artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections

25 de novembro de 2009

a ciência política e o Nobel de economia

[Pavilhão Mercedes-Benz do Brasil
Exposição Industrial, 1960.
Hans Günther Flieg.

Pirelli/MASP]


Fábio Wanderley Reis
Valor Econômico,
19 out. 2009

O prêmio Nobel de economia tem sido outorgado a especialistas de perfil diverso quanto às perspectivas adotadas sobre o instrumental analítico da disciplina e suas consequências para as relações com disciplinas afins. Um perfil se ilustra com Gary Becker (1992), talvez o melhor exemplo de economista a tratar simplesmente de estender os postulados e instrumentos da análise neoclássica tradicional a novas áreas temáticas e a buscar a teoria econômica do crime, da família ou do comportamento humano em geral. Ele contrasta fortemente, por exemplo, com George Akerlof (2001), empenhado em trazer à análise tradicional intuições sociológicas (e psicológicas, antropológicas: fazer uma "psycho-socio-anthropo-economics", como formula ele próprio em texto de 1984), ou com Daniel Kahneman (2002), um dos principais responsáveis pela introdução do que se tornou conhecido como a "economia comportamental", atenta às dificuldades envolvidas na adesão ao postulado de racionalidade dos agentes.

Este ano, a balança pendeu claramente para o lado inclinado a revisões e reorientações. Além de Oliver Williamson, economista que, contra os neoclássicos, salienta os "custos de transação", contrapõe hierarquias a mercados e se dedica a problemas de "governança", temos Elinor Ostrom, que, além de mulher (a primeira a ganhar o prêmio), não é sequer economista, e sim cientista política. Seu trabalho se insere numa linha que, incluindo profissionais de várias áreas e pretendendo mesmo eventualmente unificar as "ciências do comportamento", tem permitido, internamente à ciência política, a oposição criativa à intensa penetração do campo pelos supostos e instrumentos da economia neoclássica ocorrida no último meio século, com a difusão da chamada abordagem da "escolha racional". Um artigo recente ("Policies That Crowd out Reciprocity and Collective Action", 2005) dá acesso, em forma sintética, a aspectos salientes da empreitada.

O ponto crucial pode ser posto em termos de questionar o que se tornou conhecido, desde um trabalho de Mancur Olson que se inscreve entre os pioneiros na afirmação do "imperialismo" da economia ("A Lógica da Ação Coletiva"), como o "dilema da ação coletiva": indivíduos descritos às vezes como "egoístas racionais", aptos ao cálculo orientado pelo interesse próprio, especialmente interesses materiais, tenderão a não agir de maneira condizente com o interesse coletivo, e a realização deste exigiria que eles fossem expostos a "incentivos seletivos" (ou remunerados ou coagidos, em particular pelo Estado) para se obter a conduta apropriada. Em contraste, a perspectiva de Ostrom e outros sustenta que a melhor suposição para explicar o comportamento humano não seria a referida à mera disposição à maximização de ganhos ou utilidades, mas sim a de que existem múltiplos tipos de indivíduos ou agentes. Teríamos especialmente, ao lado dos egoístas racionais, gente guiada pela "lógica da reciprocidade", que manifestaria o que os autores chamam de "reciprocidade forte", ou seja, a disposição, por um lado, de cooperar, mesmo a algum custo pessoal, com outros que mostrem disposição análoga, mas também, por outro lado, a disposição de punir os que violam a norma de cooperação, igualmente mesmo se a punição envolver custos pessoais. Essa lógica é encontrada em operação em variados estudos de campo e investigações experimentais, particularmente em ambientes distintos dos de mercados altamente competitivos. Ela é afim às comunidades caracterizadas por relações face a face, em que os indivíduos podem cada qual observar o comportamento dos outros e em que se têm condições propícias ao surgimento de regras e instituições autônomas, criadas pelos próprios agentes envolvidos. E destaca-se que a intervenção do Estado, que a lógica do dilema da ação coletiva torna fatal, surge aqui como incerta em seus efeitos: ela pode ocasionalmente estimular o ânimo de colaboração, se percebida como complementar e convergente com os mecanismos comunitários, mas pode também opor-se a ele e eventualmente extingui-lo, concorrendo, por exemplo, para colocar em dúvida a disposição cooperativa dos demais.

A perspectiva geral, especialmente em sua articulação com disciplinas como a biologia evolucionária e em suas ambições multidisciplinares ou transdisciplinares, é com certeza promissora. Mas mesmo esta brevíssima apresentação de algumas de suas sugestões já permite visualizar também as dificuldades. Em particular, o problema de escala e certos desdobramentos dele. O dilema da ação coletiva de Olson é formulado com referência explícita a grupos de grandes dimensões, denominados grupos "latentes", onde a impossibilidade da informação e do controle sobre o comportamento dos demais coloca um insolúvel problema de coordenação em que, no limite, se torna também impossível para cada um agir de maneira que viesse a ser coletivamente racional. Se os problemas se dão em escala que ultrapasse a da comunidade de relações face a face, como resolver a dificuldade de chegar a apreender cognitivamente se os outros estão fazendo a sua parte para aplicar a solidariedade condicional da lógica da reciprocidade? Se a disposição confiante que a colaboração exigiria depende de expectativas, com seu componente informacional ou cognitivo, como condicionar expectativas para começar a implantar a confiança em circunstâncias em que a própria lógica da reciprocidade não justificaria presumi-la?

Talvez infelizmente, não há como evitar que o desafio seja justamente o de assegurar que o mercado definido por relações entre estranhos seja também uma comunidade, como quis Max Weber. E se o Estado é o instrumento indispensável disso, tampouco há como escapar, fechando o círculo complicado, do condicionamento do próprio Estado por um substrato de relações mercantis e de enfrentamento de interesses.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.

cit. a partir de http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=3594
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13 de novembro de 2009

regionalismo: a ideologia da paulistanidade


["O Semeador"
Sao Paulo, 1947.
Dmitri Kessel. Life]




Adriano Codato

Em São Paulo, o regionalismo assumiu a forma da ideologia da paulistanidade – uma mitologia destinada a convencer e a convencer-se da superioridade material e moral do estado.

Uma definição sucinta dessa fantasia arrebatadora seria provavelmente a seguinte: a paulistanidade é “a ideologia afirmadora da superioridade étnica, econômica e política dos naturais do estado de São Paulo” (1) .

Essa faculdade deveria ser o motivo e o fundamento da autoridade política da classe dirigente nativa sobre as outras “unidades da federação”, que era como eles chamavam, com eufemismo, o Brasil. O próprio “modernismo” literário (Menotti del Picchia, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, a Revista do Brasil etc.) e seu louvor à industrialização e à urbanização, à “modernidade”, enfim, são, antes de qualquer coisa, uma exaltação de São Paulo, de sua majestade e de sua produtividade (o progresso, a riqueza, a racionalidade, o trabalho etc.), e não simplesmente do mundo “moderno” (ou seja, o desenvolvimento capitalista nacional), como é bom lembrar.

Monica Velloso ressalta que, “ao defender o espírito pragmático, o poeta-educador e o soldado, o culto da operosidade e do progresso, o grupo” dos verde-amarelos, uma facção do modernismo paulista que militava ideologicamente no Correio Paulistano, “na realidade está apontando São Paulo como o modelo da Nação. Pelo alto grau de desenvolvimento industrial e pela vanguarda de intelectuais que produziu, o estado deve necessariamente exercer o papel de líder” (2) .

A comemoração da supremacia paulista é um tópico interessante, inda mais quando se conhece o seu futuro político sob o varguismo.

Produzida pelos intelectuais da oligarquia (historiadores, principalmente, mas também ensaístas, romancistas e polímatas, profissionais e amadores), a “paulistanidade” pretendia rigorosamente inventar uma identidade social e cultural regional, onde o valor básico fosse, antes de tudo, o pertencimento ao estado (e não a grupos, a classes, a partidos, a clãs etc.). Essa imagem, construída a partir de uma versão romantizada e amena da sua história regional desde a Colônia até a II República, exigia um complemento doutrinário para que fosse fixada na consciência coletiva como memória social e depois transmitida a todos os paulistas como autêntica “tradição”. Daí a fabricação de uma explicação oficial do passado oficial capaz de conectar, por mais estranho que possa ser, os fatos das Entradas dos séculos XVI e XVII aos atos da “Revolução” de 1932. As figuras dos tempos coloniais e, em primeiríssimo lugar, o bandeirante mítico era aí apresentado não só como o ancestral dos paulistas, antepassado, patriarca e herói civilizador, mas como um tipo ideal (e idealizado) a ser perseguido e imitado (3) .

Os manuais escolares ensinados em São Paulo entre as décadas de 1930 e 1960, e inspirados diretamente nessa historiografia glorificante – que contava com valores e obras tais como: Memórias de um revolucionário (de Aureliano Leite), A nossa guerra (de Alfredo Ellis Jr.), História geral das bandeiras paulistas (de Afonso Taunay) –, pretendiam fixar as características daquilo que era “ser paulista”.

Baseada nos grandes feitos dos grandes homens, essa versão didática do mundo juntava uma visão elitista da política, reservando os direitos de cidadania somente para os mais educados, uma visão hierárquica da sociedade, e uma visão racista da nacionalidade, racismo esse ligado não às pretendidas teorias científicas sobre a cor, mas ao desprezo pelos brasileiros que não tinham o privilégio de haver nascido em São Paulo, terra do progresso, do trabalho etc. A ginástica mais difícil desses relatos estava na obrigação de juntar o passado heroico das expedições pelo sertão nos séculos XVI e XVII com a “ideia do paulista como defensor nato da Lei e da Ordem”, a fim de glorificar 1932 como uma epopéia do Direito e da Liberdade (4) .

Por isso, as explicações ad hoc desse discurso, a variação de ênfases e a seleção arbitrária de evidências a fim de ajustar o passado ao presente e vice-versa.

Notas:
1. Jessita Maria Nogueira Moutinho, “Civil e paulista”: um interventor para São Paulo; a política estadual de 1930-1934. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade de São Paulo. São Paulo (SP), 1988, p. 110.

2. Monica Pimenta Velloso, A brasilidade verde amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Revista de Estudos Históricos, vol. 6, n. 11, 1993, p. 98.

3. Ver Danilo José Zioni Ferretti, A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São Paulo (1856-1930) Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo. São Paulo (SP), 2004.

4. Luis Fernando Cerri, Non Ducor, Duco: a ideologia da paulistanidade e a escola. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 1998, p. 116-117. [A divisa “Non ducor, duco” significa: “Não sou conduzido, conduzo”].
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negros e política (1888-1937), Flávio Gomes (Jorge Zahar)


trata-se de um bom estudo, ainda que curto, sobre a Frente Negra Brasileira (1931) e a Legião Negra (1932). São organizações políticas ao estilo da década de trinta.

sinopse da editora:

Narrativas historiográficas cristalizaram a imagem do negro como personagem social pouco mobilizado e excluído dos processos de participação política. Esse livro, ao contrário, apresenta várias organizações negras que propuseram políticas públicas e inserção institucional, dialogaram com setores da elite e com visões de cidadania e nação nas primeiras décadas do século XX.
cv lattes do autor

Uma boa continuação dessa história é o artigo:
SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50.
Estud. afro-asiát., Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, 2003.
cique aqui

8 de novembro de 2009

cidadania plena para o americano negro? um problema sociológico


[Juqueri, 1989-1990.
Franco da Rocha, SP.
Claudio Edinger.
Pirelli/MASP]
Talcott Parsons

Este artigo foi publicado originalmente, sob o título "Full citizenship for the negro american", na revista Daedalus. Journal of American Academy of Arts and Sciences, vol. 94, n .° 4. out. 1965.

Tradução: Luiz Pereira*

A designação "cidadão de segunda classe" tem sido usada muitas vezes, e com justiça, para descrever o status do negro na sociedade americana. Como demonstrou com especial clareza o sociólogo britânico T.H. Marshall, a cidadania é um assunto complicado, que de forma alguma se esgota com os significados mais literais do termo "direitos civis". Gostaria de começar esta discussão com uma análise do significado do conceito de cidadania, apoiando-me bastante na obra de Marshall, mas tentando ir além dela em certos aspectos. Tentarei, pois, analisar algumas das condições que se fizeram necessárias para explicar o progresso até agora feito pelo negro no sentido de alcançar a cidadania plena - e ao mesmo tempo pela sociedade, no sentido de incluir o negro naquele status - e ainda outras condições que precisam ser preenchidas para que o processo chegue ao final. Ao realizar essa análise, dedicarei especial atenção à comparação entre o status do negro e o de outros grupos que, de várias maneiras semelhantes, têm sofrido discriminação na sociedade americana. Espero que tal análise revele uma combinação de semelhanças e diferenças que venha trazer luz aos aspectos relevantes do caso do negro. Como os outros grupos têm progredido muito mais que o negro até agora, no sentido de conseguir uma inclusão total, a experiência desses grupos talvez nos forneça algumas diretrizes para consideração do caso do negro. Também discutiremos a relação entre a mudança interna de status do americano negro e o problema da cor nas questões mundiais.

O conceito de cidadania, da forma que é aqui usado, refere-se à participação plena naquilo que chamarei de "comunidade societária". Esse termo se refere àquele aspecto da sociedade total como um sistema, que forma uma Gemeinschaft, sendo esta o foco de solidariedade ou de lealdade mútua entre seus membros e que constitui a base do consenso que sustenta a sua integração política. Essa participação como membro é primordial para compreender o que significa ser definido como "americano" no caso de nossa própria nação e por isso justifica a ordem das palavras do título do presente número de Daedalus, indicando que se trata do americano negro e não do negro americano. O escravo negro podia ser chamado, como realmente era, de negro americano: era um residente dos Estados Unidos e propriedade de cidadãos americanos, mas não fazia parte da comunidade societária no presente sentido.

Em termos filosóficos gerais talvez John Rawls tenha definido com mais clareza que qualquer outro a maneira como a cidadania plena implica uma igualdade fundamental de direitos - não uma igualdade em todos os sentidos, mas no sentido com que nos referimos aos direitos de participação com status de membro da comunidade societária.

Do ponto de vista da unidade, a comunidade societária é uma categoria que supõe o compromisso dos membros para com a coletividade em que estão associados e de uns para com os outros. É o foco das lealdades que não precisam, e de fato não podem, ser absolutas, mas que requerem alta prioridade entre as lealdades a que se obrigam os membros. Para ocupar essa posição, a estrutura associativa deve estar de acordo com os valores comuns à sociedade: os membros mantêm compromisso com ela porque ela não apenas fortalece os seus valores como também organiza os seus interesses em relação a outros interesses. Neste último contexto, a base de definição das regras do jogo de interesses é que torna possível a integração, impedindo que os inevitáveis elementos de conflito conduzam a círculos viciosos que corroam radicalmente a comunidade. É também a base de referência dos padrões de destinação de recursos móveis disponíveis nas comunidades complexas.

Em todas as sociedades "avançadas" a comunidade societária está ligada à organização política, mas diferencia-se dela. Embora todas as sociedades avançadas sejam "politicamente organizadas", esse aspecto de sua organização a que ordinariamente nos referimos como governo, em nível societário, não é idêntico ao aspecto de comunidade no presente sentido. Precisamente quando esses dois aspectos entram em algum tipo de conflito é que podem surgir situações revolucionárias.

[leia o artigo integral aqui]

* Luiz Pereira (1933-1985) foi professor no Departamento de Sociologia
da USP de 1963 a 1982.
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5 de novembro de 2009

ação afirmativa: é necessária uma nova Abolição?


[African American student
Ernest Green.

Little Rock, AR, US
.
May 1958.
Grey Villet, Life]


por Muniz Sodré
Observatório da imprensa
27 out. 2009

Há uma questão atravessada na garganta de grupos empenhados na defesa das políticas afirmativas da cidadania negra. Trata-se de saber por que os jornalões (nome talvez mais palatável do que “grande mídia impressa”) brasileiros não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial. Como bem se sabe, esses jornais vêm dando largo espaço a jornalistas e intelectuais decididos a demonstrar que as ações afirmativas constituem uma nova forma de racismo, já que raça não existe e, ademais, como a população brasileira é predominantemente miscigenada, todos os nossos concidadãos teriam a sua cota de negritude. Logo, não faria qualquer sentido ficar procurando saber quem é negro ou branco para proteger o primeiro.

Foi essa a questão debatida nos dias 14 e 15 de outubro, durante o seminário “Comunicação e Ação Afirmativa: o papel da mídia no debate sobre igualdade racial”, realizado na Associação Brasileira de Imprensa por entidades como Comdedine, Cojira e Seppir. É bem sabido que há vozes discordantes das opiniões oficiais dos jornalões, por parte de jornalistas de peso, alguns dos quais pertencentes aos quadros desses mesmos jornais. É o caso de Elio Gaspari, Miriam Leitão e Ancelmo Gois. Estes dois últimos, aliás, foram palestrantes no seminário.

Na mesa sobre “a responsabilidade social da mídia e o debate sobre raça” – que dividi com a jornalista Márcia Neder, da revista Claudia –, comecei afirmando que há certas visibilidades que nos cegam. O sol, por exemplo, se tornado excessivamente visível (olhado de frente), nos impede de enxergar. Mas há também objetos sociais que, se tornados visíveis demais, podem bloquear a visão de quem antes acreditava ver. Parece-me ser este o dilema da cor, do fenótipo escuro, na atualidade brasileira, onde vislumbro um caso de cegueira cognitiva.

De fato, a questão vem sendo tratada como ser pró ou contra o racialismo. A maioria dos favoráveis a propostas como o Estatuto da Igualdade Racial, cotas para universitários etc., lastreia os seus argumentos com as razões do anti-racismo; os desfavoráveis, embora reconhecendo a existência episódica e anacrônica de incidentes racistas, tentam fazer crer que vivemos no melhor dos mundos em termos de conciliação das diferenças étnicas e que seria, portanto, um retrocesso civilizatório racializar a população. Curioso é que esses mesmos argumentos desfavoráveis, sem que seus autores se dêem conta, são racialistas em última análise, ao apelarem para as noções de miscigenação biológica.

Por outro lado, de modo geral, todos se habituaram a pensar na escravidão ora como uma mácula humanitária, ora como um anacronismo, uma instituição retrógrada na história do progresso. Vale, entretanto, apresentar uma opinião de outro matiz, a de Alberto Torres, autor de O Problema Nacional Brasileiro. Foi um dos grandes explicadores do Brasil entre o final do século 19 e início do 20.

Conservador em termos sociais (refratário à urbanização e à industrialização), propugnador de uma República autoritária, Torres revela-se, entretanto, interessante em termos metodológicos e teóricos. Diz em seu livro que “a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu. (…) Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos e fundou toda a produção material que ainda temos”.

Torres era, insisto, autoritário e conservador. Gerou epígonos como Oliveira Vianna, esse mesmo que chegou a justificar em sua obra o extermínio do “íncola inútil”, isto é, do habitante das regiões empobrecidas do país. Era, entretanto, um conservador diferente: discordava das teses sobre a inferioridade racial do brasileiro, não era racista. Sua frase sobre a escravidão é algo a ser ponderado, principalmente quando cotejada com o dito de Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (…) Ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância” (Minha Formação).

É célebre essa passagem sobre a memória afetiva da escravidão – a saudade do escravo. Ela é a superfície psicológica do fato histórico-econômico de que as bases da organização nacional foram dadas pelo escravismo. Por isso, vale perguntar que apreensão os brasileiros fazem desse fato, pouco mais de um século depois da Abolição.

Alguns pontos devem ser considerados:

1. A palavra “apreensão” não diz respeito a concepções intelectuais, e sim, à incorporação emocional ou afetiva do fenômeno em questão. No interior de uma forma social determinada, nós apreendemos por consciência e por hábito o seu ethos, isto é, a sua atmosfera sensível que nos diz, desde a nossa mais tenra infância, o que aceitar e o que rejeitar.

2. A reinterpretação afetiva da “saudade do escravo”, que envolve (a) as relações com empregadas domésticas e babás (sucedâneas das amas-de-leite); (b) o afrodescendente como objeto de ciência (para sociólogos e antropólogos); (c) imagens pasteurizadas da cidadania negra na mídia.

Diferentemente da discriminação do Outro ou do racismo puro e simples, a saudade do escravo é algo que se inscreve na forma social predominante como um padrão subconsciente, sem justificativas racionais ou doutrinárias, mas como o sentimento – decorrente de uma forma social ainda não isenta do escravagismo – de que os lugares do socius já foram ancestralmente distribuídos. Cada macaco em seu galho: eu aqui, o outro ali. A cor clara é, desde o nascimento, uma vantagem patrimonial que não deve ser deslocada. Por que mexer com o que se eterniza como natureza?

Nada, portanto, da velha grosseria racista, da velha sentença de “pão, pano e pau” proferida pelo padre Antonil a propósito dos negros. Não há mais lugar histórico para o “pau” desde a Abolição, ou melhor, desde a Lei Caó. O argumento explicitamente racista não leva ninguém a lugar algum no império das tecnologias do self incrementadas pelo mercado e pela mídia.

Mas é imperativo para o senso comum da direita social que as posições adrede fixadas não se subvertam. O escravismo é mais uma lógica do lugar do que do sentido. É dele que, de fato, têm saudade os que acham um escândalo racial proteger as vítimas históricas da dominação racial. E os jornalões, intelectuais coletivos das classes dirigentes, não fazem mais do que assim se confirmarem ao lhes darem voz exclusiva em seus editoriais e em suas páginas privilegiadas, ao se perpetuarem como cães de guarda da retaguarda escravista. É oportuno prestar atenção à letra da canção de Cartola (“Autonomia”) em que ele afirma a necessidade de “uma nova Abolição”.
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31 de outubro de 2009

O fórum e o senador





Fábio Wanderley Reis

Valor Econômico

18 out. 2008

parte da palestra no 1º Fórum Nacional de Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG

Numa iniciativa brotada do dinamismo de estudantes que se mobilizam e organizam, ocorreu semana passada, na UFMG, o I Fórum Brasileiro de Pós-Graduação em Ciência Política, com intensa participação de pós-graduandos de todo o país.

Destacando os “desafios metodológicos” da disciplina como tema geral, ao qual se dedicou especificamente uma mesa redonda de abertura composta por profissionais brasileiros, eu mesmo incluído, é no mínimo curioso que o evento tenha coincidido com uma notícia algo surpreendente vinda dos Estados Unidos e veiculada pelo “New York Times” no dia 19 de outubro: a de que o senador Tom Coburn, do Partido Republicano, propõe que a National Science Foundation seja proibida de “desperdiçar” recursos federais para pesquisa em projetos de ciência política, dada a suposta irrelevância desta do ponto de vista do interesse público. [leia aqui o projeto]

Naturalmente, a proposta suscitou forte oposição de acadêmicos da área, além de ver-se enfraquecida por ocorrer no momento em que uma cientista política tem a importância do seu trabalho reconhecida com o prêmio Nobel. Mas a iniciativa de Coburn, como o NYT não deixa de registrar, ecoa preocupações com a relevância da disciplina que se manifestam entre os próprios cientistas políticos.

Na mesa redonda inaugural do fórum da UFMG, um levantamento de Gláucio Soares mostrava com clareza certas lacunas das pesquisas e publicações da ciência política brasileira recente: são amplamente ignorados temas como, por exemplo, os relativos à ditadura militar de 1964, ou regiões e países como os da Ásia, África e mesmo América Latina.

Sejam quais forem as implicações a serem extraídas de observações como essas, a questão da relevância na área geral das ciências sociais tem assumido, no país, a feição peculiar de uma contraposição entre certa inspiração “nacionalista” e social da preocupação com relevância, por um lado, e, por outro, a busca de rigor analítico e qualidade científica no trabalho: a relevância ou urgência social (ou “nacional“) dos temas e problemas justificaria o relaxamento quanto a padrões de qualidade.

Mas é patente o equívoco envolvido nisso.

Os problemas socialmente importantes ou prementes são problemas cujo debate envolverá com intensidade os leigos (na condição de cidadãos, e com todo o direito); não caberia esperar que os supostos cientistas sociais e políticos, bem intencionados que sejam, simplesmente juntem seus palpites aos palpites dos leigos, com frequência condicionados fortemente pelo próprio debate leigo. A expectativa de que as ciências sociais possam trazer contribuição efetiva para o encaminhamento dos problemas práticos supõe que essa contribuição apresente uma distintiva “marca” (um “selo”?) de qualidade analítica e científica. Nessa ótica, invertendo, de certa forma, o que sugere a posição indicada acima, a qualidade se torna condição indispensável da relevância entendida de maneira adequada.

Contudo, o fato de que a posição de Coburn sobre a ciência política ressoe nos meios profissionais mesmo nos Estados Unidos redunda numa advertência especial sobre a própria ideia de qualidade.
Pois a qualidade científica tem sido crescentemente entendida, entre nós, em termos do recurso a certa canônica cuja penetração se deve sobretudo justamente à influência dos Estados Unidos.

Essa canônica visualiza uma ciência social (e política) de ambições generalizantes e empírico-dedutivas, em que o trabalho de elaboração conceitual sirva de bom fundamento a afirmações específicas que, em diferentes áreas de problemas, possam ser confrontadas de modo sistemático com dados de algum tipo. Ora, tem sido apontado com razão, lá como cá, a distorção em que o trabalho referido aos dados, geralmente dados estatísticos, deixa, com frequência, de ser guiado pela reflexão conceitual apropriadamente ambiciosa e rigorosa e se torna ritualista e destituído de significação (embora a ênfase torta em tecnicismos relativos a “significação estatística” seja um dos erros habituais a acompanharem a distorção).

Um aspecto saliente do problema de como obter a eventual junção qualidade-relevância é o desafio de que as questões do dia a dia, objeto de valioso registro do jornalista ou do historiador convencional, possam ser encaradas à luz de proposições de alcance geral - e seu diagnóstico “seguro” eventualmente obtido com atenção para a regra de que a apreensão mesmo do que há de específico ou peculiar em dado caso não tem como escapar da busca de “regularidades” e da comparação com outros casos de algum modo afins.

Do ponto de vista da política como ramo especial de estudo, uma recomendação correlata é a de que não há como evitar o que se costuma chamar as “grandes questões” — em outras palavras, não cabe entender a ciência política senão como uma sociologia da política, empenhada em dar conta da articulação entre os processos institucionais e os do substrato dos conflitos sociais de diferentes tipos.

É claro, isso não autoriza a abrir mão da modéstia: se tomamos o desafio dramático da violência brasileira crescente, por exemplo, é impossível pretender que mesmo a compreensão sofisticada das razões “estruturais” da violência no Brasil leve a receitas de pronta eficácia em termos de políticas públicas. Mas tampouco há como negar que o trabalho de especialistas pode iluminar aspectos do problema que talvez representem uma via de acesso a políticas mais efetivas. Assim como de alguma utilidade, presumivelmente, será também a reflexão mais “realista” e empiricamente orientada sobre a dinâmica da democracia e suas relações problemáticas com o substrato de um capitalismo sujeito a idas e vindas.

Seja como for, se a política é fatal e de altos custos, vale supor que cabe pensá-la com rigor. E que é bom que a tarefa atraia os jovens talentosos e dinâmicos que o evento da UFMG mostrou em ação.
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30 de outubro de 2009

o sistema Qualis e a questão dos “critérios hegemônicos socialmente pertinentes”


Na pesquisa que Fernando Leite conduz sob minha orientação, acerca das frações dominantes no campo na Ciência Política brasileira, é usual a crítica, reiterada nas discussões do GT 18 do último encontro da Anpocs, que usar critérios produzidos pelos dominantes para aferir sua dominância é um contra-senso.

Abaixo, Fernando explica, com meu aval, nosso ponto de vista, justifica a metodologia e defende a técnica de pesquisa a ser empregada no estudo das "elites" da Ciência Política brasileira hoje.

[Adriano Codato]

* * *

Como utilizamos a classificação do Qualis CAPES como um dos principais indicadores para escolher e avaliar os periódicos a serem analisados a fim de identificar se há e quais são as correntes e/ou escolas dominantes na Ciência Política brasileira contemporânea e, por extensão, os pesquisadores e os centros hegemônicos, freqüentemente se faz a objeção de que estaríamos usando os critérios definidos ou impostos pelos próprios “hegemônicos” para dizer quem é “hegemônico”.

O mesmo poderia ser dito a respeito de outros indicadores como, por exemplo, o índice de impacto (que avalia um artigo pelo seu número de citações) ou o número de artigos produzidos num dado período.

Trata-se de uma acusação de circularidade, e que tende a gerar reações controversas. Mas cremos que isso é um mal-entendido, e não consiste num problema metodológico real. Explicaremos por etapas.

Em primeiro lugar, vamos tocar no ponto que acreditamos ser o principal foco de inquietação, relativo às implicações político-acadêmicas dos critérios adotados.

Ora, lembramos que o método “circular” que adotamos não equivale a tomar como naturais ou isentos os critérios do Qualis – ou qualquer outro. Não se trata de aquiescência em relação aos “valores dominantes”. Está no próprio princípio da pesquisa que os indicadores e critérios adotados são representações teóricas de estados cristalizados de processos de lutas, de conflitos; de mecanismos de luta e dominação.

Sabemos, pois, que eles são construções sociais arbitrárias que se institucionalizaram e se legitimaram por meio de conflitos sociais e de disputas simbólicas.

Em segundo lugar, como nosso objetivo é identificar as frações hegemônicas (para, a seguir, dizer por que o são), é necessário que os indicadores e critérios que tomamos para identificar as frações hegemônicas produzam efeitos sociais pertinentes, que efetivamente hierarquizem e ajudem a conservar a hierarquia do campo.

Assim, se por acaso os critérios do Qualis forem a cristalização de certa visão interessada do trabalho acadêmico na forma de referenciais de avaliação que atingem todo o campo acadêmico – exercendo assim influência ou constrangimento sobre as instâncias do campo –, persiste que eles são socialmente eficazes, sendo parte dos elementos responsáveis por hierarquizar o campo e por conservar certa hierarquia. E esse é justamente nosso interesse no momento.

Assim, por exemplo, se os “dominantes” controlam o Qualis da Ciência Política e Relações Internacionais, incluindo nele critérios que contribuem para que ocupam essa posição e que fornecem-lhes certos "privilégios", persiste que isso é um fato sociológico [e não moral] e que é efetivamente responsável pela hierarquização do campo. É algo que obriga os desfavorecidos a se conformarem ou a tomarem um curso de ação, caso queiram mudar sua situação. A própria dominação é um mecanismo social circular, em que o capital hegemônico recria suas próprias condições de reprodução (em nosso caso, instituindo regras acadêmicas de consagração), com bases essencialmente arbitrárias. Ao constatá-las, não estamos concordando com elas, e muito menos estamos enunciando (o que acreditamos que são) os fatos porque concordamos com eles ou porque queremos que tudo continue como está.

Em terceiro lugar, no que se refere às possíveis implicações político-acadêmicas de nossa posição metodológica, entendemos que tornar explícitos os mecanismos de dominação e a lógica de seu funcionamento é, na verdade, o maior instrumento para combatê-los.

Acreditamos que há certas vícios de pensamentos nas ciências sociais, oriundos talvez de sua falta de autonomia científica e sua proximidade com a política e a ideologia, que fazem com que associemos significados políticos a considerações de fato. Tende-se muito frequentemente a se confundir "ser" com "dever ser".

Quando se fala de "hegemonia", entende-se que implicitamente se sugere que "hegemônico" significa "melhor", "mais qualidade", "mais contribuição ao conhecimento" etc.

Os agentes do campo podem efetivamente, em suas práticas e representações, relacionar "prestígio" (i.e.: poder) com qualidade acadêmica, intelectual e científica; mas garantimos nós não fazemos ou estamos interessados nisso. Não estabelecemos qualquer relação entre hegemonia e qualidade acadêmica ou intelectual [ainda que ela possa, evidentemente, existir]. Para nós, inclusive, o poder ("capital") acadêmico, intelectual ou científico pode ou não estar a serviço do conhecimento.

O que importa para nossa pesquisa é que um fator tomado como indicador seja ou não socialmente pertinente para produzir a hierarquia (estrutura) do campo. A nosso ver, a utilidade do Qualis vai além de definir quais são os periódicos que merecem ser analisados. Achamos que ele é muito importante na determinação da hierarquia do campo acadêmico, incluindo aí o da Ciência Política contemporânea.
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22 de outubro de 2009

O Estado de todas as culpas

[Moças na Janela, 1950.
Salvador, BA. Pierre Verger
Pirelli / MASP]

O Estado de S. Paulo,
6.9.2009

Jessé Souza

O debate público e político brasileiro, há algumas décadas, é travado sob a forma de um suposto conflito entre mercado e Estado. A atual discussão sobre o petróleo do assim chamado pré-sal apenas o confirma. Assim sendo, se quisermos compreender efetivamente o que está em jogo nesse debate conjuntural sobre o que fazer com o dinheiro do petróleo recém-descoberto - assim como compreender os debates conjunturais do passado recente e dos que ainda vão acontecer no futuro próximo - temos que focar nossa capacidade compreensiva na reconstrução da estrutura invisível presente em todas essas situações conjunturais passageiras. O tema do debate muda ao sabor das circunstâncias. Sua "estrutura profunda", no entanto, permanece a mesma. Qual é a estrutura profunda nunca tematizada enquanto tal na mídia? O Estado é sempre suspeito de "politicagem" e de "aparelhamento" por indicações políticas e o mercado é definido como instância "técnica", ou seja, reflexo da "racionalidade pura" e do "cálculo técnico". Um é a esfera do "privilégio inconfessável" e o outro o reflexo da "razão técnica" supostamente no interesse de todos. É isso que explica o foco constante e diário na "corrupção política" como a lembrar ao público onde está o mal e onde está o bem. Como tudo no mundo social, essa é uma realidade "construída", fruto de uma leitura seletiva e interessada do mundo.

Como a recente crise mundial mostrou sobejamente (já nos esquecemos dela?), a corrupção é endêmica tanto no mercado quanto no Estado em qualquer latitude do globo. A mitigação da corrupção em qualquer esfera da vida ocorre quando os mecanismos de controle ganham eficiência. A leitura seletiva do Estado como ineficiente e corrupto e do mercado como pura virtude esconde a ambiguidade constitutiva dessas duas instituições que podem servir ao bem ou ao mal conforme seu uso. Por que a "dramatização" cotidiana mil vezes repetida de justamente essa visão distorcida do mundo? A meu ver porque ela é o núcleo mesmo da violência simbólica - aquele tipo de violência que não "aparece" como violência - que torna possível a manutenção e a reprodução continuada no tempo da sociedade complexa mais desigual e injusta do planeta.

O mundo social não é perceptível a olho nu. Pode-se ver a pobreza e a desigualdade nas ruas e não se perceber suas causas. O brasileiro das ruas aprendeu a vincular as mazelas sociais do Brasil à corrupção política. A tese do Estado corrupto - ou a tese do "patrimonialismo" na sua versão erudita igualmente conservadora e frágil - mata dois coelhos com uma mesma cajadada. Como o conflito que ela cria é falso de fio a pavio - na realidade, mercado e Estado são interdependentes e igualmente ambivalentes -, ela ajuda a fabricar uma realidade que permite esconder todos os conflitos sociais reais. Pior ainda. Como uma falsa oposição é dramatizada como "conflito", tem-se a impressão de que existe efetivo debate crítico entre nós, de que temos uma esfera pública atuante, uma mídia atenta e crítica e um país politicamente avançado, quando a realidade é, ponto por ponto, precisamente o inverso.

A dramatização do Estado ineficiente e corrupto serve como fachada para "representar" a política sob a forma simplista, subjetivada e maniqueísta das novelas, enquanto se cala e se esconde acerca das bases de poder real na sociedade. Toda a aparência é de "crítica social", enquanto toda ação efetiva é a da conservação dos privilégios reais. Assim, fala-se do combate aos "coronéis" e às "oligarquias" - sempre caricatamente nordestinas como o bigode de Sarney - enquanto escondem-se as reais novas oligarquias responsáveis por abocanhar quase 70% do PIB sob a forma de lucro ou juros reduzindo os salários a pouco mais de 30%. Nos países europeus social-democratas essa proporção é inversa. As falsas oposições escondem oposições reais. O falso "charminho crítico" da dramatização do Estado ineficiente e corrupto serve para esconder e desviar a atenção para a luta de classes que cinde o país entre privilegiados que possuem um exército de pessoas para servi-los a baixo preço e dezenas de milhões de excluídos sem nenhuma chance nem esperança de mudança de vida.

Para todo um exército de analistas que se concentram no "teatro" da política - com suas fofocas e escaramuças diárias entre senadores e deputados com poder decisório entre o nada e o muito pouco - falar-se em "luta de classes" é um tabu. Luta de classes é coisa do passado, tem a ver com greves de trabalhadores e sindicatos que estão desaparecendo ou perdendo importância. Essa é a cegueira da política como "espetáculo" pseudocrítico para um público acostumado à informação sem reflexão. A luta de classes só é percebida nas raras vezes em que as classes oprimidas logram alguma forma de reação pública eficaz. Condenam-se ao esquecimento todas as formas naturalizadas e cotidianas do uso e abuso do trabalho barato e não valorizado. Um pequeno exemplo. O exército de babás, empregadas, faxineiras, porteiros, office-boys, motoboys, que permitem que a classe média brasileira possa dedicar seu tempo a trabalhos valorizados e bem pagos relegando o trabalho pesado e mal pago a outra classe de seres humanos que tiveram o azar de nascer na família (e na classe social) errada. Isso não é "luta de classes"? Apenas porque não há piquetes, polícia e sangue nas ruas? Apenas porque essa dominação é silenciosa e aceita, dentre outras coisas porque também eles, os humilhados e ofendidos, ouvem todo dia que o nosso único mal é a corrupção no Senado ou em algum órgão estatal?

E para as classes média e alta? Não é um verdadeiro presente dos deuses ter privilégios que nem seus consortes europeus ou norte-americanos possuem e ainda poder ter a consciência tranquila de quem sabe que o mal do Brasil está em "outro" lugar, lá bem longe em Brasília, um "outro" abstrato, mau por definição, em relação ao qual podemos nos sentir a "virtude" por excelência? Não se fecha com isso um círculo de ferro onde necessidades sociais e existenciais podem ser manipuladas por uma política e uma mídia conservadora e seu público ávido por autolegitimação e por consciência tranquila?

Para Max Weber - pensador crítico mal lido entre nós como inspiração para a tese do patrimonialismo - os ricos, saudáveis e charmosos, em todas as épocas e em todos os lugares, não querem apenas ser ricos, saudáveis e charmosos. Eles querem saber que têm "direito" a serem ricos, saudáveis e charmosos em oposição aos pobres, doentes e feios. É essa necessidade o verdadeiro fundamento e razão do sucesso da tese da suspeição do Estado entre nós. Ela serve como uma luva para não perceber e naturalizar um cotidiano injusto e ainda transferir qualquer responsabilidade para uma entidade abstrata e longínqua, garantindo boa consciência e aparência de envolvimento crítico na política.

A cortina de fumaça do falso debate acerca da demonização do Estado serve para deslocar a única e verdadeira questão do Brasil moderno: uma desigualdade abissal que separa gente com todos os privilégios, de um lado, de subgente sem nenhuma chance real de uma vida digna desse nome, de outro lado. O culpado desse crime coletivo não é apenas o bigode de Sarney. É toda uma sociedade infantilizada por falsos debates e por falsas prioridades e que ainda se pensa - suprema autoindulgência - como crítica e atuante. Esse projeto político não é de partidos, até porque o consenso conservador atinge todos indistintamente. As tímidas iniciativas de política social do atual governo, por exemplo, são mero paliativo da efetiva redenção dos secularmente humilhados e ofendidos. O que fazer com os recursos do pré-sal poderia e deveria ser o estopim para um novo debate brasileiro, corajoso, maduro e generoso, por oposição ao debate covarde, infantil e mesquinho que temos hoje.

Jessé de Souza Possui graduação em Direito pela Universidade de Brasília (1981), mestrado em Sociologia pela Universidade de Brasília (1986), doutorado em Sociologia pela Karl Ruprecht Universität Heidelberg, Alemanha (1991) e livre docência em sociologia pela Universität Flensburg, Alemanha (2006). Realizou estágios pós-doutorais na New School for Social research de Nova Iorque, EUA (1994-1995) e, como Professor visitante, na Universität Bremen, Alemanha (1999-2000).
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20 de outubro de 2009

O retorno do mestre: Keynes

[Xmas Shopping, 1955.
Grey Villet. Life]


Folha de S. Paulo,
18 de outubro de 2009


LUIZ GONZAGA BELLUZZO*

DIZEM POR aí que Keynes voltou à moda.

Autor de três volumes sobre a vida e obra do célebre economista, Robert Skidelsky entregou à praça recentemente o livro "The Return of the Master".

Digo ao leitor que o livro, um ensaio, nos apresenta um Keynes mais revolucionário e inovador do que revelado na alentada biografia. Nos três magníficos volumes da biografia, Skidelsky cuidou de demonstrar que a crítica de Keynes ao capitalismo liberal era menos radical do que parece.

A responsabilidade pela transfiguração do economista-defunto nas mãos de seu biógrafo mais badalado cabe à derrocada intelectual da teoria econômica dominante nas última quatro décadas.

Os "economistas clássicos" criticados por Keynes em tantas ocasiões eram tão razoáveis quanto modestos se comparados aos desatinos "científicos" das últimas quatro décadas. A escola Nova Clássica, por exemplo, levou ao paroxismo, para não dizer ao ridículo, as hipóteses construídas a partir do comportamento racional e da tendência ao reequilíbrio "espontâneo" dos mercados.

Na concepção dos novos economistas, a sociedade é formada por indivíduos racionais e maximizadores, partículas obcecadas pelo cálculo utilitarista, que jamais alteram seu comportamento na interação com outras partículas carregadas de racionalidade.

Skidelsky vai fundo ao argumentar que os economistas definem o comportamento racional como aquele consistente com seus próprios modelos. Todas as outras formas de comportamento são tratadas como irracionais, configurando um enorme projeto ideológico incumbido de redefinir os humanos como pessoas que acreditam nas coisas que os economistas pensam sobre eles.

Keynes construiu uma teoria das decisões privadas em condições de incerteza. Alegava que não é possível a avaliação inequívoca dos resultados mais vantajosos mediante o cálculo de probabilidade. As pessoas, diz o economista Athol Fitzggibons, agem movidas pelo autointeresse inteligente, mas apoiadas no conhecimento não quantificável; as teorias do comportamento racional pressupõem que os agentes são movidos pelo autointeresse e pelo conhecimento quantificável. Eles fazem escolhas inteligentes entre vários futuros possíveis, o que permite à teoria das expectativas racionais concluir que eles podem convergir para apenas um futuro possível.

Na vida real dos mercados, os empresários tangidos pelo otimismo quanto aos resultados dos novos empreendimentos atropelam o medo do futuro incognoscível e decidem produzir nova riqueza. Mas o sucesso não aplaca, senão excita o desejo, suscitando a febre de investimentos, o crédito imprudente e bolhas especulativas.

Por isso, Keynes insistia "na direção inteligente pela sociedade dos mecanismos profundos que movem os negócios privados". A instabilidade inerente à economia monetária da produção só pode ser amenizada mediante a ação jurídica e política do Estado e pela atuação de "corpos coletivos intermediários", como um Banco Central dedicado à gestão consciente e socialmente responsável da moeda e do crédito.

*LUIZ GONZAGA BELLUZZO, 66, é professor titular de Economia da Unicamp.
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18 de outubro de 2009

Marx no tempo da dispersão

[A statue of Karl Marx.
Moscow, 1961. James
Whitmore. Life]

O Estado de S. Paulo
Aliás
11 out. 2009

José Arthur Giannotti

Professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do Cebrap. É autor, entre outros, de Trabalho e Reflexão e Origens da Dialética do Trabalho. Este texto é o prefácio à segunda edição do livro Marx - Vida e Obra, agora renomeado Marx - Além do Marxismo (L&PM Pocket)




Minha obsessão em estudar Marx como clássico sempre esteve ligada ao projeto de examinar suas teses em vista das aberturas teóricas e práticas que propiciam. Nunca as vi como um sistema fechado, até mesmo O Capital, sua obra máxima, atira em várias direções, e tenho fortes suspeitas de que não foi por falta de tempo que restou inacabada.

O próprio Marx se recusava a ser identificado como marxista. Suas teses valem antes de tudo para serem prosseguidas. É sintomático que, analisando os Grundrisse, Antonio Negri tenha escrito Marx Oltre Marx. Meu novo título, Marx - Além do Marxismo, obviamente inspirado neste último, tenta sublinhar que a base a ser negada é o marxismo cristalizado numa profissão de fé ou numa corrente de pensamento que não se deixa correr. Se a obra de Marx procura desvendar os meandros das estruturas capitalistas de produção, é seu próprio equipamento intelectual que precisa ser renovado, na medida em que o objeto de estudo explode em várias direções.

Meus críticos irão dizer que tento confinar o marxismo aos muros das universidades, que apenas sublinho o lado filosófico da obra de Marx, quando a tarefa, antes de compreender, é transformar o mundo combatendo o capital. O conhecimento não se integra numa práxis? Mas tanto o capital como o mundo explodiram em várias direções, de sorte que nem mesmo podemos falar deles se não levarmos em conta essa dispersão. Além do mais, como detectar o empuxo transformador quando, hoje em dia, o que se tomou como motor da história, o proletariado, não encontra a unidade do capital social total para se contrapor como classe unificada? Não é por isso que as lutas de classe de hoje se fazem por direitos, por conseguinte, repondo o Estado em vez de contestá-lo?

"Marxismo" e "socialismo" se tornaram palavras equívocas. Enquanto havia Estados e partidos que se diziam marxistas, a adesão a ambos tinha, ao menos, um sentido político razoavelmente determinado. Na medida, porém, em que a revolução desaparece do horizonte efetivo da política, que sentido pode ter se assumir como marxista ou socialista? Não somos todos social-democratas nos seus mais variados sentidos? Diante da obra de Marx, sobra apenas tentar pensá-la pela raiz, vale dizer, a partir dela, como somos obrigados a fazer quando procuramos entender Aristóteles ou Kant, ou até mesmo Wittgenstein. Quando alguém ainda se identifica como marxista ou socialista, sem explicar o sentido dessa invocação, logo desconfio que está querendo fazer política sem sujar as mãos no seu jogo efetivo, muitas vezes contentando-se em votar num candidato cuja irrelevância parece ser compensada pela vácua sonoridade de seu discurso.

A crise econômica atual recoloca o problema do automatismo do capital e das contradições do sistema capitalista de produção. Depois de uma longa hegemonia do pensamento liberal, volta-se a falar em Keynes, e Marx passa a ser olhado sob novas perspectivas. Não é significativo que este opúsculo venha a ser reeditado neste momento? Essa crise atualiza certos conceitos marxistas, em particular aquele de um modo de produção cuja reposição passa por crises específicas. Não sei como as ciências sociais contemporâneas lidarão com esse tópico. Mas não vejo como escapar desse conceito de modo de produção, a não ser deixando de lado a específica historicidade de nosso modo de se repor em sociedade. Não é o próprio conceito de história que precisa ser considerado, nos seus dois vetores, história categorial, de um lado, a história do vir a ser, de outro. Esta me parece a primeira grande contribuição de Marx para o pensamento social.

O sistema capitalista se mostrou muito mais lábil do que se imaginava. Por certo essa maleabilidade não apagou suas contradições, continua sendo um extraordinário processo de criação de riqueza e de miséria, mas desapareceu de cena aquele vetor da história, o proletariado, que poderia contestá-lo pela raiz. Além do mais, as experiências do socialismo real mostraram a impossibilidade de uma produção da riqueza social sem as informações produzidas pelo mercado. Para Marx, dado o mercado, ele naturalmente se desdobraria no sistema do capital. Nosso desafio é impedir essa continuidade, por conseguinte, dar liberdade suficiente para que os agentes marquem os preços de seus produtos, sem que sejam levados pelo automatismo de um sistema produtivo, que se transforma num robô visando produzir e acumular riquezas em vista da simples acumulação.

Diante da tarefa de conciliar dois processos contraditórios, uma economia de mercado e uma política que se legitime na medida em que impeça a alienação desses mesmos mercados, pouco vale lamentar-se diante da miséria criada pela exploração capitalista. Mas qual seria a prática adequada para lidar com esses processos contraditórios? Creio que, nessa explosão dos mercados e na necessidade de repô-los num patamar mais humano e racional, no fundo se percebe a urgência de uma política capaz de se controlar a si mesma, em resumo, uma política democrática.

Se a questão é política, então façamos política. Mas eficaz, que tome como ponto de partida as condições dos sistemas políticos atuais, e examinemos teórica e praticamente suas possibilidades de mudança. Foram desmoralizados os arautos do novo homem, ou políticos que imaginavam suprimir o Estado à medida que o reforçavam. Marx desconfiava da democracia formal e, depois da Comuna de Paris, acreditou que uma ditadura do proletariado seria mais democrática do que ela. Mas esse conceito de ditadura serviu para justificar o lema "Todo poder aos sovietes", e hoje sabemos o golpe que ele significou na democracia russa.

Não me parece mais adequado pensar numa política que desemboque numa negação política, a partir da qual uma nova história teria início. Desconfio dos profetas do "novo homem" ou dos Zaratustras da vida. Aceito a política como ela é, mas sempre procurando seu dever ser. Por conseguinte, política democrática, sempre inacabada, precisando começar de novo.

Sob esse ângulo privilegio os textos de Marx que mostram como ações humanas terminam tendo consequências imprevistas e até mesmo indesejadas por elas enquanto atos individualizados. Sob esse aspecto, interessa-me particularmente o conceito hegeliano de alienação, mas torcido de tal forma que escape dos perigos do idealismo absoluto. Daí a necessidade de ler esses textos com lupa fina, cuidando de detectar as torções por que passam os conceitos quando tratam de configurar uma nova forma de práxis dialética. Por isso, depois de minha introdução, achamos conveniente apresentar alguns textos do próprio Marx, mas traduzidos de tal forma que pelo menos deixam transparecer essas torções conceituais. É o que procura fazer a tradução de Luciano Codato. Tarefa difícil, a ser retomada pelos leitores, porque o próprio Marx, numa carta ao tradutor d"O Capital para o francês, aconselha que deixe de lado essas nuances, pois os franceses não são dados a elas. Espero que os leitores de língua portuguesa compreendam a importância filosófica dessas torções.
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16 de outubro de 2009

Notas sobre a composição dos ministérios e cargos de confiança na Nova República

[Oca, 2001. São Paulo,
Nelson Kon. Pirelli / MASP]


trabalho a ser apresentado no Encontro da Anpocs 2009
GT 18: Elites e instituições políticas


Camila Romero Lameirão
(UFF, Universidade Federal Fluminense) e
Maria Celina D'Araujo (FGV-RJ, Fundação Getulio Vargas)

A composição dos ministérios e dos cargos de confiança do poder Executivo revela muito sobre a natureza do governo: suas alianças partidárias, programa polí­tico e econômico, orientação ideológica e compromissos sociais e setoriais. Permite ainda avaliar em que medida a elite dirigente de cada governo se diferencia ou se assemelha. Pretendemos elaborar um trabalho comparativo com dados sobre filiação partidária, ví­nculo associativo, ní­vel de escolaridade, e experiência polí­tica e profissional dos ministros que compuseram a presidência de Sarney a Lula. Além disso, temos como objetivo cotejar essas informações com os resultados obtidos na pesquisa que realizamos com uma amostra de cargos de DAS 5 e 6, e de NES do governo Lula, procurando avaliar o perfil, as competências especí­ficas, e os padrões de recrutamento que definem esses dois conjuntos de dirigentes.

Os estudos sobre a atuação de partidos no Congresso e sobre as relações entre Executivo e Legislativo têm avançado no Brasil nos últimos anos. Da mesma forma, a pesquisa em sociologia eleitoral têm se aprimorado produzindo excelentes análises sobre perfil do eleitor, trajetórias partidárias, lógicas, constâncias e volatilidade do voto.

No entanto, conhecemos pouco sobre o funcionamento do Executivo. A retomada da democracia no Brasil levou a uma necessária reflexão sobre o voto e os representantes, mas relegou os estudos sobre certas esferas de poder que não estão diretamente conectadas ao voto (não são cargos eletivos), mas que são ocupadas por pessoas com fortes laços dentro do sistema de poder. Este é o caso dos Ministérios e também dos cargos de confiança do tipo “Direção e Assessoramento Superior” (DAS) e de “Natureza Especial” (NES), que são de livre provimento. Vale lembrar que no organograma do Executivo, os postos de DAS níveis 5 e 6 estão logo abaixo dos ministros e secretários-executivos, desempenhando funções estratégicas de direção, coordenação e assessoramento das políticas e projetos desenvolvidos no âmbito dos órgãos governamentais.

Sendo assim, em geral, sabemos pouco sobre a elite que chega ao poder a partir de 1985, sobretudo nos cargos executivos. São ainda escassas as pesquisas que buscam avaliar os efeitos da coalizão e alianças de governo na composição do Ministério e nas políticas e decisões desenvolvidas no Executivo. Muito menos sabemos em relação aos cargos de confiança. Não há trabalhos que afiram em que medida esses postos se constituem em objeto de negociação no âmbito da coalizão governamental. Os poucos trabalhos acadêmicos existentes oferecem, no entanto, uma perspectiva de análise abrangente que não se reduz à pura crítica da politização desses postos de direção. Ao contrário, prescindindo de uma visão dicotômica que contrapõe o espaço da política ao da burocracia, destacam o hibridismo que caracteriza o papel e as atribuições dos cargos de DAS e, consequentemente, as competências específicas de direção requeridas. Loureiro e Abrúcio (1998c) discorrem, então, sobre um profissional híbrido que “é responsável tanto pela gestão eficiente quanto por atender aos objetivos políticos da agenda governamental”.

É importante destacar esse ponto, pois as discussões que tratam da relação entre política e burocracia no Brasil tradicionalmente tendem a vê-la sob o prisma do clientelismo e do insulamento. Nesta visão, a composição e a organização burocrática deveriam se orientar por princípios técnicos e critérios de impessoalidade, hierarquia e meritocracia, não devendo se deixar contaminar por influências políticas que resultariam em práticas clientelistas e personalistas. Esse entendimento pressupõe o insulamento da burocracia em relação à dinâmica política e se ampara na concepção weberiana da moderna burocracia. Como ressalta Pacheco (2002), “essa leitura de Weber levou tanto a um forte maniqueísmo – os técnicos são ‘bons’ e os políticos são ‘maus’ – como uma despolitização dos objetivos da Administração Pública”. Todavia, é a partir do próprio Weber que se formula um contraponto a essa visão, considerando sua defesa de uma complementaridade entre políticos e burocratas para a garantia da ordem democrática através de mecanismos de controle mútuo e, sobretudo, do controle político sobre a burocracia.

Por outro lado, a literatura demonstra que na República de 1946 havia uma certa regularidade no preenchimento de certas pastas. A área econômica, por exemplo, era destinada a quadros do Partido Social Democrático (PSD) de São Paulo, a de Justiça ao PSD de Minas Gerais.

O papel de cada pasta, por sua vez, ia além de suas evidentes atribuições. A da Justiça foi eminentemente uma área política, o espaço de articulação de campanhas e acordos político-eleitorais. A de Transporte denotava uma grande capacidade para compor com bases sociais e regionais pela facilidade em empregar um grande contingente de trabalhadores em obras públicas e por mobilizar vultosos recursos financeiros. Em geral, os Ministérios eram espaço de atração financeira, mas traziam a tônica do prestígio e da notoriedade pública. Foram por muito tempo um fórum de personalidades da vida política nacional. Muitas das atribuições de várias pastas foram, ao longo da ditadura militar, concentradas na Casa Civil, tendência que se fortaleceu com os governos da Nova República.

No contexto atual do presidencialismo brasileiro, as nomeações para o Ministério são importante fator de coesão política e de garantia de governabilidade. O Brasil, depois da ditadura militar, tem praticado o que se chama de “presidencialismo de coalizão”. Isto significa a existência de um arranjo político e eleitoral em que nenhum partido consegue eleger um candidato à Presidência e, ao mesmo tempo, formar sozinho maioria parlamentar. Ou seja, dadas as características dos sistemas eleitoral e partidário brasileiros, um presidente, qualquer que seja sua filiação partidária, só conseguirá governar negociando com uma coalizão parlamentar de apoio, o que implica automaticamente a partilha dos cargos no Executivo entre partidos e regiões.

Desse modo, assim como parte dos titulares dos ministérios, os postos de DAS também estariam sujeitos a indicações dos partidos e aliados da coalizão de governo. De fato, no Brasil, com a redemocratização e a promulgação da Constituição de 1988, nenhum presidente da República, a partir de Fernando Collor de Mello (1990-1992), foi eleito com o seu partido dispondo de maioria na Câmara dos Deputados e no Senado. Neste contexto, os últimos governos, sobretudo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e Luiz Inácio Lula da Silva (2003), formaram sistematicamente alianças partidárias e em contrapartida concederam aos membros e partidos da coalizão espaço no gabinete presidencial.

Entendemos como imprescindíveis estudos que tratem de dados empíricos sobre a elite dirigente que compôs os sucessivos governos da Nova República. Com isso, será possível avaliar as lógicas que norteiam a composição dos Ministérios no presidencialismo de coalizão brasileiro, bem como comparar os atributos sociais, profissionais e políticos da elite dirigente em cada governo. Temos a intenção de contribuir para esse campo de pesquisa com a apresentação de dados empíricos sobre o conjunto de ministros da Nova República, e os ocupantes de cargos de DAS 5 e 6, e de Natureza Especial, especificamente dos dois mandatos do presidente Lula. Exporemos informações sobre o perfil educacional, profissional e sociopolítico desse grupo, procurando compará-los a fim de avaliar as competências específicas, e os padrões de recrutamento que definem esses dois conjuntos de dirigentes.

para ler o texto completo
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Campinas não existe

[Prédio dos Correios
e Telégrafos, 1957.
Instituto Geográfico
e Cartográfico]


Octavio Lacombe
*

minha cidade
portalVitruvius
ano 10, vol. 02,
setembro 2009, p. 274
Campinas SP Brasil

Este artigo não é acadêmico nem jornalístico. Este artigo não é coisa nenhuma. Portanto nele se pode afirmar que Campinas não é uma cidade.

A afirmação acima foi provocada por um texto de Laymert Garcia dos Santos, que começa assim: “São Paulo não é mais uma cidade – constatação dura de aceitar” (1). A afirmação de Laymert pressupõe que São Paulo foi uma cidade em algum momento anterior. Mais adiante expõe o por que: “A cidade deixou de ser porque o espírito da cidade não habita mais seus moradores”. E isso se dá, pois, segundo ele, “ninguém se importa com o que já aconteceu, acontece ou está por acontecer”.

Campinas, na verdade nunca foi e nunca será uma cidade. Nem aqui, na revista Minha Cidade, mapa virtual dos assuntos urbanos, onde cidades entram e saem da pauta das discussões e debates movidos pelos mais variados assuntos. Nem nessa geografia impalpável, de escritos sobre cidades, Campinas existe. É inacreditável que depois de 10 anos da existência desse fórum, depois de mais de 270 números publicados, quase 80 cidades figuraram como protagonistas dos debates e Campinas não tenha aparecido nem uma vez sequer. Isso porque Campinas conta com três cursos de arquitetura e urbanismo, que devem formar mais de 200 profissionais por ano. Um desses cursos faz parte de uma das melhores universidades públicas do país, outro foi considerado por muitos anos o melhor curso de arquitetura e urbanismo de uma universidade particular no país. Supõe-se que contam em seus quadros com arquitetos e urbanistas e profissionais de outras áreas capacitados a discutir as questões da cidade. Nem assim Campinas aparece como cidade.

Só mesmo Italo Calvino poderia transformar Campinas em uma cidade. Campinas poderia ser uma das cidades fantásticas de suas fábulas maravilhosas, transformada em cidade fantasma de si mesma; um espectro, um duplo inexistente, paradoxal, uma imagem da irrealidade cotidiana [Eco] de seus inabitantes; um poço profundo e mal cheiroso no mais completo breu; um ponto perdido no espaço; um amontoado de edifícios ocos, vazios, sem papel definido; uma malha tão intrincada de relações que se desfaria de repente como um jogo de cama de gato; uma inversão tão completa, mais-que-de-ponta-cabeça que a fizesse desaparecer em si mesma. Ao menos na literatura fabulosa de Calvino Campinas seria uma cidade, invisível, por certo. Mas por infelicidade dessa anticidade, Calvino não está mais entre nós para dar vida à cidade que insiste em ficar invisível.

Campinas não é mais uma cidade:
“Os privilegiados, sentindo na pele os efeitos da desagregação, desertaram, refugiando-se nos bunkers em que se transformaram as casas, os edifícios, os shoppings. Foi tudo quase imperceptível, talvez porque estendeu-se ao longo de duas décadas. Primeiro a elite abandonou a rua, trocando-a pelos espaços fechados; depois, abriu mão do urbano e da urbanidade: enquanto alguns se transferiam para Miami, os que ficaram trancaram os automóveis, para não falar dos blindados que estão se ‘democratizando’ e chegando à classe média. Agora, com a saturação do tráfego, a pane dos serviços, a escalada da criminalidade, o assédio dos miseráveis, a proliferação das máfias e a corrupção e a falência do poder municipal, a elite parece ter desistido da cidade mesma. São Paulo só é metrópole do capitalismo global nas redes cibernéticas, nos restaurantes e boutiques de luxo, nas pequenas ilhas de afluência guardadas por cães, seguranças e toda uma arquitetura de campo de concentração que protege seus felizes prisioneiros. O resto é o que ninguém quer ver e todos se esforçam por ignorar.

[...]

No espaço urbano agonizante a elite projeta e constrói, com imagens, a sua cidade – que é tão ou mais miserável quanto aquela que pretende ignorar. O resultado exibe obscenidade, vulgaridade, truculência por meio das quais uma classe dirigente impõe, sobre a realidade, a realidade da imagem. O resultado é esse acordo-desacordo da força virtual do mercado com a violência atual da miséria.

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Entre os que deserdaram e os que foram deserdados, nem privilegiados nem excluídos, passam pela cidade, anônimos e desenraizados, os trabalhadores que compõem a massa urbana. Para eles a cidade parece reduzir-se ao longo e cansativo trajeto de casa ao trabalho, ao tempo perdido do transporte. Da periferia ao centro, do centro à periferia: o espaço urbano é o que se inscreve entre dois pontos, cujo sentido ameaçador será dado pelos programas de rádio e pelos telejornais sensacionalistas. Que vínculos podem eles tecer como uma cidade temida e evitada sempre que possível?”
Transcrevi trechos do texto de Laymert porque me parece que Campinas tem São Paulo como modelo de cidade. Claro que não é uma escolha consciente da cidade, de seus dirigentes em tomar um modelo equivocado para seguir. Pior que isso, é uma atitude inconsciente, pois que está entranhada como parte de nossa cultura.

Nasci em São Paulo e mudei para Campinas quando tinha 12 anos, com meus pais. Fomos morar na área rural da cidade e posso dizer que só fui conhecer a cidade de fato 12 anos depois, quando entrei na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas. De São Paulo, além das memórias de infância, tive a experiência de freqüentá-la uma vez por semana dos 15 aos 18, quando ia a Rua 25 de Março comprar camisetas para serigrafar. Depois de concluir o curso de arquitetura, morei dois anos na capital, trabalhando com produção de vídeo. Mais tarde, entre 2002 e 2006, durante o doutorado, tinha que ir a São Paulo duas vezes por semana.

Hoje percebo que Campinas também é uma cidade arruinada, mas que não pode ser reconstruída, porque a aura da cidade já não existe, é uma impossibilidade. Os privilegiados se encastelaram em condomínios e se refugiam em espaços fechados, evitam a cidade a todo o custo. O resto, como diz Laymert, os trabalhadores, desaparecem no deslocamento entre casa e trabalho. E os miseráveis são fantasmas que ninguém quer ver. O espaço urbano, apenas um percurso, um tempo, entre dois pontos.

No ano 2000, escolhi morar no centro da cidade. Então, eu acreditava que o centro mudaria, seria revitalizado, seria um ponto irradiador de transformações por toda a cidade. Agora, nove anos depois, nada mudou. Ao contrário, piorou.

Campinas não é uma cidade. Dificilmente será uma, se é que um dia já foi. Então, o que dizer sobre uma cidade que não é? Nada há para dizer. Nada mais. Não vale a pena perder tempo com algo que não é. Apenas esperar que outros habitantes se manifestem, caso haja algo em contrário a ser dito. Mas se a cidade não existe, seus habitantes são impossíveis. Não há esperança.

Parafraseando Laymert: “Campinas é a morte da aura da cidade”.

Nota 1. "São Paulo não é mais uma cidade", Laymert Garcia dos Santos em 2000, para Paolo Gasparini, fotógrafo ítalo-venezuelano. In PALLAMIN, Vera (org.). Cidade e cultura. São Paulo, Estação Liberdade, 2002.


*Octavio Lacombe é Arquiteto e Urbanista pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Campinas (1991), Mestre em Multimeios pelo Instituto de Artes da UNICAMP (1998) e Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e urbanismo da USP (2006).

Minha Cidade 274 – setembro 2009
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