Vagner Love por optar por um baile funk na Rocinha em vez de uma boate na zona sul do Rio. No primeiro, estão os "bandidos"; na segunda, a gente de bem.

Pouco importa que o tráfico que mata tanta gente no morro se alimente do consumo recreativo de muitos habitués das casas noturnas chiques.

Num país de "malandros com contrato, com gravata e capital", não escandaliza ninguém que Kaká saia publicamente em defesa dos líderes de sua argentária igreja, investigados em dois países por estelionato e lavagem de dinheiro.

Kaká, diz a crônica em uníssono, é um rapaz de boa cabeça, de boa família, de boa "estrutura". Mas Vagner Love aparecer num baile na Rocinha ladeado por traficantes armados (algo que talvez ocorresse com qualquer celebridade que visitasse o local) é intolerável.

Para reforçar a constatação de que, entre nós, o viés de classe é ainda mais forte do que o viés moralista, um caso exemplar é o de Ronaldo, "flagrado" (olha o verbo de novo) com três travestis num motel do Rio.

O que mais se ouviu, nos bastidores da imprensa, foi: "Como é que um sujeito com a grana que ele tem vai se meter com travecos de rua? Era só pegar o telefone e encomendar a perversão que quisesse, no sigilo do seu apartamento ou de um hotel de luxo".

Ou seja, dependendo do montante gasto, do cenário e dos figurinos, tudo é bonito e aceitável..

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5 de novembro de 2009

ação afirmativa: é necessária uma nova Abolição?


[African American student
Ernest Green.

Little Rock, AR, US
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May 1958.
Grey Villet, Life]


por Muniz Sodré
Observatório da imprensa
27 out. 2009

Há uma questão atravessada na garganta de grupos empenhados na defesa das políticas afirmativas da cidadania negra. Trata-se de saber por que os jornalões (nome talvez mais palatável do que “grande mídia impressa”) brasileiros não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial. Como bem se sabe, esses jornais vêm dando largo espaço a jornalistas e intelectuais decididos a demonstrar que as ações afirmativas constituem uma nova forma de racismo, já que raça não existe e, ademais, como a população brasileira é predominantemente miscigenada, todos os nossos concidadãos teriam a sua cota de negritude. Logo, não faria qualquer sentido ficar procurando saber quem é negro ou branco para proteger o primeiro.

Foi essa a questão debatida nos dias 14 e 15 de outubro, durante o seminário “Comunicação e Ação Afirmativa: o papel da mídia no debate sobre igualdade racial”, realizado na Associação Brasileira de Imprensa por entidades como Comdedine, Cojira e Seppir. É bem sabido que há vozes discordantes das opiniões oficiais dos jornalões, por parte de jornalistas de peso, alguns dos quais pertencentes aos quadros desses mesmos jornais. É o caso de Elio Gaspari, Miriam Leitão e Ancelmo Gois. Estes dois últimos, aliás, foram palestrantes no seminário.

Na mesa sobre “a responsabilidade social da mídia e o debate sobre raça” – que dividi com a jornalista Márcia Neder, da revista Claudia –, comecei afirmando que há certas visibilidades que nos cegam. O sol, por exemplo, se tornado excessivamente visível (olhado de frente), nos impede de enxergar. Mas há também objetos sociais que, se tornados visíveis demais, podem bloquear a visão de quem antes acreditava ver. Parece-me ser este o dilema da cor, do fenótipo escuro, na atualidade brasileira, onde vislumbro um caso de cegueira cognitiva.

De fato, a questão vem sendo tratada como ser pró ou contra o racialismo. A maioria dos favoráveis a propostas como o Estatuto da Igualdade Racial, cotas para universitários etc., lastreia os seus argumentos com as razões do anti-racismo; os desfavoráveis, embora reconhecendo a existência episódica e anacrônica de incidentes racistas, tentam fazer crer que vivemos no melhor dos mundos em termos de conciliação das diferenças étnicas e que seria, portanto, um retrocesso civilizatório racializar a população. Curioso é que esses mesmos argumentos desfavoráveis, sem que seus autores se dêem conta, são racialistas em última análise, ao apelarem para as noções de miscigenação biológica.

Por outro lado, de modo geral, todos se habituaram a pensar na escravidão ora como uma mácula humanitária, ora como um anacronismo, uma instituição retrógrada na história do progresso. Vale, entretanto, apresentar uma opinião de outro matiz, a de Alberto Torres, autor de O Problema Nacional Brasileiro. Foi um dos grandes explicadores do Brasil entre o final do século 19 e início do 20.

Conservador em termos sociais (refratário à urbanização e à industrialização), propugnador de uma República autoritária, Torres revela-se, entretanto, interessante em termos metodológicos e teóricos. Diz em seu livro que “a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu. (…) Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos e fundou toda a produção material que ainda temos”.

Torres era, insisto, autoritário e conservador. Gerou epígonos como Oliveira Vianna, esse mesmo que chegou a justificar em sua obra o extermínio do “íncola inútil”, isto é, do habitante das regiões empobrecidas do país. Era, entretanto, um conservador diferente: discordava das teses sobre a inferioridade racial do brasileiro, não era racista. Sua frase sobre a escravidão é algo a ser ponderado, principalmente quando cotejada com o dito de Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (…) Ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância” (Minha Formação).

É célebre essa passagem sobre a memória afetiva da escravidão – a saudade do escravo. Ela é a superfície psicológica do fato histórico-econômico de que as bases da organização nacional foram dadas pelo escravismo. Por isso, vale perguntar que apreensão os brasileiros fazem desse fato, pouco mais de um século depois da Abolição.

Alguns pontos devem ser considerados:

1. A palavra “apreensão” não diz respeito a concepções intelectuais, e sim, à incorporação emocional ou afetiva do fenômeno em questão. No interior de uma forma social determinada, nós apreendemos por consciência e por hábito o seu ethos, isto é, a sua atmosfera sensível que nos diz, desde a nossa mais tenra infância, o que aceitar e o que rejeitar.

2. A reinterpretação afetiva da “saudade do escravo”, que envolve (a) as relações com empregadas domésticas e babás (sucedâneas das amas-de-leite); (b) o afrodescendente como objeto de ciência (para sociólogos e antropólogos); (c) imagens pasteurizadas da cidadania negra na mídia.

Diferentemente da discriminação do Outro ou do racismo puro e simples, a saudade do escravo é algo que se inscreve na forma social predominante como um padrão subconsciente, sem justificativas racionais ou doutrinárias, mas como o sentimento – decorrente de uma forma social ainda não isenta do escravagismo – de que os lugares do socius já foram ancestralmente distribuídos. Cada macaco em seu galho: eu aqui, o outro ali. A cor clara é, desde o nascimento, uma vantagem patrimonial que não deve ser deslocada. Por que mexer com o que se eterniza como natureza?

Nada, portanto, da velha grosseria racista, da velha sentença de “pão, pano e pau” proferida pelo padre Antonil a propósito dos negros. Não há mais lugar histórico para o “pau” desde a Abolição, ou melhor, desde a Lei Caó. O argumento explicitamente racista não leva ninguém a lugar algum no império das tecnologias do self incrementadas pelo mercado e pela mídia.

Mas é imperativo para o senso comum da direita social que as posições adrede fixadas não se subvertam. O escravismo é mais uma lógica do lugar do que do sentido. É dele que, de fato, têm saudade os que acham um escândalo racial proteger as vítimas históricas da dominação racial. E os jornalões, intelectuais coletivos das classes dirigentes, não fazem mais do que assim se confirmarem ao lhes darem voz exclusiva em seus editoriais e em suas páginas privilegiadas, ao se perpetuarem como cães de guarda da retaguarda escravista. É oportuno prestar atenção à letra da canção de Cartola (“Autonomia”) em que ele afirma a necessidade de “uma nova Abolição”.
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17 de março de 2009

A democracia da classe culta paulista na República Velha

[A sweaty worker loading sacks
onto the McCormack line boat.
John Phillips, 1939. Life]


Adriano Codato

As práticas oligárquicas das elites dirigentes de São Paulo na Primeira República (1889-1930) podem ser lidas nos documentos do tenentismo radical.

Os juízos de Prestes a respeito dos propósitos da Aliança Liberal e de seus líderes, “meia dúzia de senhores que, proprietários da terra e dos meios de produção, se julgam a elite capaz de dirigir um povo de analfabetos e desfribrados, na opinião deles, e dos seus sociólogos de encomenda” (nota 1), não chegam a valer por uma análise científica dessa estrutura de poder, mas quase.

Todavia, são nos próprios documentos da oligarquia que se vão encontrar os modos de justificação dessa política excludente.

Seria supérfluo demonstrar as “estratégias típicas de construção simbólica” (Thompson) de que se vale a retórica dessa ideologia para reproduzir valores e produzir crenças.

Exemplo: universalização dos interesses dos grandes proprietários rurais através do “agrarismo”; racionalização de sua aversão ao capitalismo industrial através do “liberalismo” econômico; deslocação do sentido efetivo da idéia de representação popular através do “elitismo” embutido nas concepções da vida política; naturalização dos privilégios políticos de classe e também da incapacidade do sistema promover uma participação eleitoral um pouco menos insignificante através do reconhecimento tácito da incompetência social da maioria dos cidadãos; e assim por diante.

Uma das sentenças mais significativas e menos dissimuladas do Manifesto Republicano não é aquela que afirma “Somos da América e queremos ser americanos” (isto é, não súditos e sim cidadãos), mas a que diz: “No Brasil, antes ainda da idéia democrática, encarregou-se a natureza [sic] de estabelecer o princípio federativo” (nota 2).

O progresso material de São Paulo, garantido pela aplicação estrita desse princípio federativo nos cinqüenta anos seguintes, tornou a “idéia democrática” mais natural, com a condição de não haver, na realidade, democracia.

Ou melhor: a democracia liberal permaneceu só como idéia, já que, para as situações oligárquicas, ela era de fato impraticável e para as oposições, inalcançável como um direito.

Embora as dissidências oligárquicas criticassem o modo de funcionamento do regime político (combinações secretas, perseguições abertas, designações ao invés de eleições etc. (nota 3)), a tônica dessas insatisfações poderia resultar ou na tentativa de recuperação dos verdadeiros princípios liberais da Carta de 1891 (definíveis segundo uma duvidosa hermenêutica jurídica), ou pura e simplesmente na emancipação deles.

Os movimentos de “regeneração democrática” das décadas de 1910 e 1920 consistiram tão só em apelos literários à purificação dos costumes políticos nacionais. Na maior parte das vezes, o propósito era, como enfatizou Décio Saes (Classe média e sistema político no Brasil. São Paulo: T. A. Queiroz, 1985), a radicalização dos aspectos mais excludentes da democracia liberal-oligárquica.

O exemplo seguinte é especialmente eloqüente.

Em sua luta pelo aperfeiçoamento da democracia, os homens mais ilustrados do liberalismo paulista tinham a faculdade de tornar quase dispensável qualquer exposição do conteúdo latente de sua ideologia espontânea.

Em 1924, logo depois da crise militar em São Paulo, alguns deles (Monteiro Lobato, Rangel Moreira, Spencer Vampré, Fernando de Azevedo, Renato Jardim, Plinio Barreto, Mario Pinto Serva, Paulo Nogueira Filho e outros) firmaram um documento remetido como presente de aniversário ao Presidente Bernardes no qual enfileiravam todos os males que contaminavam a própria classe dirigente: desinteresse da vida institucional do estado, apatia cívica, “espírito de revolta” contra a profissionalização política e o corporativismo dos políticos profissionais, cristalização da classe política numa casta impenetrável. Etc.

Solução: cassar o direito daqueles que não têm o “direito natural” ao voto (a expressão é deles) e reservá-lo à “parte nobre do País”: ou seja, “os fazendeiros, os negociantes, os doutores, os letrados”. Se não, vejamos:

Pergunta-se: mas por que a elite não concorre às urnas? [...] Porque considera absoluta inutilidade ela, minoria consciente, lutar com a massa bruta inconsciente, que é maioria. [...] O raciocínio geral é este: se meu voto, estudado, ponderado, calculado, livre, tem de ser anulado pelo voto do meu criado, que é um imbecil, sem discernimento nem cultura, prefiro ficar em casa. [Qual a solução? Responde-se: os meios para evitar esse estado de coisas é a adoção do censo alto e do voto secreto]. Porque o censo alto é o controle da política pela elite da Nação, é o respeito à lei feudal [sic] de todos os organismos, é a parte-cérebro desempenhando suas funções de cérebro e a parte-músculo (massa bruta, populaça, gente rural sem cultura nem capacidade de discernimento) subordinada naturalmente ao cérebro (nota 4).

A democracia que a classe dirigente paulista irá defender em 1932 não é muito diferente desta.

Notas:

(1) Manifesto de Luís Carlos Prestes (maio 1930). In: Bonavides, Paulo e Amaral, Roberto (orgs.), Textos políticos da história do Brasil, vol. IV, p. 169.

(2) Manifesto republicano (3 dez. 1870), reproduzido parcialmente em Edgard Carone, A Primeira República (1889-1930): texto e contexto. 3ª. ed. aum. São Paulo: Difel, 1976, p. 272 e 270, conforme a ordem das citações.

(3) Ver Mario Pinto Serva, O voto secreto ou a organização dos partidos nacionaes. São Paulo: Imprensa Methodista, 1924. O livro, escrito como uma ladainha, é um compêndio dos defeitos do regime republicano. Leia-se, como ilustração, os seguintes capítulos: A mistificação eleitoral, O monopólio político em São Paulo, A representação paulista.

(4) O Manifesto assinado pelos expoentes políticos das letras do estado pode ser lido com proveito em: Edgard Carone, A Primeira República (1889-1930): texto e contexto, op. cit., p. 129-132.
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7 de dezembro de 2008

o racismo da inteligência


[Students at New York University. 1949
Photographer: Herbert Gehr. Life]



A política de cotas (sociais e "raciais", i.e., baseadas na cor), os vários programas de apliação do acesso à universidade pública e privada (REUNI, PROUNI, PROVAR etc.) desencadearam uma discussão tensa entre os intelectuais brasileiros, particularmente entre os profissionais das ciências sociais (em sentido amplo). Entidades estudantis também se pronunciaram, principalmente para combater os critérios baseados em atributos socio-econômicos ou "raciais".

É impossível analisar e comentar aqui todas as teses CONTRA as políticas de inclusão e universalização. Chamo a atenção, todavia, para um ponto recorrente e renitente: a defesa do critério do "mérito". A defesa dessa idéia como princípio, ou mais propriamente, a defesa desse princípio como uma idéia, em abstrato, desligado das CONDIÇÕES SOCIAIS de produção de indivíduos capazes de exibir mais méritos que outros, produz o que P. Bourdieu chamou de "racismo da inteligência". Abaixo, uma conferência de Bourdieu sobre. Destaquei em negrito as partes essenciais e em vermelho escuro as teses principais. Pretendo voltar a esse tema em outro post a fim de tratar de outro tipo de discriminação: o racismo de classe.


o racismo da inteligência
Pierre Bourdieu

Primeiramente eu gostaria de dizer que é preciso ter em mente que não há um racismo, mas vários racismos: há tantos racismos quantos grupos que precisem justificar sua existência como tal, o que constitui a função invariante dos racismos.

Parece-me muito importante analisar as formas de racismo que, sem dúvida, são as mais sutis, as mais irreconhecíveis, e portanto as mais raramente denunciadas, talvez porque os que comumente denunciam o racismo possuam certas propriedades que levam a esta forma de racismo.

Estou pensando no racismo da inteligência. O racismo da inteligência é um racismo da classe dominante que se distingue por uma enorme quantidade de propriedades daquilo que se costuma designar como racismo, isto é, o racismo pequeno-burguês que é o objetivo central da maior parte das críticas clássicas ao racismo, a começar pelas mais vigorosas, como a de Sartre [trad.: Reflexões sobre o racismo. Rio de Janeiro: Difel, 1968].

Este racismo é próprio de uma classe dominante cuja reprodução depende em parte da transmissão do capital cultural, capital herdado que tem como propriedade o fato de ser um capital incorporado, e portanto, aparentemente natural, inato. O racismo da inteligência é aquilo que os dominantes utilizam para produzir uma "teodicéia de seu próprio privilégio", como diz Weber, isto é, uma justificativa da ordem social onde eles dominam. É isto que faz com que os dominantes se sintam justificados de existir como dominantes; que eles se sintam como possuindo uma essência superior. Todo racismo é um essencialismo e o racismo da inteligência é a forma da sociodicéia característica de uma classe dominante cujo poder repousa em parte sobre a posse de títulos que, como os títulos escolares, são considerados como uma garantia de inteligência e que substituíram, em muitas sociedades, inclusive para o próprio acesso às posições de poder econômico, os antigos títulos, como os títulos de propriedade e os títulos de nobreza.

Este racismo deve também algumas de suas propriedades ao fato de que, tendo sido reforçadas as censuras em relação às formas de expressão grosseiras e brutais do racismo, a pulsão racista só pode se exprimir sob formas altamente eufemizadas e sob a máscara da denegação (no sentido da psicanálise): o G.R.E.C.E (Groupe de Recherche et Étude sur Ia Civilization Europèene) mantém um discurso onde o racismo é dito, mas sob uma forma que não o diz. Levado assim a um grau muito alto de eufemização, o racismo se torna quase irreconhecível [ver nota 1]. Os novos racistas são colocados diante de um problema de otimização: ou aumentar o conteúdo do racismo declarado do discurso (afirmando-se, por exemplo, a favor do eugenismo), mas com o risco de chocar e perder em comunicabilidade, em transmissibilidade, ou aceitar dizer pouco e sob uma forma altamente eufemizada, de acordo com as normas de censura em vigor (falando, por exemplo, de genética ou ecologia), e assim aumentar as chances de "passar" a mensagem fazendo-a passar desapercebida.

O modo de eufemização mais difundido hoje em dia é evidentemente a cientificidade aparente do discurso. Se o discurso científico é invocado para justificar o racismo da inteligência, não é apenas porque a ciência representa a forma dominante do discurso legítimo; é também e sobretudo porque um poder que se crê fundado na ciência, um poder de tipo tecnocrático, pede naturalmente à ciência para fundar o poder; 
quando a inteligência é o que legitima para governar, o governo se pretende fundado na ciência e na competência "científica" dos governantes (pensamos no papel das ciências na seleção escolar, onde a matemática se tornou a medida de qualquer inteligência). A ciência pactua com aquilo que lhe pedem para justificar.

Dito isto, acho que se deve pura e simplesmente recusar o problema, no qual os psicólogos se deixaram encerrar, dos fundamentos biológicos ou psicológicos da "inteligência". E, antes de tentar resolver cientificamente o dilema, tentar fazer ciência com a própria questão; tentar analisar as condições sociais do surgimento deste tipo de dúvida e do racismo de classe que ela introduz.

De fato, o discurso do G.R.E.C.E. não passa da forma limite dos discursos mantidos há anos por certas associações de antigos alunos das grandes escolas, das propostas de chefes que se sentem fundados pela "inteligência" e que dominam uma sociedade fundada numa discriminação baseada na "inteligência", isto é, fundada naquilo que o sistema escolar mede sob o nome de inteligência. A inteligência é aquilo que os testes de inteligência medem, isto é, aquilo que o sistema escolar mede. Eis a primeira e a última palavra do debate que não poderá ser resolvido enquanto permanecermos no terreno da psicologia, porque a própria psicologia (ou pelo menos, os testes de inteligência) é o produto de determinações sociais que estão na origem do racismo da inteligência, racismo próprio das "elites" que têm vínculos com a [promoção] escolar, com uma classe dominante que consegue sua legitimidade pelas classificações escolares.

A classificação escolar é uma classificação social eufemizada, portanto naturalizada, absolutizada, uma classificação social que já sofreu uma censura, portanto uma alquimia, uma transformação tendendo a transformar as diferenças de classe em diferenças de "inteligência", de "dom", isto é, em diferenças de natureza.

As religiões jamais fizeram isto tão bem. A classificação escolar é uma discriminação social legitimada e que recebe a sanção da ciência. É lá que se encontra a psicologia e o reforço que ela deu desde o começo ao funcionamento do sistema escolar. O aparecimento de testes de inteligência, como o teste Binet-Simon, está ligado à escolarização obrigatória, com a entrada de alunos que o sistema de ensino não sabia como lidar, pois não eram "predispostos", "dotados", isto é, dotados por seu ambiente familiar das predisposições que o funcionamento comum do sistema escolar pressupõe: um capital cultural e uma boa vontade em relação às sanções escolares. Testes que medem a predisposição social exigida pela escola − daí seu valor preditivo dos sucessos escolares − são bons para legitimar com antecedência os vereditos escolares que os legitimam.

Por que esta recrudescência atual do racismo da inteligência? Talvez porque inúmeros professores, intelectuais − que sofreram em cheio os contragolpes da crise do sistema de ensino − estejam mais inclinados a exprimir ou a deixar que se exprimam sob as formas mais brutais aquilo que até então não passava de um elitismo da boa sociedade (quero dizer dos bons alunos).

Mas é preciso se perguntar também por que a pulsão que leva ao racismo da inteligência também aumentou. Acho que isto se deve em grande parte ao fato do sistema escolar ter se defrontado recentemente com problemas relativamente sem precedentes, como a entrada de pessoas desprovidas das predisposições socialmente constituídas que tacitamente são exigidas por ele; pessoas que sobretudo devido a seu número, desvalorizam os títulos escolares e desvalorizam até mesmo as funções que ocuparão graças a estes títulos. Daí o sonho, já realizado em alguns domínios, como o da medicina, do numerus clausus [número restrito*]. Todos os racismos se parecem. O numerus clausus é uma espécie de medida protecionista, análoga ao controle da imigração, uma resposta contra a obstrução que é suscitada pelo fantasma do número, da invasão pelo número.

Estamos sempre prontos a estigmatizar o estigmatizador, a denunciar o racismo elementar, "vulgar", do ressentimento pequeno-burguês. Mas é fácil demais. Temos que fazer o papel dos credores endividados e nos perguntarmos qual é a contribuição que os intelectuais dão ao racismo da inteligência. Seria bom estudar o papel dos médicos na medicalização, isto é, na naturalização das diferenças sociais, dos estigmas sociais, e o papel dos psicólogos, dos psiquiatras e dos psicanalistas na produção dos eufemismos que permitem designar os filhos de sub-proletários ou de emigrados de tal forma que os casos sociais se tornam casos psicológicos, as deficiências sociais, deficiências mentais, etc. Colocando de outra maneira, seria preciso analisar todas as formas de legitimação de segunda ordem que vêm redobrar a legitimação escolar como discriminação legítima, sem esquecer os discursos de aparência científica, o discurso psicológico e os próprios propósitos que nós temos.

*The numerus clausus is currently used in countries and universities where the number of applicants greatly exceeds the number of available places for students. This is the case in many countries of continental Europe. ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Numerus_clausus

Fonte: In: BOURDIEU, Pierre. 1983. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero. p. 205-208. Intervenção no colóquio do MRAP, em maio de 1978, publicada em Cahiers Droit et Liberte (Races, societés et aptitudes: apports et limites de la science).

Disponível em:
http://www.mhariolincoln.jor.br/arquivos/RACISMO.pdf
Acesso em: 7 dez. 2008


NOTAS
1. Nota da tradução em espanhol: «Méconnuhsable»: término que significa habitualmente «irreconocible», pero que viene de méconnaitre, «desconocer», «no reconocer». Bourdieu subraya la palabra para subrayar su parentesco con la méconnaissance, con el des-conocimiento, término muy utilizado por el autor para subrayar una dimensión esencia] de las sociedades: la negación de intereses, coaccio¬nes, etc., que resulta imprescindible para el mantenimiento de la legitimidad de instituciones, grupos o agentes y que suele ser fruto, como la represión freudiana, de un trabajo continuo de ocultamiento, de negación (N. del T.)

O autor do site de onde tirei o texto recomenda a leitura também de:

Pierre Bourdieu, Classement, déclassement, reclassement.
Actes de la Recherche en Sciences Sociales,
Volume 24 Numéro 24 pp. 2-22, 1978.

baixe o artigo aqui (em francês; em pdf).


14 de novembro de 2008

mérito e cotas: dois lados da mesma moeda


[J.Baptiste Debret - Retour d'un propriétaire]


por
André Marenco,
cientista político - UFRGS

Os argumentos de críticos e defensores de políticas afirmativas convergem em um ponto: para ambos, haveria uma oposição entre a instituição da meritocracia como regra para recrutamento acadêmico e a implantação de mecanismos compensatórios, sociais ou raciais.

Adversários das cotas, retomando uma espécie de retórica da ameaça (Hirschman, 1992) afirmam que sua adoção eliminaria o mérito e o conhecimento prévio, premiando os menos capazes, com efeitos agregados sob a forma de mediocrização universitária. Defensores das cotas subestimam o significado racionalizador de instituições meritocráticas, resumindo a discussão com o argumento de que fins socialmente justos justificam a adoção dos meios necessários para atingi-los.

O equívoco de ambos consiste em não perceber a coerência existente entre meritocracia e a adoção de uma regra de cotas como procedimento para a ocupação de vagas universitárias. Em suas origens, meritocracia surge como alternativa ao status herdado pelo nascimento como critério para ocupação de postos públicos. Trata-se de substituir ascription por achievement, premiando a capacidade individual e não o berço na configuração da hierarquia social. A ironia é que vantagens adscritivas foram capazes de adaptar-se às novas regras impostas pela individualização das sociedades modernas, reconvertendo capital econômico e social familiar, em capital escolar (Bourdieu, 1989, Boltanski, 1982). Investindo, desde o ensino fundamental, na formação escolar de seus herdeiros, famílias bem providas asseguram sua continuidade no interior das instituições universitárias de maior prestígio e qualidade, que oferecem títulos e diplomas mais valorizados no mercado, reproduzindo hierarquias plutocráticas dissimuladas em capacidade intelectual individual.
A conversão de exames vestibulares em simulacros de mérito individual não deve induzir-nos ao desprezo pela relevância de regras meritocráticas, como condição para o estabelecimento de instituições racionais e impessoais. Trata-se de controlar as distorsões provocadas pela origem social, neutralizando o efeito path-dependent berço=diploma=renda.

John Rawls, o maior expoente do liberalismo político do século XX, ao apresentar sua concepção de justiça como eqüidade, ressalta que as desigualdades sociais e econômicas para serem aceitáveis, devem satisfazer duas condições: estar ligadas a posições abertas a todos, segundo condições de igualdade de oportunidades, e, beneficiar aos membros menos favorecidos da sociedade (Rawls, 1971). Quem quer ser liberal, que ao menos seja coerente, e honre o significado desta consigna.

Meritocracia constitui um sistema distributivo, que confere de modo desigual vagas e títulos universitários, premiando a capacidade, responsabilidade e talento individuais. Para que seja justo, é preciso que esteja baseado em uma efetiva igualdade de oportunidades, julgando apenas o esforço e competência individual, e não o sobrenome (o que, parece óbvio, não constitui mérito próprio). Desta forma, instituir um sistema de cotas é a alternativa eficaz e racional para assegurar um indispensável critério meritocrático, como procedimento para o recrutamento aos bancos universitários.

A probabilidade de um branco ingressar na universidade é, no Brasil, 137 vezes superior a de um negro. O percentual de negros com diploma universitário hoje no Brasil equivale ao dos Estados Unidos dos anos 40, quando leis segregacionistas estaduais impediam negros de frequentar, como alunos, universidades para brancos. Equivale ao percentual de negros com diploma na África do Sul, durante o apartheid (PNUD, 2005). Frente a estes números, questionar se existe racismo ou se a implantação de cotas raciais poderiam introduzir o racismo no Brasil, é um modo de tergiversar sobre o problema. Na ausência de oportunidades e de mobilidade social reais, conflitos raciais estão presentes da pior forma possível, traduzidos nos indicadores de violência e criminalidade, enquando nossa classe média vive seu Baile da Ilha Fiscal, falando em harmonia racial e talento individual.

Políticas afirmativas devem oferecer oportunidades de mobilidade social inter-geracional, projetando as condições para a constituição de uma ampla classe média negra, que incremente uma economia de mercado no Brasil. Trata-se de ir além da hipocrisia de falar em cursos técnicos e profissionalizantes para jovens pobres e negros, como se fosse suficiente oferecer a estes a auspiciosa perspectiva de serem, no futuro, balconistas, garçons ou recepcionistas. Teremos harmonia racial quando for corriqueiro consultar-nos com médicos negros, sermos julgados por magistrados negros, dirigidos por executivos negros e ensinados por professores negros. Mas, talvez, seja isso precisamente que amedronta nossa classe média.
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