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Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections
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2 de abril de 2009

A dinâmica e o legado de 64

[Vice President Jango Goulart Rio Grande
do Sul Ranch, 1957. Dmitri Kessel. Life]

Um artigo de 15 anos atrás e atualíssimo (em vista da ausência de historiografia sobre o assunto). Incluí os links para melhor compreensão do texto e do contexto, fiz alguns comentários (sempre em cores diferentes), destaquei em negrito as passagens principais e listei algumas referências básicas sobre os assuntos tratados.

LUCIANO MARTINS

Folha de S. Paulo 31/03/1994 Página: 1-3
TENDÊNCIAS/DEBATES

A persistência até hoje de uma polaridade (golpe/revolução) para designar o que ocorreu em 64 não se explica apenas pela função valorativa (crítica ou laudatória, conforme o caso) que reveste cada um desses termos. Antes, parece indicar ainda uma dificuldade conceitual para entender a natureza da crise do início dos anos 60 e a arregimentação política que ela gerou.

Os grandes investimentos realizados no governo JK, que mudaram o perfil da economia, haviam sido possíveis graças ao concurso do capital estrangeiro e do financiamento estatal. Mas terminada a montagem da indústria de bens de consumo durável e a expansão dos setores de infra-estrutura, já eram outras as condições existentes.

De um lado, capital e financiamento estrangeiros se retraíram e, de outro, a utilização de recursos públicos não só já se havia tornado inflacionária como a disponibilidade desses recursos diminuiu consideravelmente, seja pela insensatez que foi a construção de Brasília, seja pelo desarmamento fiscal ocorrido durante o governo Janio Quadros (instrução 204 [da SUMOC]. Trata-se de uma medida de unificação das taxas de câmbio do dólar. Sobre a SUMOC, clique aqui). Estava posta, portanto, a questão do financiamento do desenvolvimento, como condição para a continuidade do processo.

Socialmente, os rápidos deslocamentos na posição relativa ocupada por estratos situados nas esferas média e superior do universo social geraram tensões sociais e inquietações latentes. A inflação e a queda no ritmo de crescimento potencializaram essas tensões e geraram um forte sentimento de insegurança quanto às perspectivas de futuro para as classes proprietárias e médias em ascensão.

Ao mesmo tempo, no outro extremo do espectro social criava-se a difusa e frustradora percepção de que os prometidos efeitos do progresso gerado pelos "50 anos em cinco" não se propagavam para as camadas inferiores da sociedade. Até porque os bens de alto valor unitário produzidos pela nova indústria conflitavam com o perfil de distribuição de renda então existente.

A resolução dessa crise socioeconômica se apresentava (ou era assim percebida) como um dilema: ampliar o mercado de consumo através de reformas sociais, de modo a adequá-lo à nova estrutura produtiva, ou estratificá-lo deliberadamente, de forma a circunscrever às esferas superiores e médias da distribuição da renda a demanda efetiva.

O Plano Trienal (1963) [para informações mais contextuais sobre o Plano de Furtado, clique aqui] foi uma tentativa de solucionar o dilema. Seu fracasso parece demonstrar (supondo que ele fosse economicamente viável) que já não haviam mais condições políticas para resolver o problema por meio de uma solução conciliatória.

É que a exacerbação social já se transformara em radicalização política e começava a se traduzir em crise de governabilidade. As classes proprietárias mobilizaram-se através de seus grupos de pressão (Ipes, Ibad etc.) [Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais; Instituto Brasileiro de Ação Democrática], ao mesmo tempo que as classes médias saíam às ruas nas "marchas pela família e pela propriedade" [Marchas da Família com Deus pela Liberdade; para uma análise do movimento, clique aqui]. Os setores de esquerda, excitados pela Revolução Cubana, pensavam capitalizar as frustrações populares com a bandeira das reformas de base "na lei ou na marra".

Essa polarização interna [para algumas imagens, clique aqui], sobre a qual se projetavam os interesses da Guerra Fria, cindiu o populismo, privando-o de sua tradicional função mediadora. O governo Goulart tanto foi acusado de ceder à subversão da ordem econômica e política quanto de ser incapaz de promover as reformas sociais.

Sua fracassada tentativa de pedir o estado de sítio em outubro de 63, para fechar a brecha política, reprimindo tanto a direita quanto a esquerda, tornava claro que Goulart não mais controlava o rumo dos acontecimentos. Mais grave: os protagonistas em conflito pareciam convergir na crença da impossibilidade de resolvê-lo no quadro das instituições democráticas. [para uma análise que sustenta este ponto de vista como a causa principal do golpe, cf. Argelina Figueiredo. Democracia ou Reformas?]

É nesse quadro de polarização e impasse político, agravado pelos motins de sargentos e marinheiros, que se dá a intervenção militar.

A evidência histórica disponível demonstra que a conspiração militar, mesmo considerando suas ramificações políticas e a ação dos bolsões militares radicais existentes desde os anos 50, articula-se não em torno da tomada do poder (na forma clássica do golpe de Estado ), mas da resistência à intenção atribuída ao governo Goulart de mudar a configuração do poder: o fantasma da "república sindicalista".

O fato de a decisão dos dois generais de Minas de iniciar por conta própria as ações ofensivas ter contado com imediata cobertura civil e uma adesão militar em cascata, obrigou o núcleo decisório da conspiração (general Castello Branco) a passar à iniciativa para não perder o controle dos acontecimentos. [para uma compreensão melhor sobre como os militares viam a conjuntura, clique aqui]

Essa circunstância possibilitou aos militares reivindicarem para si, com função legitimadora, o papel de intérpretes de um amplo sentimento existente na sociedade. O que denominaram de "revolução" serviu para justificar sua permanência no poder e, em seguida, para redefinir os suportes sociais e políticos que lhes permitiram relançar o processo de desenvolvimento em outras bases.

Nesse sentido, 64 não foi nem um "golpe" nem uma "revolução". Seria, com mais propriedade, uma "contra-revolução preventiva". Muito embora seja importante assinalar que tanto os temores que alimentavam a inquietação social conservadora quanto as esperanças que animavam a retórica radical dos setores de esquerda se baseavam numa falsa percepção da realidade e da correlação de forças existente. A ausência de resistência e a facilidade com que se realizou a tomada do poder constituiu uma enorme surpresa para ambos os lados. [sobre os militares e o governo Goulart, clique aqui]

Os recursos utilizados pelos militares para institucionalizar o regime autoritário e a direção impressa ao processo econômico é que vão, em planos diferentes, criar novas realidades no país e constituir o legado de 64.

O legado social e econômico é contraditório. De um lado, é inegável que houve uma extraordinária expansão e integração da estrutura produtiva. De outro, o irresponsável endividamento interno e externo e o descaso pelas desigualdades sociais criaram entraves para o equilíbrio social e econômico do país.

Já o legado político é fortemente negativo. O arbítrio, o desrespeito aos direitos civis, a desmoralização do Direito e da Justiça como princípios de organização social, a nefanda prática da tortura etc. banalizaram a violência na sociedade e corromperam a noção de cidadania. Ao mesmo tempo, a introdução do princípio da irresponsabilidade política dos governantes face aos governados e as contínuas desorganizações da estrutura partidária deixaram graves seqüelas para a reconstrução democrática.

Houve quem entendesse que o advento nos anos 60 desses regimes burocrático-autoritários modernizantes na América Latina correspondiam a uma "necessidade" do aprofundamento do capitalismo na região. José Serra, no final dos anos 70, fez uma crítica devastadora dessa tese no que diz respeito ao Brasil [ver “As Desventuras do Economicismo: Três Teses Equivocadas sobre a Conexão entre Autoritarismo e Desenvolvimento”. Dados, n. 20, 1979, pp. 3-45]. E se é inegável que, sob o regime autoritário, ocorreu uma generalização sem precedentes do "ethos" capitalista no país, nada autoriza afirmar a existência de uma relação causal entre esses dois fenômenos. É provável que ainda se tenha que esperar algum tempo para que desvendar o verdadeiro significado histórico de 64.

LUCIANO MARTINS DE ALMEIDA, 73, sociólogo, foi professor titular de ciência política na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Escreveu Estado Capitalista e Burocracia no Brasil Pós-64, entre outros livros.

referências bibliográficas para entender melhor o texto:

FICO, Carlos. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Rev. Bras. Hist , vol.24, n.47, pp. 29-60, 2004.

FIGUEIREDO, Argelina Cheilub.
Democracia ou Reformas? Alternativas Democráticas à Crise Política: 1961-1964. São Paulo, Paz e Guerra, 1993.

MATTOS, Marcelo Badaró. O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 28, n. 55, jun. 2008.

MARTINS FILHO, João Roberto. A influência doutrinária francesa sobre os militares brasileiros nos anos de 1960. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 23, n. 67, jun. 2008.

SANFELICE, José Luís. O movimento civil-militar de 1964 e os intelectuais. Cad. CEDES, Campinas, v. 28, n. 76, dez. 2008.

SILVA, Ricardo. Planejamento econômico e crise política: do esgotamento do plano de desenvolvimento ao malogro dos programas de estabilização. Rev. Sociol. Polit., Curitiba, n. 14, jun. 2000.

TOLEDO, Caio Navarro de. 1964: o golpe contra as reformas e a democracia. Rev. Bras. Hist., São Paulo, v. 24, n. 47, 2004.
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6 de janeiro de 2008

Ivan Lessa: Golpe foi chato antes, durante e depois


[Janio Quandros (C) while campaigning for the presidency. Photographer: Frank Scherschel. February 1960]

Foi chato. Foi chato antes. Foi chato durante. Foi chato depois. O golpe militar de 1964. Não há motivo para se chamar de revolução ou contra-revolução.
Foi golpe. E golpe baixo e chato. Antes, já manquitolava o governo do inepto João, vulgo “Jango”, Goulart. Era um governo chato.
Se você tivesse menos de 30 anos e estivesse interessado em, como é normal, apenas seguir sua vida, tudo aquilo, toda aquela deblateração política, era chato, muito chato.
O aroma inconfundível da incompetência aliada à burrice e somada à má fé perpassava todas as manhãs azuis de sol, sal, sul e as outras bossas-novas da época. Impossível fugir da política, como impossível fugir do bêbado no bar.
O objetivo da política é deixar as pessoas em paz. Não dava. A política ia atrás da gente como um maluco armado de pau. Logo, logo, literalmente.
Todos os jornais foram a favor do golpe. Só se mexeram quando neles baixou a censura, que acabou virando certificado de bons antecedentes. A censura era uma espécie de condecoração militar ao contrário. Ostentava-se óbvia driblação como coronel explicando medalha.
Para azar meu, o único jornal contra o golpe foi Última Hora, onde um grande amigo lá escrevia, com muito entusiasmo e pouca repercussão.
No 1º de abril, passou em casa, pediu para ajudá-lo a se desvencilhar da biblioteca marxista. Lá fomos nós, no meu carro, à noite, distribuindo literatura comunista para a relva do aterro do Flamengo.
Nada adiantou eu argumentar que seria muito pior se fossemos presos com toda aquela subversão (o apodo ainda não se popularizara) no meu Mercury.
O resto, confundo tudo, não fosse eu bom brasileiro. Lembro das coisas – do dia a dia – vagamente. As pessoas que continuaram no país adotaram ares misteriosos de quem “estava por dentro”. Eram uns chatos.
Os que estavam por dentro para valer e partiram para uma pesada, eu não os conhecia. Chato.
Agora os fatos sobre o período que vai de 64 a 85 começam a surgir em forma de livro, filme, documentário, até o raio da telenovela. Discute-se uma discussão chata, triste e enganadora. Anos de chumbo? Anos de bosta, isto sim.
Novos codinomes foram encontrados para aqueles milicos todos. Sacerdote, Feiticeiro. Carniceiro e Açougueiro não foram lembrados. Derramou-se mais sangue do que se pensa e se diz.
E foi muito, mas muito mais chato, do que lembram e registram. Uma chatice que fez escola e – será que não perceberam? – continua.

26 de setembro de 2006

O golpe de 1964 : luta de classes no Brasil - a propósito de "Jango", de Silvio Tendler


Adriano Codato
Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 36, 06 maio 2004.

Comentário sobre o documentário "Jango" de Silvio Tendler (Brasil - RJ, 117 min, cor, 35mm, 1984).


A Cinemateca de Curitiba e a Universidade Federal do Paraná realizaram, na semana do 31 de março de 2004, a mostra "Silvio Tendler – cineasta da história brasileira" e, junto com ela, o ciclo de palestras dedicado aos "40 anos do Golpe de 64". O filme mais emblemático e que documentou com mais detalhes a vida política nacional dos anos 60 foi sem dúvida "Jango" (35 mm., 117 min., 1984). Assisti-lo é ver (ou rever) todos os conflitos que deixaram expostos os motivos da luta social no Brasil sem que seja preciso reavivar o debate no seio da esquerda sobre a pergunta renitente: "Por que perdemos?".

Para as pessoas da minha geração, que crescemos no Brasil dos anos 70, e que tínhamos uma vaga curiosidade por política (que depois se transformaria num interesse vivo e, em alguns casos, numa disposição para a ação militante nos anos 80), os filmes de Sílvio Tendler cumpriram admiravelmente a função que os aparelhos ideológicos não podiam cumprir durante a ditadura. (Uma observação aqui de passagem: já está mais do que na hora de chamarmos as coisas pelo seu nome – que história é essa de “regime militar”?).

Na escola (com exceções, evidentemente), a história política e social brasileira variava do oficialismo militaresco ao ufanismo anedótico, seja em nome das homenagens aos "heróis da pátria", seja pela admiração obrigatória da exuberância da "nossa natureza". Nos meios de comunicação (penso aqui na televisão, em primeiro lugar, mas também nos jornais diários), primeiro o apoio aberto ao golpe de Estado, depois a auto-censura em nome dos "ideais da Revolução", depois a censura política prévia nas redações, depois a auto-censura ideológica já no fim do regime impuseram sobre a política nacional e, principalmente, sobre o período pré-1964 uma barreira quase intransponível. No campo artístico ainda era possível fazer referências veladas à situação, manter certas ambigüidades, forjar sentidos codificados que lançassem uma ponte à política, mas sempre à política do presente. Recorde-se as telenovelas de Dias Gomes, as músicas de Chico Buarque, alguns ensaios de arte-engajada e etc. Mas o que era definitivamente interditado era toda referência ao passado recente: ao regime populista e a seu cortejo de males ("o caos, a desordem e a instabilidade") fruto da integração irresponsável do "povo" na vida política, juntamente com "a corrupção e a demagogia" dos "políticos profissionais" – João Goulart e JK à frente.

O impacto sobre essa geração – que só conhecia o lado oficial da política – ao assistir pela primeira vez o documentário "Os anos JK. Uma trajetória política" em 1980 foi fascinante. Pudemos nós todos ver pela primeira vez a política dos políticos e, com esta fita, ter uma dimensão menos abstrata das mobilizações políticas de massa, o que se não tramava o fio que ligava essa geração de jovens ao velho populismo e ao seu estilo político démodé, evocado por um carisma então esmaecido (e quase sem suportes sociais), instaurava em todos um entusiasmo revolucionário e romântico pelo «povo». Por isso, o cinema de Sílvio Tendler convertia-se na via mais rápida para restaurar na memória política nacional um pedaço de tempo que fora violentamente banido.

Quatro décadas depois do golpe político-militar de 1964 como assistir ao «Jango» (o filme) e como situar Jango (o político) naquela conjuntura crítica? Acredito que se possa tentar responder essas duas questões de maneira direta através de três teses.

Em primeiro lugar, "Jango" é um filme que vê e mostra João Goulart a partir de uma certa mitologia política construída nos anos oitenta.

O filme não é apenas o retrato (trata-se enfim de um documentário) de uma época histórica, ou seja, o retrato objetivo daquele ciclo longo da política brasileira que vai de agosto de 1954 (o suicídio de Getulio Vargas) ao início do ano de 1984 (o movimento das diretas-já), mas ele mesmo já é (em 2004) um documento histórico. O filme pode também ser lido assim. Há um clima no filme que é o clima de uma época – o início dos anos oitenta no Brasil. Não apenas a trilha sonora denuncia isso (Milton Nascimento, Wagner Tiso), não apenas o texto narrado denuncia isso (trata-se de um texto crítico ao regime dos generais, onde todos os termos já se haviam convertido na linguagem comum das camadas médias intelectualizadas), mas principalmente as expectativas políticas, as apostas sobre o futuro e o projeto nacional que vão sendo reconstruídos através da fusão entre a biografia de João Goulart e a antiga forma de participação popular na política depois de vinte anos de ditadura, terror e arbítrio revelam certas promessas que ficaram suspensas no ar – um tipo de "capitalismo social" – que seria preciso enfim opor ao "capitalismo selvagem".

Não se trata, evidentemente, de um programa para restaurar o populismo tal e qual, mas é preciso reconhecer a nota do diretor/autor. Na conjuntura que vai de fins dos anos setenta ao início dos oitenta havia pelo menos quatro projetos políticos no seio da esquerda, seja para superar a ditadura militar, seja para "construir um país", segundo a expressão da época. Havia o projeto dos políticos moderados reunidos na sigla do PMDB, que aceitavam uma transição negociada, mesmo às custas do adiamento da via eleitoral; havia o projeto do novo sindicalismo do ABC paulista – cujo representante político era o PT – que juntos desejavam realizar duas rupturas: com o sindicalismo de Estado e com as formas tradicionais de relação entre os políticos (carismáticos, "populistas") e as massas (agora definitivamente convertida em "classe"); havia também o projeto político da extrema-esquerda (PCBR, PRC, Libelu (e demais tendências trotskistas) e até mesmo algumas tendências anarquistas como o "Luta e Prazer") que pretendiam fundir a transição da ditadura para a democracia com transformação do capitalismo em socialismo; e finalmente havia o projeto político dos herdeiros da política trabalhista (à esquerda: Leonel Brizola (PDT); à direita: Ivete Vargas (PTB)), que reclamavam a realização da herança de Getúlio Vargas – justiça social com desenvolvimento sob a regência do nacionalismo econômico (uma das primeiras e mais impactantes seqüências da fita é justamente a da cerimônia de sepultamento de Getúlio). A posição de Jango no filme, entre a esquerda (que gostaria de acabar com o capitalismo) e a direita (que gostaria de não acabar com o capitalismo) ilustra bem esse último projeto. Tratava-se, numa palavra, de "humanizar o capitalismo" pela via do trabalhismo e da política de conciliação de classes.

Em segundo lugar, penso que "Jango" é um filme que ilustra e dramatiza de forma paradigmática os limites da democracia brasileira no pré-1964. Esses limites são de dois tipos: há um limite «social» e um limite propriamente "político".

Há uma menção, ainda que rápida na fita, ao inesquecível "Manifesto dos Coronéis". Esse talvez seja o documento mais eloqüente (do ponto de vista ideológico) da rejeição das camadas médias ao «populismo» e à sua dimensão "social". Se a majoração do salário mínimo no Primeiro de Maio de 1954, determinada pelo Ministro do Trabalho de Getúlio Vargas, o próprio João Goulart, obedece ao ritual da "doação de direitos", a reação à medida é a oração mais sincera da disposição das cúpulas das Forças Armadas para manter seus privilégios de classe – seu status, sua distinção social, sua diferença diante do "povo" através do valor de seus ordenados.

Os limites políticos da democracia brasileira estão definidos, nessa conjuntura, por duas impossibilidades. Pela impossibilidade de origem anti-liberal para aceitar as "regras do jogo" (daí a campanha direitista pela renúncia de Vargas e a campanha militar para impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Janio Quadros). E pela impossibilidade de origem anti-republicana para aceitar a legitimidade do conflito político como constituinte da própria Democracia. Por isso que, para as camadas médias tradicionais, para as cúpulas das Forças Armadas e para a burguesia brasileira, toda contestação aparecia como "desordem", todo movimento social conduzia à "instabilidade" e tudo isso junto instaurava o "caos". Não foi essa justamente a percepção da "sociedade" depois do outubro de 1963 (quando o governo assume defintivamente uma postura mais à esquerda) até o "Comício das Reformas" em 13 de março de 1964?

Por último, pode-se dizer que "Jango" é um filme que dá à crise de 1964 sua dimensão essencial: mais que uma crise institucional (seja política, seja militar, seja parlamentar), ou uma crise econômica, a crise de 1964 é a expressão-limite da luta de classes no Brasil.

O resultado do golpe de 1964 é muito menos a saída desastrada de mais uma crise do populismo conduzida pela inabilidade de um político – Jango – sem disposição para ativar o "dispositivo militar" e resistir a mais um golpe de Estado, e sim a reação política mais ou menos organizada de uma parte da sociedade brasileira à ameaça (ou melhor, à percepção subjetiva da ameaça) de uma "república sindical" ou, na pior das hipóteses, da instauração do "comunismo". Essa percepção estava ligada a três processos: o crescimento da pressão operária sobre o Estado em nome da «proteção social» diante de um capitalismo em rápida transformação. Daí o número crescente de greves e o reforço do movimento sindical urbano; a radicalização ideológica do movimento nacionalista, liderada pelo ISEB e pelo PCB; e o questionamento efetivo da estrutura agrária através das Ligas Camponesas no Nordeste. É justamente a perda de controle dos políticos populistas diante da ascensão do movimento de massas, e não a sua instrumentalização maquiavélica pelos "demagogos", que está no centro da ruptura dessa estrutura de poder. É ela que, no fim das contas, põe em xeque o compromisso assumido em 1930 e instiga o conjunto das classes dominantes a solicitar às Forças Armadas e restauração da "ordem social".


Referência:
CODATO, Adriano Nervo. O golpe de 1964: luta de classes no Brasil - a propósito de 'Jango', de Silvio Tendler. Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 36, 06 maio 2004.