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Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
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14 de fevereiro de 2010

memória histórica e ditadura militar

[Flor de Gengibre, 1996.
Havaí. Derli Barroso.
Pirelli/MASP]

Corpos fechados

BORIS FAUSTO
Folha de S. Paulo, 14 fev. 2010
Mais!, p. 6

Os temas dos direitos humanos e da preservação da memória de tempos terríveis, no nosso continente, concentram-se principalmente nos casos das ditaduras instauradas na Argentina, no Chile e no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970 do século passado.
Nesse quadro, o Brasil está bem atrás de seus vizinhos, não obstante as iniciativas dos governos Fernando Henrique e Lula, assim como das organizações da sociedade civil.
O que mais avançou foram as justas indenizações às vítimas ou a suas famílias, embora concedidas, em vários casos, com uma largueza injustificável.

Boas e más razões
O discutido terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, encaminhado ao Congresso pelo presidente Lula nas vésperas do Natal de 2009, tratou da questão de cambulhada com uma série de outras.
Isso gerou, por boas e más razões, críticas vindas de todos os lados.
Diante delas, sob pressão militar, o Executivo alterou o texto que visa a promover a apuração e o esclarecimento das violações de direitos humanos, praticados sobretudo no contexto da repressão política, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, suprimindo a referência à "repressão política".
A possibilidade de que torturadores venham a ser punidos é praticamente inexistente, e a preservação da memória dos tempos ditatoriais suscita muitas resistências.
Por que isso acontece? Em primeiro lugar, porque em nosso país a ditadura não abrangeu amplos setores sociais, como na Argentina e no Chile.
Evito aqui falar na infeliz contraposição entre "ditadura" e "ditablanda", pois, para vítimas de torturas e mortes, assim como para seus parentes, a expressão "ditablanda" chega a ser obscena.
Mas, no plano histórico, a amplitude menor da repressão fez com que a luta pelos direitos das vítimas e pela preservação da memória se reduzisse a círculos restritos, não obstante sua intensa atuação.
Fico num único exemplo comparativo. Não temos entre nós nada semelhante ao ocorrido na praça de Maio, em Buenos Aires, que, para muitos, é a "Plaza de las Madres", onde as mães e avós de desaparecidos manifestaram-se, semanalmente, ao longo dos anos.
A praça, em frente à Casa Rosada, tornou-se, assim, um lugar de memória.

Povo sem memória
Por outro lado, é verdadeiro e ao mesmo tempo banal constatar que somos um povo sem memória. Isso ocorre não porque a "falta de memória" esteja inscrita no DNA dos brasileiros, mas por outras razões.
O Brasil conheceu raras situações traumáticas em grande escala cujas consequências tenham atingido o conjunto da população. Nossas mazelas são de outro tipo: miséria, pobreza, desigualdade social.
Também, a precariedade de nosso sistema educacional -um dos principais instrumentos de transmissão da memória histórica ao longo das gerações- contribui para esse quadro, em que o passado se assemelha a um buraco negro, com raros clarões de luz.
Outro fator que pesa na dificuldade de preservação da memória dos anos de chumbo é a negativa de membros da cúpula das Forças Armadas em reconhecer o papel deletério desempenhado não só por militares como também por civis, na implantação do regime autoritário e em sua radicalização.
Admitir essa culpa não significa negar a profunda instabilidade do governo Jango [1961-64] nem encarar os integrantes das organizações de luta armada como jovens românticos, que lutavam pela restauração da democracia.
Mas a ação de rebeldes e a de agentes do Estado cujo dever é prender e julgar, e não torturar e matar, não se equivalem, como pretendem os que querem apagar a memória.
Nem de longe trata-se de promover a execração das Forças Armadas, hoje circunscritas a sua missão constitucional, mas de encarar de frente um período nefasto.

Reconciliação
Um exemplo simbólico vem do Chile.
Em 2006, a Marinha chilena recebeu membros do Agrupamento de Direitos Humanos Salvador Allende, em visita conjunta à ilha de Dawson, no extremo sul do país -local de prisão e tortura nos tempos de Pinochet- com o propósito de promover a reconciliação nacional e reconhecer as infâmias praticadas nos tristes tempos de um passado recente.
No caso brasileiro, abrir arquivos ainda fechados, localizar corpos de desaparecidos, instituir museus e outros lugares de memória são iniciativas que não desonram as Forças Armadas e que, ao contrário, contribuem para o fortalecimento da democracia.
Oxalá, as novas gerações de militares possam dar passos decisivos nesse sentido.

BORIS FAUSTO (borisfausto@uol.com.br) é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

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8 de setembro de 2009

história intelectual do paraná


A gralha azul desbotou?

J. Szwako

A Editora da UFPR acaba de publicar o livro Ensaios de sociologia e história intelectual do Paraná.

Dedicadas a questões como intelectuais, política e cultura paranaense, as seções do livro oferecem um amplo panorama dos projetos políticos e das disputas em torno do Paraná e de sua identidade. Mais que isso, Ensaios oferece uma perspectiva alternatina e crítica à do 'Paraná Tradicional' com suas alegorias míticas tais como a gralha azul ou a araucária.

Aos olhos dessa versão alternativa, esses temas folclóricos e hegemônicos não se desbotam, eles apenas ganham sua devida nuança.

[para comprar, clique na capa]

29 de junho de 2009

a classe senhorial brasileira


[Lord of the Head, 1988.
Mario Cravo Neto.
Pirelli/Masp]


“Desde os cinco anos merecera eu a alcunha de ‘menino diabo’; e verdadeiramente não era outra coisa; fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei a cabeça de uma escrava, porque me negara uma colher do doce de coco que estava fazendo, e, não contente com o malefício, deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não satisfeito da travessura, fui dizer à minha mãe que a escrava é que estragara o doce ‘por pirraça’; e eu tinha apenas seis anos. Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — ‘ai, nhonhô!’ — ao que eu retorquia: — ‘Cala a boca, besta!’ — Esconder os chapéus das visitas, deitar rabos de papel a pessoas graves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar beliscões nos braços das matronas, e outras muitas façanhas deste jaez, eram mostras de um gênio indócil, mas devo crer que eram também expressões de um espírito robusto, porque meu pai tinha-me em grande admiração; e se às vezes me repreendia, à vista de gente, fazia-o por simples formalidade: em particular dava-me beijos”.

Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas, cap. XI.
In: _____.
Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. p. 526-527.
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23 de fevereiro de 2009

"ditabranda" e "democradura"

[general
Ernesto Geisel]



Adriano Codato

O barulho que se fez nos círculos acadêmicos e jornalísticos em torno do editorial da Folha de S. Paulo de 17 de fevereiro último tem lá sua razão de ser.

Comentando o plebiscito na Venezuela, naquele tom professoral dos que acreditam ter o dom da Revelação e o monopólio sobre o segredo e o sentido da Democracia Verdadeira, o diretor daquele jornal decretou: “[...] se as chamadas ‘ditabrandas’ – caso do Brasil entre 1964 e 1985 – partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru”, e continuado agora por Hugo Chávez, “faz o caminho inverso. O líder eleito mina as instituições e os controles democráticos por dentro, paulatinamente”.

Como seria de se esperar, choveram cartas à redação.

O motivo da indignação geral não foi a censura ao presidente venezuelano, mas a referência ao modelo político que vigorou no Brasil entre os governos Castello Branco e Figueiredo. A expressão “ditabranda” (neologismo derivado da contração da palavra ‘ditadura’ com a palavra ‘branda’) evoca, para qualquer um, uma forma de dominação cujo traço distintivo é sua amenidade e, como quer o jornal, o caráter autolimitado do exercício do poder pelos militares. As ditabrandas seriam portanto a alternativa educada aos regimes tirânicos, arbitrários e opressivos, como foi o caso das ditaduras nada suaves que usaram e abusaram do recurso à violência física contra os adversários.

Boa parte dos leitores protestou lembrando as perseguições, as prisões, as torturas, os assassinatos políticos da ditabranda brasileira. Impávido, o jornal reafirmou seu ponto de vista dois dias depois: “Na comparação com outros regimes instalados na região no período, a ditadura brasileira apresentou níveis baixos de violência política e institucional”.

Como não se define um regime político pela contabilidade de mortos que ele produz, mas pelas regras do jogo que ele estipula e que decidem como serão as relações no interior do governo (o exercício do poder) e como serão as relações entre o governo e a sociedade (o controle do poder), penso que vale a pena aprender um pouco mais sobre a cultura política nacional a partir dessa discussão. Assim, essa querela semântica interessa mais pelo que ela deixa de fora do que por aquilo que inclui.

No debate público, os conceitos teóricos perdem aquela estampa de neutralidade e objetividade que os justifica para tornarem-se acusações políticas. Talvez por isso todos aqueles circunlóquios inventados, seja por especialistas, seja por protagonistas, para evitar o termo cientificamente correto – ditadura militar – para discriminar o “caso do Brasil entre 1964 e 1985”: situação autoritária, Estado de Segurança Nacional, democracia relativa, regime forte e outros parentes do tipo. O próprio Manual da Redação da Folha adverte seus funcionários para utilizar “com critério” o termo ditadura. “É melhor qualificar regimes autoritários de forma objetiva: governo militar”. Além disso, solicita-se não usar “a expressão ditadura militar”. Solicita-se também não escrever “Revolução de 64 para designar o movimento militar ocorrido no Brasil naquele ano”.

As razões de tanta objetividade não são um mistério tão grande assim. Ditadura, ditador, ditatorial são vocábulos do mesmo gênero daquelas expressões condenadas pelo dicionário dos políticos e dos seus assessores de imagem. Ninguém quer ser populista, oligarca, tecnocrata etc. A propósito, partidos de esquerda e de centro-esquerda não se referem bondosamente à ditadura do Estado Novo (1937-1945) como “o primeiro governo Vargas”?

Empenhado em encontrar um designativo mais de acordo com sua própria concepção histórica de como foi o regime brasileiro “entre 1964 e 1985”, o redator da Folha enganou-se duas vezes.

A primeira vez porque, como lembraram vários intelectuais que se mobilizaram para repudiar a versão do jornal (corre inclusive um abaixo-assinado na Internet; assine aqui), a repressão não é uma questão de grau (mais, menos, médio...), mas uma questão de método. A forma de excluir os oponentes do regime não passava apenas pelo monopólio das posições políticas através da manipulação de dispositivos eleitorais, mas pela eliminação física dos adversários.

Fosse a polarização ideológica tão crítica como no Chile, fosse a politização tão intensa como na Argentina, fosse a esquerda armada brasileira mais representativa socialmente, quem garante não teria havido mais baixas?

Acrescentaria que o redator enganou-se uma segunda vez porque empregou de maneira displicente, e errada, a expressão ditabranda. Esse emprego é sintomático de uma certa disposição da cultura política nacional.

Ditabranda é um termo inventado por Guillermo O’Donnell e Philippe Schmitter, dois cientistas políticos que se especializaram em estudar transições do “regime autoritário”, como querem eles (ver o livro Transitions from Authoritarian Rule: Tentative Conclusions about Uncertain Democracies).

Ela não designa um regime político, mas uma fase intermediária entre um regime ditatorial e um regime democrático. Portanto, “ditabrandas” não são ditaduras incompletas, limitadas ou amenas, com baixo grau de repressão política e pouco controle social. São estruturas políticas que já deixaram de ser completamente autoritárias, mas que ainda não são plenamente democráticas. As ditabrandas são definidas pelo grau de liberdades políticas que toleram. Digamos que parte do governo do general Figueiredo e o governo de José Sarney se encaixam aqui.

Sua continuação são as “democraduras”, palavrão dos mesmos autores acima. Esses regimes intermediários são democracias limitadas onde a competição política ainda é restrita a alguns grupos confiáveis e onde há formas atípicas de consulta eleitoral, como plebiscitos, assembléias corporativas, apelos diretos ao “povo” etc. O governo Collor seria o exemplo.

Essas classificações não dizem respeito a palavras, como é óbvio.

No entanto, chama a atenção a resistência difundida ao emprego da expressão ditadura militar, tão corrente, por exemplo, na imprensa da Argentina ou do Chile. Penso que esse fato tem menos a ver com o placar de mortos e desaparecidos dos três regimes e mais com a interdição que pesou sobre o debate político no Brasil a respeito dos governos “entre 1964 e 1985”. Qual foi a natureza, quais foram as razões, qual o legado desse período para a configuração política nacional?

A pressa com que se decretou o restabelecimento da democracia no Brasil em 1985 impediu inclusive de matutarmos sobre a democracia tutelada que se seguiu e seus efeitos sobre o sistema político.
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4 de fevereiro de 2009

por que não havia um partido do governo no Estado Novo?


Adriano Codato

Umas das diferenças essenciais entre o regime do Estado Novo no Brasil (1937-1945) e os "totalitarismos" europeus (nazismo, fascismo) foi a inexistência de um partido único. Por quê?

A inexistência de um partido político e, principalmente, de um partido político nacional que unificasse a elite e sustentasse política e ideologicamente o regime ditatorial – uma dificuldade considerável do “modelo político autoritário” brasileiro – não era apenas a expressão das preferências doutrinárias do grupo no poder, grupo esse informado pela copiosa doutrina antiliberal então em voga nos anos 1930.

Embora esse sistema de idéias lhe fornecesse sempre que preciso as justificativas teóricas e os preceitos normativos para tanto, seja à custa do discurso “sociológico” de Oliveira Vianna, seja à custa das análises “histórico-comparativas” de Azevedo Amaral, seja enfim graças à sabedoria política e jurídica do Ministro Francisco Campos, a inexistência de um partido único e mesmo de alguma organização política na “sociedade civil” (isto é, fora do Estado e de sua área estrita de regulação e legislação) é a confissão plena de uma carência fundamental: a impossibilidade de fazer frente às oligarquias em dois terrenos estratégicos, o parlamentar e o eleitoral.

A sucessão de legiões, uniões, clubes etc. tentadas por Osvaldo Aranha entre 1930 e 1933 pode ser vista como se fossem ensaios sinceros, mas fracassados, de “organizar a Revolução”, isto é, combater nesse terreno e, por essa via, tentar monopolizar a cena política nacional(1).

Os muitos partidos regionais constituídos a partir das máquinas governamentais controladas pelos Interventores para concorrer às eleições federais de maio de 1933 e às eleições estaduais de outubro de 1934 (Partido Constitucionalista em São Paulo, Partido Progressista de Minas Gerais e assim por diante) são outra investida de Vargas e sua turma nesse campo privativo das oligarquias. A penúltima etapa desse empenho para agrupar os aliados numa organização política mais estável foi a aproximação efêmera (e polêmica) com a Ação Integralista Brasileira, em 1937, rapidamente descartada; e a última, o projeto do Interventor do Rio de Janeiro, bloqueado a tempo pelo próprio Presidente, de criar uma “Legião Cívica Nacional” em 1938, justamente para não encorajar antigos “regionalismos”. Leia-se: para não encorajar a ideologia regional e a capacidade de mobilização política que dela decorria(2).

Firmes por sua vez em seu liberalismo, as classes dirigentes se dispuseram a lutar nos domínios que conheciam e controlavam e a escrita do seu aparelho cultural mais combativo – O Estado de S. Paulo – é, em 1927, um presságio do que poderia vir mais adiante: “O regime do voto, com os seus defeitos, é o que menos desvirtua a vontade popular. sem eleições e sem partidos, os governos do Brasil serão a presa do primeiro soldado, ou de um tirano civil”(3).

A resposta das oligarquias, nesse contexto de ensaios organizacionais e certames ideológicos, consistiu em recorrer primeiro à estratégia das frentes únicas de partidos para enfrentar o tenentismo reformista (a Frente Única Paulista, que reunia o PD e o PRP, por exemplo, em 1932); depois a chapas e coligações para recuperar posições políticas quando os mecanismos eleitorais voltaram a funcionar (no caso, a Chapa Única por São Paulo Unido, de 1933, que era uma continuação do abençoado casamento anterior); em seguida à criação de novos partidos (como o Constitucionalista em São Paulo, em 1934), ou à evocação dos velhos (o Partido Republicano Paulista volta revigorado para os embates na Assembléia Constituinte estadual em 1935). Por fim, a uma frente política ampla – a União Democrática Brasileira – instrumento previdente quando a oligarquia “tradicional” lançou-se abertamente numa campanha eleitoral em 1937. Seu sucesso depois de 1933 em comandar estados importantes (São Paulo, Pernambuco, o Rio Grande do Sul), controlar o Parlamento nacional, orientar a Assembléia Constituinte e parir, conforme a visão conceituosa do Ministro da Justiça, o “monstruoso aparelhamento de 1934”, explica em parte por que na visão oficial “a Revolução de 30 só se operou, efetivamente, em 10 de novembro de 1937”(4).

Esse juízo é a melhor evidência de que além do conhecido diagnóstico sobre os vícios do poder legislativo, a “agravação dos dissídios partidários” e a “extremação [sic] de conflitos ideológicos”, a opção por um regime sem votações, sem partidos e sem políticos era uma estratégia mais defensiva que ofensiva(5).

Notas:

(1) Osvaldo Aranha empenhou-se desde novembro de 1930 em criar um partido nacional para evitar a militarização do governo, a desagregação da revolução e enfrentar e neutralizar os partidos políticos “republicanos” (PRP, PRM, PRR etc.). Os exemplos são a Legião de Outubro (depois “Partido Revolucionário Nacional”), o Clube Três de Outubro e a União Cívica Brasileira. V. Anita Leocadia Prestes, Tenentismo pós-30: continuidade ou ruptura? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999, p. 53-85.

(2) Na entrada do dia 4 de junho de 1938 de seu diário, o Presidente anotou: “Dei para trás nas legiões que estavam surgindo”. Elas tinham “o mesmo aspecto dos velhos partidos regionalistas”. Getúlio Vargas, Getúlio Vargas: diário. São Paulo: Siciliano; Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1995, vol. II, p. 138.

(3) Citação de O Estado de S. Paulo, 18 ago. 1927; apud Maria Helena Capelato, Os arautos do liberalismo: imprensa paulista, 1920-1945. São Paulo: Brasiliense, 1989, 161.

(4) Francisco Campos. Diretrizes do Estado nacional. In: _____. O Estado nacional: sua estrutura; seu conteúdo ideológico. Rio de Janeiro: José Olympio, 1940, p. 42 e 36, respectivamente.

(5) As expressões entre aspas são do preâmbulo da Constituição de 10 de novembro de 1937.

29 de novembro de 2008

o pensamento político brasileiro: um modelo de análise

Adriano Codato
[texto não publicado]



[Mario de Andrade,
por Loredano]


Qualquer livro que se examine sobre o pensamento político brasileiro coloca de saída a questão: existe algo que se possa chamar de “pensamento político brasileiro”?

O problema que a questão levanta não é saber se existe a disciplina universitária ‘pensamento político brasileiro’ (esse é um ponto indiscutível), ou se há uma literatura acadêmica especializada sobre o assunto, isto é, um conjunto de críticos e comentadores do pensamento nacional, mas a matéria de que trata a cadeira, ou seja, seu objeto.

Minha resposta é: não. Pelo menos não com esse nome. Pelas razões que menciono neste capítulo, é mais produtivo tomar as muitas interpretações sobre a política e a sociedade no Brasil como ideologias políticas ao invés de “pensamento político brasileiro”. Essa opção teórica e metodológica implica em duas coisas. Primeiro, diferenciar pensamento político, ideologia política e teoria política, rótulos quase sempre intercambiáveis. Segundo, expor e explicar o que se entende aqui por ideologia, já que esse é um termo controvertido. Seu emprego, sem maiores explicações, sugere um “saber” (um sistema de idéias) falso, parcial ou interessado.

A questão posta acima – existe um pensamento político brasileiro? – é menos fútil do que parece e a dificuldade reside nos dois termos da expressão: “pensamento político” e “brasileiro”.

Um pensamento político não é exatamente uma seqüência de autores dispostos em ordem cronológica. Um programa de estudos razoavelmente completo sobre o assunto poderia conter textos de Vieira, Bonifácio, Tavares Bastos, Tobias Barreto, Nabuco, Aberto Torres, Oliveira Vianna, Paulo Prado, Caio Prado, Furtado, Hélio Jaguaribe, por exemplo. Essa lista poderia engordar em qualquer direção. Escritores poderiam ser incluídos de acordo com os critérios mais diversos: por região, por período, por tema, por posição política etc. Ainda assim, não teríamos um sistema de pensamento. Não basta, portanto, haver uma série de “retratos do Brasil” mais ou menos fiéis realizados pelos seus intérpretes.

Mas se um “pensamento político” não pode ser simplesmente um conjunto de manifestações literárias sobre a política, apenas mudar o princípio de classificação das idéias e a ordem dos seus autores não resolve a questão. Se não, vejamos.

Um analista identificou e isolou certas linhagens existentes no pensamento político-social brasileiro. Essas linhagens, ou essas linhas de parentesco entre autores muito distantes no tempo e, aparentemente, muito diferentes ideologicamente, formariam o que ele chamou de “famílias intelectuais”. Tais famílias – os liberais-autoritários ou os reformistas-revolucionários – poderiam ser agrupadas conforme as mesmas preocupações, já que dariam origem a “formas de pensar” recorrentes. Por exemplo: a estirpe dos liberais-autoritários encarregou-se de fazer a crítica ao idealismo constitucional, uma praga que consiste em imaginar que se reformam os costumes e se aperfeiçoam as instituições mudando as leis; a estirpe dos reformistas-revolucionários assumiu por sua vez como tarefa fazer a crítica do conservantismo tradicional. Esse propósito está radicado em certo “radicalismo de classe média”, radicalismo esse esgrimido tanto por comunistas e socialistas, quanto por social-democratas. Ele é a base de todas as propostas de reformas econômicas e sociais no Brasil[1].

Ainda que essas duas críticas fossem encontráveis, explícita ou implicitamente, em convicções filosóficas, sociológicas e políticas heterogêneas, seria um exagero postular, com base em algumas coincidências, a existência de um programa intelectual comum equivalente a um pensamento político.

Nada disso diz respeito igualmente à existência de um pensamento brasileiro, isto é, um método de reflexão típico do Brasil. O fato de discutir “problemas brasileiros” não faz das considerações sobre a política um pensamento genuinamente nacional (como poderíamos dizer, por exemplo, do idealismo alemão, do racionalismo francês ou da economia política inglesa).

Da mesma forma que seria exagerado caracterizar maneiras diferentes de pensar o Brasil e discorrer sobre ele de “pensamento político brasileiro”, seria demasiado ver nessas manifestações culturais uma teoria política. Mesmo uma definição simples de “teoria” – um “conjunto de regras ou leis, mais ou menos sistematizadas, aplicadas a uma área específica” do conhecimento; ou ainda, a “doutrina ou sistema” de pensamento “resultantes dessas regras ou leis”[2] – seria, aqui, inadequada. Não existe uma “teoria política brasileira”.

Mas repare: sustentar que não há um pensamento político brasileiro não implica dizer que o que se escreveu sobre a política no Brasil do século XVII ao XXI é insuficiente e irrelevante. Essa literatura, muito rica e interessante, por sinal, possui algumas singularidades que fazem dela uma etapa obrigatória para que se compreenda o que fez o Brasil, “Brasil”.

Uma rápida inspeção no desenvolvimento intelectual nacional entre 1850 e 1950 (por exemplo) revelará a presença de alguns temas recorrentes, alguns problemas inabaláveis e certos preconceitos ideológicos que sobrevivem na doutrina política da pátria por gerações. Explico.

Mesmo considerando diferenças de estilo de obra para obra (uma prosa ora mais sociológica, ora mais ideológica), ou as obsessões específicas de determinadas “famílias intelectuais” (o predomínio do Estado sobre o mercado, para os liberais; o predomínio do mercado sobre o Estado, para os socialistas), um tema recorrente, isto é, que torna sempre a ser discutido não importa o autor, a época e sua posição política é o sentido da nacionalidade.

Essa é uma expressão importante para compreender o que vem a seguir. Isso porque a palavra “sentido”, presente na fórmula “sentido da nacionalidade”, tem aqui três acepções, as três encontráveis nos estudos políticos brasileiros: i) sentido como significado, ii) sentido como vocação e iii) sentido como direção. Essas acepções definem um conjunto de problemas próximos entre si – uma problemática – e comuns aos estudos políticos brasileiros.

Na primeira acepção, sentido como o significado da nacionalidade, o que os eruditos querem saber é o que, afinal de contas, nos define como um povo singular, original. Daí as perguntas: ‘o que é o Brasil?’; ‘quem são os brasileiros?’; ‘há uma essência nacional?’[3]. Essas interrogações serão respondidas de vários modos – somos mestiços, somos cordiais, somos católicos, somos malandros, por exemplo. A cada uma dessas respostas corresponderá, na fabulação dos nossos intelectuais, um tipo de estrutura política desejável ou simplesmente incontornável: precisamos de (ou merecemos) um Estado centralizado e forte, um governo autoritário, um chefe carismático e assim por diante.

Na segunda acepção, “sentido” entendido como vocação, propensão, pendor da nacionalidade – idéia essa que aparece na oração ‘qual a vocação do Brasil?’ –, o que se discute é se haveria uma espécie de tendência natural que orientaria o País. A inteligência nacional decretou que no terreno econômico, a vocação agrícola do Brasil se oporia à vocação industrial; no terreno político, a vocação autocrática atrapalharia a concretização da vocação democrática; e no terreno social, o tradicionalismo rejeitaria a modernidade.

Na terceira acepção, “sentido” entendido como direção, orientação, rumo, o sentido da nacionalidade, ou o caminho da nacionalidade, significa, nas várias interpretações sobre o Brasil, se perguntar: qual o ‘destino do País?’; enfim, ‘para onde vamos?’. Se na acepção anterior se sabe de antemão a resposta, qual é de fato a vocação do Brasil, nessa acepção a indefinição é total. As indagações do tipo ‘para onde vamos?’ são as indagações que se repararmos bem estão na base da famosa sentença: “Brasil, país do futuro”.

Mencionei acima que ao lado de temas recorrentes, como esse do sentido da nacionalidade, haveria, no “pensamento político brasileiro”, alguns problemas constantes e certos preconceitos ideológicos difíceis de destruir. Uma preocupação contínua, ligada ao futuro do País, é a preocupação com o atraso, a dependência, o subdesenvolvimento, qualquer nome que se dê à ausência de modernização[4]. Por sua vez, uma prevenção ou preconceito quase intransponível dos críticos sociais está na maneira de conceber a vida política ideal: uma sociedade sem conflito, uma política sem partidos, uma democracia sem povo.

Esse ponto permite ressaltar uma característica central da imaginação política brasileira, referida somente de passagem logo acima: sua extrema politização, ou mais propriamente, sua dificuldade em separar um discurso descritivo (o que é) de um discurso normativo (o que deve ser). Estudos que se incumbiram de discutir para onde vamos, em geral assumiram a tarefa de definir para onde deveríamos ir.

A vida intelectual nacional no século XX deu origem a uma série de visões sobre o Brasil. Mas deu origem também a uma série de programas políticos sobre como organizar a Nação, orientar o Povo, fortalecer o Estado, desenvolver o País. Assim, para entender melhor as concepções e as proposições de liberais, conservadores, progressistas, socialistas, autoritários etc. seria mais útil tomar o “pensamento político brasileiro” como um conjunto ora mais, ora menos articulado de ideologias teóricas (doutrinas) e de ideologias práticas (visões de mundo).

Essa opção metodológica requer um esclarecimento prévio sobre a noção de ideologia e seu uso na análise do pensamento ou da teoria política.

Notas
[1] Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2007, p. 29-30.
[2] Cf. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. CD-ROM. Versão 1.0. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
[3] Como Fernando Novais observou, uma “problemática dessa natureza conferiu o ritmo do pensamento das diferentes gerações” intelectuais. “No período que se estende da Independência à Regência, os textos do Patriarca José Bonifácio são exemplares dessa inquietação. Durante a Belle Époque, são expressivas as figuras de Lima Barreto, Manuel Bonfim e, sobretudo, Euclides da Cunha [...]. Nos anos 30, estréiam os chamados intérpretes” do Brasil: Caio Prado, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre. Fernando A. Novais, Aproximações: estudos de História e Historiografia. São Paulo: Cosac Naif, 2005, p. 266.
[4] Veja, sobre esse ponto, Luiz Guilherme Piva, Ladrilhadores e semeadores: a modernização brasileira no pensamento político de Oliveira Vianna, Sérgio Buarque de Holanda, Azevedo Amaral e Nestor Duarte (1920-1940). São Paulo: Departamento de Ciência Política da USP. Ed. 34, 2000.