artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections

29 de outubro de 2006

Entrevista: É preciso mexer antes no modelo econômico


[Clube do Congresso. Athos Bulcão]

Adriano Codato
Gazeta do Povo, 29 de outubro de 2006


ENTREVISTA-Falta de debate sobre política neoliberal é “desconcertante”, diz Adriano Codato, professor de Ciência Política da Universidade Federal do Paraná


As reformas estruturais vêm em segundo lugar.
Enquanto o país continuar a ser uma espécie de cassino,
com juros exorbitantes para os especuladores internacionais,
o setor produtivo continuará estagnado e
a discussão sobre as reformas é perda de tempo.

Essa é a opinião do cientista político Adriano Codato,
professor da Universidade Federal do Paraná.


Gazeta do Povo – Como você avalia o debate sobre as reformas?
Adriano Codato – Antes de mais nada, é preciso notar que as tais reformas “estruturais” imaginadas como a solução para as taxas medíocres de crescimento econômico são reformas que dizem respeito apenas aos trabalhadores e aos seus direitos. O ponto, eu penso, é a relação que há entre o modelo econômico e o sentido, ou a atual falta de sentido, das reformas tributária, sindical, trabalhista e previdenciária. Como assim? Se não se olha a floresta, as árvores parecem desproporcionalmente grandes. Sem ver como funciona o modelo econômico brasileiro não se compreende que, ao menos por ora, a reforma tributária é disfuncional e as reformas trabalhista e sindical são irrelevantes. E a reforma previdenciária só é importante porque é mais um gasto social que retira recursos do sistema financeiro.

O que deve vir, então, antes das reformas?
Parte-se do diagnóstico, difundido à exaustão durante década e meia de hegemonia ideológica neoliberal, que todos os gastos sociais – e aí eu incluo os direitos trabalhistas – são despesa improdutiva; por outro lado, renda, juros e lucro são efeitos positivos de uma dinâmica econômica saudável. Pois bem, foi isso que levou o Brasil a pagar em 6 anos, R$ 1,2 trilhão de juros sobre a dívida pública. Que este tema não seja o centro do debate quando se fala sobre a suposta etapa desenvolvimentista do novo ciclo econômico é desconcertante.

Por que esse enfoque é mais importante que o das reformas?
A taxa de juros e mais meia dúzia de princípios econômicos sagrados, como metas estritas de inflação, livre variação cambial, superávit primário elevado, etc., paralisam a economia e arrasam com o setor formal. Os trabalhadores com-carteira não tem mais tanto peso nem político-eleitoral, nem econômico-social, os sindicatos que os representam, e que seriam os porta-vozes de suas reivindicações, perderam representatividade porque se submeteram ao governo Lula. A Previdência Social custa um terço do que se paga de juros ao ano. Ora, a forma de contornar os “problemas” derivados do “excesso” de direitos trabalhistas, de uma estrutura sindical arcaica e de um sistema de seguridade social estropiado foi justamente torná-los desimportantes.

Em resumo, se a política econômica não mudar, essas reformas teriam apenas efeitos impopulares?
As reformas são mais antipáticas, a exemplo das privatizações, que impopulares, no sentido próprio do termo. O “povo”, isto é, a grande maioria da sociedade brasileira, não paga imposto de renda, não é sindicalizada, não recebe o décimo-terceiro, nem se aposenta com salário integral. Elas teriam um impacto sobre a classe média e os trabalhadores do setor de serviços.
Por que Lula não mudou a política econômica como prometeu?
Seis meses antes da eleição de Lula, em 2002, o especulador George Soros disse “ou Serra ou o caos”, referindo-se ao então concorrente tucano José Serra. A equipe do PT teve de acalmar os ânimos do mercado e, acredito, não conseguiu por isso administrar essas pressões.

Denise Drechsel

Referência:
CODATO, Adriano. É preciso mexer antes no modelo econômico. Curitiba - PR: Gazeta do Povo, 2006 (Entrevista).
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16 de outubro de 2006

artigo: Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia


CODATO, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Rev. Sociol. Polit., nov. 2005, no.25, p.83-106. ISSN 0104-4478.

[clique no aqui para ler o artigo]

Abstract
This article discusses Brazilian political history, from the military-political coup in 1964 through Fernando Henrique Cardoso´s second presidential term. Written in the form of an explanatory summary, three themes are joined in a narrative on the transition from a military dictatorship to a liberal democratic regime: the military, the political and the bureaucratic. We seek to establish causal inferences linking content, methods and the reasons for and meaning of political change beginning in 1974 with the quality of the democratic regime as it emerged during the 1990s. Our explanation is premised on the need to analyze two different but interconnected spaces of the political: transformation in the institutional systems of the State apparatus and the evolution of the broader political scenario. We conclude that neo-liberal economic reforms not only dispensed with true political reform able to increase representation and with reform of the State in ways that would favor participation. Neo-liberal reforms also continued to be premised on authoritarian arrangements of governing processes inherited from the previous political period.



Resumo
O artigo trata da história política brasileira do golpe político-militar de 1964 ao segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Escrito sob a forma de um resumo explicativo, três temas unificam a narrativa sobre a transição do regime ditatorial-militar para o regime liberal-democrático: o militar, o político e o burocrático. Procura-se estabelecer inferências causais entre o conteúdo, o método, as razões e o sentido da mudança política a partir de 1974 e a qualidade do regime democrático na década de 1990. A explicação destaca a necessidade de se analisar dois espaços políticos diferentes, mas combinados: as transformações no sistema institucional dos aparelhos do Estado e as evoluções da cena política. Conclui-se que as reformas econômicas neoliberais não apenas prescindiram de uma verdadeira reforma política que aumentasse a representação, e de uma reforma do Estado que favorecesse a participação. As reformas neoliberais tiveram como precondição o arranjo autoritário dos processos de governo herdados do período político anterior.

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Outras abordagens de dois velhos conhecidos

[Gen. Jorge Rafael Videla (R) and Admiral Emilio Massera leaders of the military dictatorship that ruled Argentina (1976-1983)]

Apresentacao do Dossiê da Revista de Sociol. e Polít. n. 25, 2005.
DOSSIÊ "DEMOCRACIAS E AUTORITARISMOS"

Adriano Codato




"O que uma democracia é não pode ser separado do que a democracia deve ser. Uma democracia só existe à medida que seus ideais e valores dão-lhe existência" (Giovanni Sartori).

Jorge Luís Borges lembrou que "escassas disciplinas devem ter mais interesse que a etimologia; isto se deve às imprevisíveis transformações do sentido primitivo das palavras, ao longo do tempo. Dadas tais transformações, que podem beirar o paradoxal, de nada ou de muito pouco serve a origem das palavras para a elucidação de um conceito" ("Sobre os clássicos", Outras inquisições, 1952).

O fato de, em grego, "democracia" (demokratía) significar "governo do povo" é útil como uma advertência, mas insuficiente para definir um nome. Já o fato de "ditadura" (dictatura) em latim querer dizer "dignidade do ditador" só torna hoje as coisas mais obscuras. Tampouco resolve saber que o dictator é o magistrado supremo romano, o que dita a lei, o que determina e faz cumprir as leis do Estado (tudo isso de acordo com o Houaiss).

Fora da Lingüística, na parte que nos cabe na elucidação do problema, não andamos muito. É provável que a maneira menos produtiva de compreender e explicar regimes políticos seja tomá-los apenas como "formas de governo". Se os esquemas classificatórios mais tradicionais, baseados em critérios numéricos (número de governantes, número de partidos etc.) ou vagamente normativos (o "bom governo" e o seu oposto) já não dizem quase nada, a dimensão estritamente política, seja ela comportamental, seja ela institucional (o grau e o tipo de liberdades políticas, por exemplo) tem um valor muito relativo para compreender a estrutura de poder de uma sociedade dada. Isso para não mencionar o contra-senso da versão tradicional dos Estudos Constitucionais sobre o assunto, que costumam derivar a política do direito.

Não há dúvida que a lição dos clássicos, ensinada pela história das doutrinas políticas (ou numa versão mais sofisticada e contemporânea, pela Filosofia Política), é indispensável para pensar a essência da ditadura e da democracia e as transformações ou os deslocamentos de sentidos dessas palavras. Mas essa sentença é tão verdadeira quanto óbvia. Mesmo que não se concorde com a declaração que abre o conhecido livro de Norberto Bobbio, La teoria delle forme di governo nella storia del pensiero político ("O Ocidente deve à Política de Aristóteles um sistema conceitual que resistiu ao tempo e chegou até nós praticamente intacto" (BOBBIO, 1980 [1976], p. X), parece um pouco excessiva a sugestão de Gabriel Almond para que se considere que Michael Walzer tem um conceito de justiça melhor do que o de Platão, ou Robert Dahl teve insights mais úteis e uma teoria da democracia bem mais rigorosa do que Aristóteles (ALMOND, 1998, p. 51).

É possível sem muita dificuldade contestar as duas sentenças. Tanto a tipologia aristotélica era "rigorosa" (nos limites empíricos possíveis da sua pesquisa de campo1), quanto esse sistema classificatório foi contrariado e superado mais de uma vez. Para ficarmos no melhor exemplo, a frase que abre o Príncipe – "Todos os estados, todos os domínios que tiveram e têm poder sobre os homens foram e são ou repúblicas ou principados" (MAQUIAVEL, 1990 [1513], p. 3) – quer sim revogar a tripartição clássica, mas não apenas. O autor, nota Claude Lefort (1972), altera por assim dizer o princípio de classificação. O que está em questão agora é "o modo que se adquirem" os direitos de dominação: pela virtù, pela fortuna, pela violência e pelo consentimento dos cidadãos.

O objetivo, contudo, deste dossiê do n. 25 da Revista de Sociologia e Política – "Democracias e autoritarismos" – não é discutir a discussão sobre os regimes políticos ou suas definições, em busca da mais correta (ou da mais "operacional"). Nem retomar, abstratamente, as polarizações tradicionais que estão implicadas nesse problema: coerção-consenso, autoridade-liberdade, participação-representação etc. Como se sabe, estudos em Ciência Política e Sociologia Política devem buscar ser objetivos e basear seus achados em evidências e inferências (outra lição de Maquiavel...). Nesse sentido, nosso conhecimento sobre a política pode ser cumulativo e tanto as conquistas conceituais das disciplinas acima ao longo do seu desenvolvimento, quanto os diversos métodos ou abordagens os quais elas lançam mão (história dos conceitos, estudo de casos empíricos, interpretações históricas, análises comparadas, surveys, modelos matemáticos etc.) são úteis e válidos. O problema é que, como advertiu Giovanni Sartori, "a teoria da democracia enquanto tal é uma macroteoria que gira, em grande parte, em torno de generalizações abrangentes. Inversamente, a pesquisa que alimenta a teoria empírica da democracia produz microevidência, no sentido de que a evidência é pequena demais para as generalizações que se propõe testar" (SARTORI, 1994 [1897], p. 15).

Este dossiê, dividido em dois blocos, é um exemplo do esforço dos cientistas sociais (em sentido lato) em muitas dessas direções, tanto no nível "macro", como no nível "micro". Há aqui uma crítica teórica da teoria democrática contemporânea (seja na sua versão representativa, seja na participativa) e uma análise "prática", por assim dizer, das fórmulas institucionais que viabilizariam uma relação mais rente entre representantes e representados, corrigindo a versão segundo a qual a democracia radical é apenas uma perspectiva normativa. O primeiro artigo, de Chantal Mouffe, defende um modelo combativo de democracia, que reponha a idéia de conflito e decisão. Ao recusar o ideal da democracia pluralista, contesta os festejados paradigmas que têm, no centro de sua argumentação, as questões da racionalidade (Habermas) ou da moralidade (Rawls). Para ela, "idéias de que o poder poderia ser dissolvido por meio de um debate racional e de que a legitimidade poderia ser baseada na racionalidade pura são ilusões que podem colocar em risco as instituições democráticas". O texto de Luís Felipe Miguel analisa pacientemente os prós e os contras das diversas propostas, desde as cotas eleitorais até os sorteios, para tornar efetiva a accountability vertical: isto é, a "necessidade que os representantes têm de prestar contas e submeter-se ao veredicto da população". O ponto forte do artigo é, em minha opinião, a discussão sobre o conteúdo da representação. Numa relação política o que está em jogo são tanto interesses e opiniões quanto perspectivas comuns diante do mundo.

Ainda no capítulo das análises conceituais, Gadea e Scherer-Warren sublinham a importância e a atualidade das reflexões sobre a democracia que levem em conta as especificidades latino-americanas. Todo o debate sobre o problema "quem governa/como governa" é centrado nas realidades européia e estadunidense. Ao trazer a discussão para nossa vizinhança, os autores argumentam que as contribuições teóricas de Alain Tourraine são decisivas para compreender o movimento neozapatista de Chiapas, no México, ou o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra, no Brasil.

Há por fim um estudo de caso que não pretende ser apenas um estudo de caso destinado a descrever uma peculiaridade regional. Mário Fuks, em seu exame da dinâmica interna do Conselho Municipal de Saúde de Curitiba, aproveita para mostrar a defasagem, no âmbito do processo deliberativo, entre a posse efetiva de recursos políticos e a influência política real dos grupos sociais. Um bom exemplo, a propósito, de como a microevidência, nos termos de Sartori, ilustra um problema central da macroteoria.

Sobre os autoritarismos contemporâneos reunimos, no segundo bloco, quatro artigos. Como as formas de dominação envolvem práticas distintas, é esperável que o fenômeno do autoritarismo recubra pelo menos três dimensões. Existe não apenas um autoritarismo político (sua face mais conhecida e estudada), mas um autoritarismo social e outro ideológico, e os dois últimos podem viger mesmo na ausência de um "regime autoritário". O autoritarismo social envolve valores e atitudes e o autoritarismo ideológico, cultura (no sentido antropológico) e idéias (codificadas em uma doutrina ou não, mas que sempre pretendem influenciar ou dirigir práticas). O artigo de Geraldo Leão recorda que o autoritarismo, do ponto de vista ideológico, tem uma dimensão bem concreta. Ele não quer apenas conformar uma sociedade, disciplinar os cidadãos ou restringir a prática política, mas dar a ela uma nova estética. O documentário de Peter Cohen, Arquitetura da destruição, mostra o paroxismo desse ideal, em parte projetado, em parte realizado, sob o nazismo. Por meio da análise das esculturas públicas em Curitiba no período posterior à II Guerra Mundial, Geraldo enfatiza que os monumentos não têm um apelo apenas plástico: são inspirados por e produzem uma "mentalidade". A arte figurativa "realista" que o diga.

Os três demais textos – de Adriano Codato, Jorge Zaverucha e Cristina Neme – podem ser lidos juntos, pois há um fio que os amarra: a persistência das instituições políticas e práticas de controle social autoritárias na democracia brasileira contemporânea. Meu próprio artigo refaz a história da transição do regime ditatorial-militar para o regime liberal-democrático no Brasil a partir de 1974 para mostrar como o modo pelo qual se deu a mudança política condicionou a qualidade da política nacional atual. Jorge Zaverucha estuda o caso do Ministério da Defesa, criado no governo de Fernando Henrique Cardoso, e argumenta que esse é um bom exemplo da permanência da autonomia (e da insubordinação) militar diante do poder civil. Por fim, Cristina Neme, ao comparar os problemas da violência criminal e segurança pública no Brasil e na França, mostra como, de fato, no Brasil sua abordagem continua incivilizada: militarizada e selvagem.

Em seu livro Um prefácio à teoria democrática, de 1956, Robert Dahl enumera o que para ele seria "uma assustadora lista das maneiras alternativas pelas quais poderíamos tentar formular uma teoria da democracia" (1989 [1956], p. 9). Poderíamos perguntar-nos sobre as precondições sociais que autorizam a existência de uma determinada instituição política ou fixar uma instituição política como um valor a ser alcançado (a igualdade política, em seu exemplo) e indagar das condições sociais que seriam necessárias para atingir essa meta; poderíamos "nos satisfazer com uma teoria não-operacional", essencialmente ética ou prescritiva da democracia, "ou exigir que fosse tornada operacional", isto é, imaginada de acordo com as observações sobre o "mundo real"; poderíamos "aceitar como válida uma teoria que não requeresse qualquer medição ou exigir que alguns fenômenos fossem mensuráveis"; poderíamos ainda "construir uma teoria que estabelecesse apenas requisitos constitucionais básicos" para o funcionamento da democracia ou "tentar edificar uma outra teoria que incluísse também as condições sociais e psicológicas necessárias" (DAHL, 1989 [1956], p. 10) – etc.

Assim como não existe nem uma teoria dos regimes políticos mais correta que a outra – ou porque estabelece uma ordem de grandeza entre duas variáveis, ou porque entroniza uma variável nova em lugar de outra, ao gosto da ocasião2 –, não há um princípio ético universalmente aceito. O que é diferente, bem entendido, de não haver princípios éticos. Os artigos deste dossiê deixam ver, implícita ou explicitamente, esses problemas e essas alternativas a fim de mostrar como a agenda de Dahl é ao mesmo tempo, passados cinqüenta anos exatos, atual e difícil.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMOND, G. (1998). Political Science : the History of the Discipline. In: GOODIN, R. E. & KLINGEMANN, H.-D. (eds.). A New Handbook of Political Science. Oxford : Oxford University.

BOBBIO, N. (1980 [1976]). A teoria das formas de governo. 3ª ed. Brasília : UNB.

DAHL, R. (1989 [1956]). Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro : Zahar.

LEFORT, C. (1972). Le travail de l'oeuvre : Machiavel. Paris : Gallimard.

MAQUIAVEL, N. (1990 [1513]). O príncipe. São Paulo : M. Fontes.

SARTORI, G. (1994 [1897]). A teoria da democracia revisitada. Vol. 1 : O debate contemporâneo. São Paulo : Ática.

Notas
1 Conforme Norberto Bobbio, "O próprio Aristóteles tinha coligido 158 constituições [políticas] do seu tempo, em obra que se perdeu" (1980 [1976], p. 74)

2 Talvez fosse o caso lembrar a afirmação de L. Althusser: a filosofia é luta de classes na teoria

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Revista de Sociologia e Política n. 25 - Dossiê Democracias e Autoritarismos

[caricatura de
Ernesto Geisel, 1982]


Sumário
Rev. Sociol. Polit. n.25 Curitiba nov. 2005

Dossiê Democracias e Autoritarismos
Apresentação: outras abordagens de dois velhos conhecidos
Adriano Codato

Democracias

Por um modelo agonístico de democracia
Mouffe, Chantal

Impasses da accountability: dilemas e alternativas da representação política
Miguel, Luís Felipe

A contribuição de Alain Touraine para o debate sobre sujeito e democracia latino-americanos
Gadea, Carlos A.; Scherer-Warren, Ilse

Participação e influência política no conselho municipal de saúde de Curitiba
Fuks, Mário

Autoritarismos

Esculturas públicas em Curitiba e a estética autoritária
Camargo, Geraldo Leão Veiga de

Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia
Codato, Adriano Nervo

A fragilidade do Ministério da Defesa brasileiro
Zaverucha, Jorge

Violência e segurança: um olhar sobre a França e o Brasil
Neme, Cristina

[para acessar este número, clique aqui]
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11 de outubro de 2006

A inutilidade dos debates - coluna de Renato Perissinotto na Gazeta do Povo, 11 out. 2006

[M. Rotkho]

Renato M. Perissinotto
Gazeta do Povo 11 out. 2006

Por favor, perdoem-me a heresia, mas esses debates televisivos não servem para nada! Sei que isso ofende o senso comum, sobretudo aquele que vigora entre os profissionais da mídia, que acreditam piamente na necessidade de patrocinar esses enfrentamentos vazios de conteúdo e recheados de oratória pirotécnica, “para o bem da democracia”. É claro que este colunista não é contra o debate público, isto é, a submissão de propostas claras à crítica cerrada do eleitor comum e de especialistas. Mas o que vimos no domingo passado foi uma exposição de assertivas tão contundentes quanto vazias, de virilidade ridícula, de duelo de “evidências” por meio de números que ninguém sabe de onde vêm, o que representam ou sequer se são verdadeiros.

Fulano diz que gastou tantos milhões em educação; sicrano rebate que investiu o dobro e que gastou três vezes mais em saúde pública; fulano diz que sicrano roubou, mas sicrano diz que não e devolve a acusação; ambos citam números, lembram os nomes dos cúmplices e deixam ao leitor a responsabilidade de checar todas as informações para saber quem está dizendo a verdade, o que, obviamente, jamais será feito, pois todos nós temos mais o que fazer. Com preguiça, só resta ao eleitor indeciso (pois o decidido já não muda de opinião nesta altura do campeonato) se apegar aos traços de personalidade: quem é o mais firme? Quem é o mais bonito? Quem fala melhor? Quem é mais astucioso? Enfim, todos aqueles critérios absolutamente superficiais, desprovidos de significado político e que nada dizem sobre a capacidade de governar do candidato. A grande mídia e os jornalistas estão, a meu ver, prestando um enorme desserviço à democracia ao insistirem em chamar isso de debate democrático.

Está na hora de as redes de televisão repensarem essa prática. Creio mesmo que não se trata nem de produzir um pseudo-enfrentamento entre os candidatos. O último deles durou duas horas e meia sem que qualquer exposição efetiva de propostas de governo fosse feita. Talvez fosse muito mais proveitoso se usassem esse tempo para submeter os candidatos (isoladamente) a perguntas profundas e sérias, elaboradas por jornalistas inteligentes e ousados, que obrigassem os candidatos a responderem diretamente indagações sobre o que fizeram no governo ou sobre o que pretendem fazer se chegarem lá. Duas horas e meia de sabatina pública me parecem muito mais proveitosas do que duas horas e meia de exibição vazia.

Renato Perissinotto é cientista político, professor da UFPR.

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Composição da AL-PR por partido/candidato

O site UOL Eleições 2006 apresenta um "infográfico" com a composição da nova Assembléia Legislativa do Paraná.
É possível também acessar a declaração de bens
apresentada à Justiça Eleitoral do candidato eleito. E outros dados político-biográficos relevantes. Há um link que permite comparar as informações com as da AL eleita em 2002.

http://placar.eleicoes.uol.com.br/2006/infograficos/assembleialegislativa.jhtm?uf=pr


politicosdobrasil - levantamento empírico


[Pres. Dwight Eisenhower (CL) with the Pres. of Brazil Juscelino Kubitschek (CR). Paul Schutzer, 1960. Life]

Políticos do Brasil no ar
DO BLOG DO JORNALISTA FERNANDO RODRIGUES

Já está no ar: www.politicosdobrasil.com.br

Dicas:
1) nome - o banco de dados faz a busca pelo nome completo de cada político... Sorry. Vamos tentar, em breve, resolver isso e colocar também o nome eleitoral. Por exemplo, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL), eleito em 2002 (ele só estão em 2002, portanto), aparece como "José Renan Vasconcelos Calheiros". É necessário procurá-lo pela letra "J".
Ainda sobre nomes, "Antonio" (sem acento) vem antes de "Antônio" (com acento).

2) cruzamentos - alguém entrou no site e pediu cruzamentos (Estado X partido ou Estado e cargo). Não é fácil, pois esse cruzamento tornaria o banco um pouco mais pesado e lento. Mas a sugestão foi anotada e será considerada.

A lógica toda foi colocar as informações no ar. Aos poucos, vamos melhorar. Quem tiver sugestões, por favor, pode mandar.

Última dica: copie os CPFs dos políticos e use o manual Saiba como checar o CPF dos políticos e sua situação fiscal.

Leia também:

Políticos do PT são os que têm o maior avanço patrimonial
Estréia no UOL "Políticos do Brasil"

29 de setembro de 2006

O terno azul

[foto: Jean Manzon, Juscelino Kubitschek, Brasília, c. 1957]

Adriano Codato
Gazeta do Povo, Curitiba - PR, 2o. cad., p. 19, 29 set. 2006


Ao dentista e a debate só se vai em último caso.
Essa máxima seguida à risca pelo presidente Lula, que optou por outros “compromissos de campanha”, era ato que faltava na disputa presidencial. Ele confirma que a política brasileira está cada vez mais despolitizada.

A despolitização da campanha promovida pelo PT e pelos demais partidos não resulta só da cara de pau da situação ou da oposição quando o assunto é “a ética na política”. A despolitização tem a ver com a falta de uma verdadeira discussão de alternativas viáveis ao modelo social-liberal.

O volume de recursos para promover a tal da revolução da educação viria de onde? Podemos contar com a disposição efetiva para reduzir o superávit primário? Heloísa Helena enfrentaria o grande capital financeiro com alguma coisa mais do que a vontade de brigar? “Geraldo”, como querem os marqueteiros, continuaria a obra de destruição do Estado e do setor público iniciada no governo FHC?

Como se viu na campanha e no debate de ontem, o PSDB representa, afinal, a face mais agressiva do mesmíssimo modelo econômico. Heloísa Helena, empenhada em gritar o antigo bordão petista, “contra tudo isso que aí está”, põe em segundo plano a tarefa de reconstrução de um partido de esquerda. E Cristovam Buarque não consegue deixar de ser Cristovam Buarque.

No fundo mesmo, ficamos apenas privados de ver o Lula em seu elegante terno azul.

Referência:
CODATO, Adriano. O terno azul. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, 2o. cad., p. 19, 29 set. 2006.

26 de setembro de 2006

ditadura militar e governo civil

[foto: Encontro do general Geisel
com a seleção brasileira de futebol, 1978. Fonte: CPDOC]


Para uma análise mais extensa e mais aprofundada, acesse o artigo:
Codato, Adriano Nervo. Uma história política da transição brasileira: da ditadura militar à democracia. Rev. Sociol. Polit., Nov 2005, no.25, p.83-106.

Adriano Codato
Gazeta do Povo
, Curitiba (PR),
19 dez. 2004, p. 8.


A controvérsia em torno da abertura dos arquivos da ditadura militar brasileira é um exemplo modesto de um problema maior: que fazer do nosso passado? Essa não é uma questão “acadêmica” ou assunto exclusivo dos historiadores. Ela diz respeito à forma de controle do Estado pela sociedade.

Em 2005 o Brasil completa vinte anos de governos civis. Quando e como poderemos lidar com a questão das prerrogativas das Forças Armadas no contexto de um regime democrático? O episódio da saída do ministro da Defesa, José Viegas, as declarações do ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, a polêmica em torno das indenizações, as notícias sobre a Operação Condor e o Caso Pinochet expuseram à opinião pública um dos pontos mais complicados da última década: o tipo de democracia que temos e a que queremos.

Em que medida os governos dos anos noventa contribuíram para transformar as instituições e as práticas herdadas da ditadura militar (1964-1989) e a cultura política que a acompanhou? Muito pouco. Os minimalistas que me perdoem, mas nossa democracia é uma democracia eleitoral. Isso tem a ver com a história política recente do País e com as opções institucionais dos governos civis.

No Brasil fala-se de “transição” de um regime a outro através de mudanças pontuais introduzidas nas instituições políticas e não de “transformação” do regime ditatorial em outro regime político completamente diferente (por exemplo: democrático). Por que isso? Porque o restabelecimento de formas democráticas de governo, é bom lembrar, configura-se somente como um dos resultados possíveis da transformação dos regimes ditatoriais preexistentes. Em segundo lugar, porque a revogação dos regimes políticos autoritários não é alcançada necessariamente através de sua derrubada (como foram os casos, diferentes entre si, de Portugal nos anos 70 e da Argentina nos anos 80). Ela pode resultar também de processos evolutivos de mudança. A diferença nesse aspecto entre o caso brasileiro e o caso espanhol é eloqüente, ainda que os dois países sejam o melhor exemplo da “transição pela transação”. Enquanto na Espanha a transição política seguiu uma via condicional (cada instituição democrática introduzida no sistema político exigia – condicionava – uma outra instituição democrática), no Brasil a via da mudança política foi seqüencial: foram reintroduzidos certos direitos liberais clássicos, seguindo uma estratégia incrementalista e moderada, com a colaboração da oposição, a fim de evitar os riscos de uma regressão autoritária. A legenda do governo Geisel (1974-1979) foi: uma distensão política lenta, gradual e segura, continuada no governo Figueiredo (1979-1985) sob o nome de “política de abertura”. Esse processo, que somente terminaria no governo Sarney (1985-1990), foi tão demorado que consagrou a suprema ironia da política brasileira recente: nós assistimos a uma fase de transição (1974-1989) que durou mais do que o regime ditatorial propriamente dito (1964-1974).

O que os militares pretendiam promover era uma liberalização do regime ditatorial-militar, e não exatamente uma a democratização do sistema político. A abertura política deveria ser suficientemente ampla para produzir uma nova legitimação do poder do Estado, mas tão gradual e controlada quanto possível para que não desse pretextos nem para o retorno da extrema-direita, dominante no governo Médici (1969-1974), nem abrisse o caminho para uma ofensiva oposicionista (via MDB) que conduzisse à ruptura democrática. Só assim se compreende a estratégia pendular de Geisel: ora à direita (cassações), ora à esquerda (eleições).

Mas esse é o lado político da estratégia. Há que se considerar também o lado militar. Uma das tarefas mais importantes (e difíceis) na mudança do regime foi o gradual desengajamento das Forças Armadas da condução dos negócios de Estado e o seu retorno à condição usual de guardiã da ordem interna (da “paz social”). Um dos principais ingredientes dessa política era o fortalecimento do Presidente da República e a afirmação de sua autoridade sobre os vários grupos e facções que agiam como um poder paralelo dentro do Estado. Como o jornalista Elio Gaspari demonstrou em seu último livro sobre a ditadura, a vitória do Presidente militar sobre a corporação militar deu-se mediante um acréscimo de autoritarismo e não o seu contrário.

Ora, todas as contas feitas, quando se considera a natureza (conservadora) do processo de transição política no Brasil, seus objetivos (restritos) e seus meios (autocráticos), não surpreende o excepcional continuísmo do autoritarismo nas novas formas constitucionais pós-1988; nem o fato de que todo o processo tenha sido dirigido pela mesma associação política. A longevidade da tríade ARENA-PDS-PFL não nos deixa esquecer que não houve substituição dos grupos no poder, mas uma reacomodação no universo das elites.

O governo Sarney foi a expressão máxima desse círculo de ferro que controlou com sucesso a mudança política no Brasil. Recorde-se que as palavras de ordem da Aliança Democrática, “conciliação” e “pacto social”, conseguiram neutralizar tanto os ensaios de oposição (greves de trabalhadores, protestos empresariais, movimentos sociais), quanto a campanha pelas “Diretas-Já”. O resultado foi uma forma de governo previsível, onde o regime de partidos e a rotina eleitoral não pusesse em xeque a “representação política”, nem desse oportunidade para os “excessos” do período populista. A década de oitenta consumou os sonhos dos generais: uma “democracia relativa”.

Como essa história pesa sobre o arranjo institucional (isto é: os partidos, o regime eleitoral, o Estado etc.)? Qual a herança dessas instituições políticas (e da cultura política) sobre os governos dos anos noventa e o atual?

Considere a notável supremacia do Executivo no sistema político brasileiro. Ela se expressa no aumento exponencial de edições e reedições de medidas provisórias. Esse seqüestro de funções governativas que deveriam ser, segundo os princípios liberais, repartidas, se dá com base nas mesmíssimas justificativas “tecnocráticas” da ditadura militar: urgência (trata-se, freqüentemente, de medidas de “salvação nacional”), segredo (as decisões devem causar “impacto”: Plano Cruzado, Plano Collor I, Plano Real) e monopólio da competência técnica (vide, por exemplo, o tratamento dado pelo Executivo à “questão orçamentária” e às emendas “clientelistas” dos deputados). O discurso dominante teima em identificar o Executivo como o foco da “racionalidade” e o Legislativo como a sede do “desperdício”. A contra face dessa extrapolação de competências é a diminuição da capacidade de controle e supervisão do Parlamento. A manutenção de uma relação clientelista do Executivo com a base de apoio do governo e o desequilíbrio da representação eleitoral entre os estados (instituto do “Pacote de Abril” de 1977) tende a agravar esse quadro. Suas conseqüências para o sistema partidário são conhecidas: fragmentação, dispersão e impossibilidade de formação de maiorias estáveis. É exatamente em função da ausência de instituições (partidos, Parlamento) “fortes”, isto é, democráticas, que a cena política tende a aparecer polarizada entre figuras individuais.

Uma segunda dimensão importante da herança institucional da ditadura militar sobre os governos da década de noventa, herança que não só não foi corrigida mas, pior, foi aprofundada, foi a permanência de núcleos de poder específicos no Estado brasileiro dotados de grande independência e nenhum controle político (isto é, parlamentar) ou social (isto é, público). Há três expressões desse fenômeno. Na área econômica, agora como antes, continuou vigorando o esquema do superministério (representado atualmente pela santíssima trindade nacional: o Banco Central, o Conselho de Política Monetária e o Ministério da Fazenda). Na área militar, há três feudos burocráticos intocáveis: o Gabinete de Segurança Institucional (antiga casa Militar), a Agência Brasileira de Informação (ex-SNI) e a Justiça Militar. Por fim, na área empresarial, isto é, naqueles aparelhos de Estado onde se administram os “interesses do mercado”, a regra é o contato direto de representantes influentes com decisores estratégicos, um mecanismo muito pouco transparente. Os “esqueletos do BNDES”, na expressão de Carlos Lessa, são o exemplo.

Por quê isso ocorre? Penso que todo esse “entulho autoritário”, para retomar uma expressão dos anos oitenta, permanece por uma razão básica. Quando se inspeciona a agenda dos governos Collor, FHC e Lula, destacam-se as medidas de “estabilização” e as famosas reformas “orientadas para o mercado”, isto é, privatizações de empresas estatais, desregulamentações de esferas antes vigiadas pelo Estado, controle rigoroso da inflação e do déficit público, redimensionamento dos gastos sociais (nas áreas de educação, saúde e previdência), abertura comercial e financeira etc. Ora, as reformas neoliberais prescindiram de uma verdadeira “reforma política”. Ou melhor: as reformas econômicas tiveram como pré-condição o arranjo autoritário da “distribuição de poderes” e a ausência de responsabilidade dos governantes. Daí que sua implementação não combinou com as exigências de ampliação da cidadania e controle social sobre o Estado, suas burocracias e seus aparelhos de poder.

Há portanto uma complementaridade entre o discurso ideológico (liberal) e as práticas políticas (autoritárias), que se expressa na insistência em dedicar-se a construir somente a hegemonia social do capitalismo neoliberal e não formas novas de legitimação política democrática. Não se compreende a questão militar no Brasil sem uma referência a essa história e à sua solução. Edificar instituições democráticas e práticas republicanas é mais do que garantir eleições periódicas. A Argentina e o Chile já sabem disso.

Referência:
CODATO, Adriano Nervo. Ditadura militar e governo civil. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, cad. Mundo, p. 8, 19 dez. 2004.
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Crise política e senso comum

[croqui do Congresso Nacional, O. Niemeyer]

Adriano Codato
Gazeta do Povo, Curitiba (PR),
7 nov. 2005, p. 8.


É provável que tenha sido Luis Fernando Veríssimo quem observou ser a discussão política entre nós uma disputa de par ou ímpar. Sempre há, segundo essa lógica, duas alternativas. Excludentes entre si. Não é o que se passa quando se lê quase todos os diagnósticos sobre Lula e seu governo? Ou se é a favor (do Presidente, do PT, dos políticos de esquerda etc.), ou se é contra. A partir disso...

Impossível desconhecer o fato óbvio que política é tomada de posição. Mas uma análise objetiva da crise política atual deve necessariamente partir daí? Sendo a imparcialidade um princípio inalcançável (e, nesse caso, indesejável: como pensar a política sem pensar politicamente?), o dever de casa dos intelectuais não é só “falar” ou “não falar”. Há, claro, o risco de ouvir aqueles profetas que Louis Pinto reprovou, num artigo recente em L'Humanité, que fazem pouco do trabalho empírico dos sociólogos, dos economistas, dos historiadores, dos cientistas políticos, e se contentam em proferir generalidades sobre “mutações”, “rupturas”, “desencaixes” etc. O ponto fundamental, julgo eu, é tentar mostrar – a partir da crise presente – o que se passa, hoje, com a Política em geral, principalmente quando há uma descrença difundida da Política.

Para quem acompanha a conjuntura pela imprensa, ou por ouvir dizer, a crise se resume à crise “do governo do PT” e essa se resume quase que à descoberta diária dos trambiques dos funcionários pagos do Partido, e às suas justificativas inacreditáveis. Essa visão factual, embora guarde o mérito de reportar o funcionamento miúdo do sistema político brasileiro, possui, por outro lado, certos problemas.

O primeiro é que não dispõe os eventos (aqueles que dão manchete e causam escândalo) numa cadeia causal. Quando o que se vê é uma sucessão aleatória de acontecimentos, ou melhor, quando os acontecimentos são apresentados sem qualquer ordem reconhecível, perde-se a idéia de processo político e junto some até mesmo, ou por causa disso, o passado recente. Vivemos um presente absoluto e somos levados a crer que o mundo social é o resultado simples dos feitos e malfeitos dos indivíduos. A análise política é então pouco mais que a descoberta das intenções ocultas dos primeiros e o comentário minucioso dos fatos do dia anterior. (Com alguma maldade, Charles Tilly sugeriu que “somente os locutores esportivos e os repórteres televisivos chegam perto de fazer observação e análise simultaneamente”). Nesse registro, a cena política é preenchida por “declarações”, que logo se convertem em “revelações”, e os analistas passam a correr atrás dos lances dos atores (alguns, atores mesmo...) na expectativa de descobrir e depois reportar suas “táticas políticas”.

Ora, quando o que interessa mais é o jogo e os jogadores ao invés daquilo que está em jogo (como enfatizou Pierre Bourdieu na sua análise sobre a televisão), o segundo problema é que desaparece o contexto mais amplo onde a ação política se dá (junto com a série de constrangimentos postos diante de quem deve decidir). Se no primeiro caso a atenção é desviada para os personagens do drama, tomados isoladamente e a cada instante, aqui a crise de governo não se liga a nada que não diga respeito à corrupção do governo. É natural, portanto, que os discursos sobre a “ética” façam às vezes de explicação e quanto mais indignados seus autores, mais inteligentes pareçam. O sumiço da idéia de política como processo se casa agora, no senso comum, com o esquecimento de todas as circunstâncias, e essa complicação adicional implica em aceitar um raciocínio peculiar que ignora a economia internacional (mesmo quando se fala em “globalização”), a sociedade tradicional (mesmo quando se reconhece a famosa “herança colonial”) e as rotinas do sistema político nacional junto com seu cortejo de “disfunções”: populismo, clientelismo, patrimonialismo etc. Cada um desses elementos tem um papel e um peso na explicação da natureza da crise, das suas origens e das saídas possíveis. Por que não discuti-los?

Por último, quando a lógica do campo político captura o campo jornalístico, promovendo feitos em fatos e transformando indivíduos quaisquer em atores racionais; e quando a lógica do campo jornalístico captura o campo político, tornando o conflito político uma disputa pela melhor imagem e convertendo essa imagem despolitizada em fetiche, o resultado é um baralhamento das coisas tal que o universo político aparece sem lógica alguma: um caos, para resumir. Essa confusão só é compreensível, conforme se crê, pela corrupção a serviço da disputa egoísta do poder. Não é exatamente assim que é “explicada”, por exemplo, a interminável troca dos deputados de um partido a outro? O que passa despercebido é que se o “marketing político” (essa lucrativa invenção) dissimula justamente as diferenças reais entre os programas, criando candidatos intercambiáveis, a mudança de legenda que vem em seguida às eleições não passa de um detalhe menos notável desse processo de indiferenciação, já que, afinal, “são todos iguais”. O sucedâneo disso é o desencanto geral com a Política, a desconfiança nos partidos e a descrença (também pudera) nos próprios políticos. Resultado: toda saída está bloqueada e tanto a idéia de representação política, quanto seus mecanismos de delegação estão em xeque. Fim da Política?

Esse talvez seja o fio a puxar dessa meada. É necessário, por isso mesmo, repolitizar o debate sobre a crise atual, recusando a visão atomizada dos eventos e uma compreensão a-histórica dos processos. Essa operação, que é também uma luta ideológica, não significa apenas restituir a autoridade da ciência da sociedade sobre a sociedade. Mais do que “mostrar o outro lado das coisas”, há uma verdadeira disputa simbólica para (re)pensar a política. Assim, a análise sociológica da política não está excluída dessa disputa maior que se dá com e contra o próprio campo político e o campo jornalístico, que produzem e impõem um sentido próprio aos acontecimentos.

Um começo possível para essa discussão poderia ser o seguinte: a crise do governo Lula, no que ela tem de paradigmático, descontando-se ao menos por ora os negócios ilegais dos “dirigentes históricos”, gira em torno de quatro grandes eixos. Um estritamente político, um social, um econômico e um utópico. Esses eixos não têm raízes só locais, mas dizem respeito, antes, às dificuldades da própria Política contemporânea. Dando um passo atrás para enxergar o tamanho do quadro e o desenho em suas devidas proporções, há um conjunto de problemas devidamente intrincados. Listo-os sem qualquer hierarquia: o problema da governabilidade do sistema político (como obter apoio?) e da governança do sistema estatal (como ser eficiente e controlável?); o problema da legitimidade dos atores políticos e da representatividade dos movimentos sociais (em nome de quem eles ainda podem falar?); e o problema da soberania dos Estados capitalistas (até onde vai a autoridade da potência hegemônica?) e do poder dos governos nacionais (qual sua capacidade decisória efetiva?); e, por fim, o problema do modelo de civilização que se deseja (estatal, social, liberal?) e do agente político capaz de formular esse projeto e sustentar esse modelo. Não está aí, afinal, o sentido último da “crise da esquerda”?

Certamente quando se faz isso há mais questões que respostas, sendo esse um programa ambicioso de estudos e debates sobre um mundo muito complexo. Ainda que não seja indiferente ao governo petista, e aos seus inúmeros “contratempos”, para ser educado, seria prudente focalizar, ao mesmo tempo, a crise do governo e a crise da Política contemporânea. Para começo de conversa.

Referência:
CODATO, Adriano Nervo. Crise política e senso comum. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, v. 1 cad., p. 8, 7 nov. 2005.
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The Republican University in Brazil

Adriano Nervo Codato & Renato Monseff Perissinotto
The Voice of the Turtle, New York - NY, 01 jun. 2003.
Translation from Portuguese: David Schwam-Baird (University of North Florida)


[Sebastião Salgado, Brasil, 1986]

The social sciences have often seemed either like a lesser kind of knowledge, superfluous and inexact, or like an indispensable layer of cultural polish that one needed before embarking on a career in one of the liberal professions.

However, the complexities of social life, with its renewed political debate and competition, the unpredictability of economic crises (whose effects on the class structure are immediate), and the progressive diversification of goods and services in the sphere of high culture force us to challenge the artificial character of this “education.” We need to reclaim the tools of the social sciences in order to overcome the retrograde localisms and provincialisms of the elites and the strict political control of the institutions of traditional society in Brazil.

The public University was once the shortest and quickest route for moving up the social ladder (mainly for immigrants or people whose roots were in the lower middle class). For such people, studying the Humanities could, slowly but surely, could help to overcome or replace the dilettantish and politically innocuous sort of “social studies” then on offer. These blasé forms of social criticism gave way to a body of knowledge organized into separate disciplines that were managed by specialists. It may be exactly this arrangement which will allow for a renewed Social Science discipline to play a crucial role in producing scientifically valid ideas and analyses, as well as providing a much needed space for comprehensive reflection. With this in mind, how should we view the public University in Brazil today?

Examining the Brazilian public university today implies overcoming imposed false dichotomies through the application of common sense. In order to do this, we must refute the commonly accepted opposition between “productive” and “non-productive,” an artificial dichotomy oft resorted to by “well-informed” critics of the University. Other new antinomies soon follow this first dichotomy: “research-professor” vs. “administrator-professor” ; “professor-as-committed-professional” vs. “professor-as-union-activist” ; “new professor” vs. “old professor” (and the most recent distinction: the “productive-professor” vs. the “professor-professor”). The preference for one or the other term in each dubious equation depends, of course, on the subjective predispositions of the analyst. As generally happens, the ensuing discussion of these dichotomies (which, after all, is a very “academic” discussion) actually serves to obfuscate the principle sources of the current crises of the public university.

These sets of opposing terms, which are superficial yet intriguing, are very similar to another such set: that which contrasts the “elite university” with the “mass university.” Paradoxically, since one must overcome the former in order to achieve the latter, it becomes necessary to establish the means to pay for instruction (whether by “everyone,” or solely by the “rich,” remains to be determined).

The first move in overcoming these false dichotomies consists in pointing out, in a clear and direct manner, the fundamental problem (but certainly not the only problem) which compromises the “proper functioning” of the Brazilian University.

If this “proper functioning” is to be achieved, then the Republican mission of the University must be understood and articulated. The University must be a truly public institution – more productive, yes, but also politically and socially more democratic. This is impossible without Public Funding as the Republican University’s main pillar of support.

II

The current crisis of the Brazilian University is actually a less visible aspect of the crisis of the Brazilian State, of its forms of management (bureaucracy) and of its standards of financing (inflation) in the 1980s, which the essentially fiscal perspective of the liberal governments of the 1990s failed to solve.

Current dominant policies insist on combating the degradation of public space with less State, contrary to earlier Keynesian and social-democratic prescriptions. Under the pretext of condemning the excessive bureaucratization of the State and the inefficiency of its administration, the ideology behind these new policies produced a generic critique of “the Public Sphere” as such. Through a semantic slip (perhaps intentional, perhaps not), everything that had been “public” is now treated as if it were state-owned or state-managed. The State, of course, is assumed to promote inefficiency, and inefficiency must be subject to reform. In accordance with this conceptual move, the essence of such reform demanded “privatization” of all enterprises and services, including higher education. Transformed into a market commodity, the provision of education -- or more accurately, the resources that would have been devoted to education – must now vary with the financial fluctuations of the government, rather than be determined by a strategic policy of affirmation, or defense, of citizenship (in all of its cultural, scientific, technological dimensions). This is a policy option, and not an automatic result of “globalization.” Nor is it a product of the ineluctable and presumably purifying “weakening of the national State.” It is a policy option which produces negative results in public services, now in poorer financial and material shape than ever.

What is the significance of the disintegration of the “public sphere” for the Brazilian University? Essentially this means the steady advance of the “privatization” of the public university in various important aspects.

The first and most fundamental aspect is the increasingly strategic role which extra-budgetary resources play, in more and more areas of academic life. These include such things as the offering of specialized courses, consulting, and contracts for research based on market needs, among other things. These should not be considered as mere complimentary activities or additional tasks. These are services that “earn money,” and are therefore to be seen as more efficacious substitutions for public funds. This basic change conditions other important aspects affected by this process, in the intellectual, social, administrative and political dimensions of the public university.

The predominance of private financing tends, to a certain degree, to constrain intellectual liberty. It determines the academic agenda by imposing its own favored themes for research. These themes are defined mainly in utilitarian terms, where private sector profits, (or, in more polite terminology: “with immediate application for its findings,” or perhaps “socially relevant knowledge”) are the ultimate goal. This tendency is growing, and seems to be all but irreversible, imposing new parameters of evaluation (under the new name: “productivity”) heretofore unknown in university life. With these new guidelines for evaluation, former measures such as “number of publications by a professor in a given period” are no longer sufficient to justify university expenditures. While a professor is still evaluated according to his or her teaching activities, institutional service, and professional enhancement, the always-damning evaluation of the “professor-who-does-not-publish,” is being replaced by the possibility of being judged a “professor-who-publishes-a-lot-but-nothing-that-is-immediately-applicable.”

From the social point of view, the decrease in the allocation of public funds to the universities has an even more adverse impact. It is becoming more and more difficult for needier students to complete their studies, relying as they almost always do upon the various services heretofore provided for by the Republican University, such as housing subsidies, meal plans, health care, and various sorts of grants. Contrary to the myths that claim that “only the rich study at public universities” in Brazil (consistently disproved by serious census data), this new trend is one of the most troubling that we now face, especially as recruitment mechanisms such as affirmative action for needier students are being radically altered to fit “market models.”

The third strategic dimension suffering from the effects of the new financing strategies is the administrative part of the University. Administrators, now struggling both for diminishing public monies, and for resources from the private sector, are themselves essentially co-opted into adopting the new criteria discussed above. They now need to make the University more “attractive” in the market. This is not merely a bureaucratic dimension: it seriously affects the distribution of prestige and of influence within the academic institution. Certain areas of knowledge that do not depend exclusively on public funds, such as the liberal professions, or applied technology and scientific research, will not immediately feel the impact of the reduction of public funding.

This will not be the case in fields of learning outside of the areas of “basic research.” Were a sufficient flow of public monies guaranteed, then those fields associated “high culture” (classical studies and the liberal arts in general) would be adequately supported. We would then not have to fear the resurgence of the split between high prestige “wealthy disciplines” and low prestige “poor disciplines,” with attendant levels of influence and funding. This dimension is not insignificant in institutions in which the “academic hierarchy” has ceased to depend on the mere quantity of knowledge achieved by its professors.

Finally, the specifically political dimension. The erosion of even minimal levels of financing by the State has created a predatory competition for capital, intensifying that destructive logic which pits rival groups against each other. This exacerbates the interminable disputes over resources that have always existed in the University to the point where even the minimal consensus necessary for the defining, or defending, the institution as a whole becomes practically impossible to achieve.

In the end, what we see emerging is not the idealized “enterprising-university,” the productive and bracingly efficient neo-liberal promise. Rather, we are clearly regressing towards a “university-as-government-agency” (with all the attendant risks of corporatism and bureaucratization). Altogether forgotten is the ideal of the public University, which serves the Republic and its citizens.

Referência:
CODATO, Adriano Nervo; PERISSINOTTO, Renato Monseff. The Republican University in Brazil. The Voice of the Turtle, New York - NY, 01 jun. 2003.

A elite estatal no governo dos “trabalhadores”


[Julius Weiss, Group of Men]

Adriano Codato
Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 44, 06 jan. 2005.


Há, na conjuntura ideológica atual, duas teses opostas sobre o governo Lula mas que se merecem, seja pela sua superficialidade, seja pela tentação ao auto-engano que contêm.

Uma tese pertence aos que se poderia chamar de os herdeiros da desilusão. Para quem acreditou que no dia 1º. de janeiro de 2003 assistia-se à (re)fundação da República no Brasil, encontramo-nos hoje em meio à mais profunda decepção. A queixa diante das ‘promessas não cumpridas’ (para ficar no chavão) do ‘resgate da dívida social’ (outro chavão) evoca mais do que o otimismo dos ingênuos; evoca a fé nos governos do tipo ‘redenção nacional’. A assimilação dupla do PT, como o partido dos “trabalhadores”, na figura de Lula, como o líder do “povo”, e mais exatamente como o líder de mais uma grande mudança histórica (ainda que bem-comportada) – assimilação essa que foi o tom da campanha de 2002, dos anúncios do « governo de transição », do discurso de posse etc., como todos se lembram – cobrou seu preço muito cedo; precisamente quando o programa para zerar a fome não saiu do lugar.

A outra tese disponível na conjuntura ideológica atual é mais cínica e é sustentada pelos intelectuais da ordem, tanto à esquerda quanto à direita. Nessa versão sobre o governo Lula, não se trata de constatar o fracasso de mais um projeto reformador, mas de celebrar o sentido implacável, inflexível e insuperável da nova « ordem global ». Esses intelectuais se contentam em reafirmar o que, segundo eles mesmos, já se sabia (tanto é que nada poderá ser muito diferente do que o governo de Fernando Henrique fez...): não há qualquer alternativa de política econômica diante dos constrangimentos sistêmicos do capitalismo globalizado. São o time de herdeiros da ilusão (para manter a similitude com o time anterior). Mais exatamente : da ilusão diante da nova opacidade produzida pela circulação do dinheiro nos mercados mundiais.

A essas duas posições ideológicas (com certeza há outras; ou ainda: há versões mais ou menos sofisticadas das mesmas) pode-se contrapor, entre outras, três críticas sociológicas presentes na cena intelectual atual. A de Paulo Arantes (Zero à esquerda, 2004), a de Francisco de Oliveira (O ornitorrinco, 2003) e a de Armando Boito Jr.[1] Menciono brevemente o conteúdo das duas primeiras e gostaria de discutir, neste artigo, um aspecto da análise do Armando, análise essa que estou, em linhas gerais, ou pelo menos diante do seu diagnóstico essencial, de acordo : o governo Lula é um governo neoliberal. Ele representa uma continuidade, agora em outra etapa, dos governos Collor (1990-1992) e Fernando Henrique (1995-2002).

O diagnóstico de Paulo Arantes pode ser extraído, com um certo custo, da seguinte avaliação : « [...] saber se somos ou não viáveis não faz mais sentido. [...] Mesmo a idéia de desenvolvimento supõe um quadro de normalidade capitalista que tampouco resiste ao menor teste de realidade – que o digam as horrendas sociedades que são as máquinas chinesa e indiana de crescimento »[2].

Ou: a modernização possível da sociedade brasileira e da economia brasileira é essa mesma que temos diante de nós. Não há um ‘depois’ ; não há um processo ‘interrompido’ ; não há um ponto a partir do qual retomar o desenvolvimento; o Brasil é « cronicamente inviável », como definiu a fita de Sergio Bianchi[3]. Portanto, o mundo colonizado pelo capital (cuja pobreza, exclusão e miséria é aprofundada pela gestão tucano-petista) seria muito mais destruição que criação. O Brasil, repare, não é o passado do capitalismo. É o seu futuro.

Esse hiperdeterminismo estrutural, onde a economia é a chave que aperta o parafuso da História, é melhor explicado na análise de Francisco de Oliveira, já que há aí a identificação do agente dessa não transformação.

Para o Brasil, hoje já não mais se coloca o desafio histórico de passar do ‘subdesenvolvimento’ para o ‘desenvolvimento’, na terminologia dos anos 50. Não há, nesse sentido, a possibilidade de uma ‘evolução’. A economia e a sociedade brasileiras são o efeito (perverso) da combinação de traços díspares, mas ainda assim funcionais, tal como a imagem esquisita do ornitorrinco evoca : um mamífero ovíparo com bico de pato e cauda semelhante à do castor..., isto é: uma anomalia. E o capitalismo brasileiro não pode se transformar em outras coisas por três razões básicas: 1) ausência de capital para readequar suas forças produtivas à nova fase do capitalismo; 2) ausência de força social das categorias que poderiam pressionar por melhores condições de vida para todos os trabalhadores (metalúrgicos, bancários, petroleiros), já que tiveram seu poder erodido graças à modificação das relações capitalistas e a precarização do trabalho; e 3) presença de uma nova classe social com poder político e recursos econômicos, formada por antigos dirigentes sindicais convertidos em administradores dos fundos de previdência complementar (pelo lado do PT) e técnicos e economistas convertidos em banqueiros (pelo lado do PSDB). Essa é a classe que monopolizou o governo anterior e que monopoliza o governo atual[4].

Penso que um dos grandes méritos da análise de Armando Boito é introduzir, na explicação, variáveis de tipo político (ao focalizar as forças em disputa na cena política) e variáveis de tipo societal (ao enfatizar as relações de classe no interior do bloco no poder), contornando assim a tentação do economicismo.

De acordo com seu argumento, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva está consolidando o modelo neoliberal no Brasil sob a hegemonia do capital financeiro. Esse governo representa uma nova fase do ciclo de governos neoliberais no Brasil, que tiveram início no começo dos anos 90, e essa nova fase, agora em etapa superior, corresponde justamente a duas modificações : 1) a modificações na correlação de forças no interior do bloco no poder : graças à elevação da posição relativa da burguesia interna voltada para a exportação (que é afinal de contas de onde vem os dólares para remunerar o capital financeiro); e 2) a modificações nas relações entre o bloco no poder e as massas populares : sua base social são os dos trabalhadores pauperizados e politicamente desorganizados. Eu acrescentaria aliás que os resultados das eleições municipais em Curitiba, São Paulo e Porto Alegre confirmam essa suposição. O PT foi mais bem votado nas áreas muito pobres dessas cidades, justamente onde moram os clientes da « Bolsa-Família »[5].

O que explicaria a incorporação, pelo PT, do programa neoliberal ? Duas razões : de um lado, uma predisposição da direção do partido em estabelecer um compromisso com o modelo neoliberal, compromisso esse que favoreceria a estabilidade econômica e, por essa via, a estabilidade política, valor supremo para o grupo que está no governo (talvez segundo a equação : quanto menor o conflito, maior as chances de continuidade no poder). O PT, que nunca foi um partido anti-sistema, torna-se agora o partido do sistema. Trata-se assim de uma política de acomodação. Essa política de acomodação ao sistema – conduzida pela direção partidária – é complementada por meio de uma política de cooptação das lideranças dos movimentos populares, dos dirigentes sindicais e dos militantes do partido segundo o procedimento mais usual dos governos no Brasil : o empreguismo. Essa clientela tem então todo interesse na estabilidade, continuidade, no status quo, enfim.

Por outro lado, e esse me parece o argumento mais interessante, não há mais uma força social importante que desafie o modelo neoliberal, justamente porque as forças que teriam maior capacidade de organização e pressão sobre o governo – o sindicalismo dos bancários, dos petroleiros e dos metalúrgicos – estão se adequando ao modelo. Esses sindicatos assumem a lógica de entidades « prestadoras de serviços » aos seus associados e voltam as costas às reivindicações do Estado de bem-estar. Há, por assim dizer, uma política de aceitação das reformas neoliberais imaginando que as condições de « empregabilidade » dependam da revogação de institutos importantes da CLT.

Temos então o seguinte : política de acomodação da nova elite política ao sistema político; política de cooptação dos dirigentes partidários, sindicais e populares pelo governo e seu alojamento na estrutura burocrática do Estado; política de aceitação da elite sindical do modelo neoliberal. Eis aí o círculo de ferro que trava a superação do modelo. Eis aí as condições para a constituição de uma classe detentora (Poulantzas[6]), que monopoliza os altos postos da burocracia, mas que tem pouca ou nenhuma influência sobre o conteúdo e a direção da política econômica e social. Essa é uma diferença fundamental e que permite que se questione a análise de Francisco de Oliveira, especialmente sua proposição sobre o surgimento de uma « nova classe » (dominante?) no capitalismo brasileiro. Para Armando, « A situação brasileira atual não reproduz fielmente a situação designada pelo conceito de classe detentora – não estamos falando do conjunto da classe operária e os sindicalistas da Articulação Sindical estão muito longe de monopolizar os principais cargos do Executivo Federal. Porém, mesmo nessa versão limitada, a detenção de altos cargos no executivo federal pelos sindicalistas produz efeitos políticos e ideológicos importantes. A formação do governo Lula é vista, por esses trabalhadores, como uma situação inteiramente nova. Com esse governo, esses sindicalistas imaginam ter chegado ao poder ou, pelo menos, estar participando dele, e esperam do presidente sindicalista, não uma ruptura com o modelo capitalista neoliberal, mas um neoliberalismo com crescimento econômico e expansão do emprego »[7].

Gostaria justamente de discutir esse ponto da análise do Armando : a idéia de classe detentora. Colocaria, para começo de conversa, a pergunta central em outros termos: qual a relação da elite estatal (Miliband[8]) com a classe econômicamente dominante? Essa relação, penso eu, não pode ser simplesmente suposta (como a idéia de classe detentora sugere, sendo a ‘burocracia’, em sentido amplo, uma espécie de executora da política da fração hegemônica em razão dos limites estruturais do sistema), mas é uma relação que tem de ser determinada empiricamente, historicamente, concretamente.

Há aqui dois caminhos: ou se investiga a composição social da elite estatal (a fim de demonstrar as conexões sociais dessa elite com os “homens de negócios”, conexões essas que podem estar ligadas ao status, ao meio social, à educação, a disposições ideológicas comuns entre esse grupo e a classe dominante) ; ou se investiga, caminho que me parece mais produtivo, a configuração precisa do sistema estatal e o acesso a posições privilegiadas nesse sistema pelos “homens de negócios”.

Explico melhor: o ‘Estado’, como se sabe, não é uma entidade monolítica e homogênea mas um sistema institucional de aparelhos diferentes, que concentram níveis de poder também diferentes. Os ramos ou aparelhos do Estado mais importantes (isto é, onde se concentra a capacidade de decidir) são os centros de poder. A análise, a meu ver, teria então de começar pela determinação de quais são os centros de poder do Estado brasileiro – neste governo – para daí passar à determinação do perfil social não da elite estatal (da ‘classe detentora’) mas dos ocupantes dos centros de poder real, dessa ‘elite da elite’, que é sempre uma minoria.

Assim, eu sugeriria, a título polêmico, relativizar a idéia segundo a qual teria havido uma diluição social da alta burocracia do Estado em função do « empreguismo »; relativizar a idéia segundo a qual teria havido acesso a posições de elite do sistema estatal por indivíduos oriundos do ‘mundo do trabalho’ (cúpulas sindicais, dirigentes partidários de origem proletária etc.); portanto, relativizar a idéia do governo do PT como uma ‘república dos sindicalistas’, mas num sentido diferente do proposto pelo Armando. Penso que, na verdade, houve uma (re)colonização dos estratos superiores do ramo administrativo do sistema estatal pelos “homens de negócios”, ficando as posições políticas nas mãos da Articulação Sindical e do « Campo Majoritário ». Daí a importância decisiva da natureza da elite estatal para compreender a ação estatal. Contudo, considerando-se duas restrições : essa elite não é, no sentido próprio do termo, uma « classe governante »; há um núcleo ainda menor dessa elite que comanda o processo decisório. Essa « elite da elite » não está distribuída pelo Estado ; ela se concentra nos centros de poder do sistema estatal.

A pergunta então pode ser feita nos seguintes termos : onde e como estão representados no executivo político e nos demais ramos do sistema estatal os “homens de negócios”? Sugiro que se pense que há uma relação de continuidade e descontinuidade entre o governo Fernando Henrique e o governo Lula também nessa matéria.

Do ponto de vista da geografia política do sistema estatal, onde está a continuidade ? Na centralidade absoluta da tríade Banco Central-Conselho de Política Monetária-Ministério da Fazenda no sistema estatal e no seu monopólio sobre o processo decisório. Essa é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da hegemonia do capital que vive de juros.

E onde está a descontinuidade ? Na elevação da posição relativa, entre os centros de poder, dos ministérios ‘das exportações’ : do Ministério do Desenvolvimento Agrário e do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior. Essa é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito da mudança na posição relativa, no bloco de forças no poder, da grande burguesia comercial ligada ao agro-negócio.

Isso implica dizer que a presidência da República – formalmente o núcleo do sistema estatal – se constitui num centro político, mas não num centro decisório. A qualidade e a origem do seu inquilino tem, nesse caso, mais um efeito ideológico do que político prático. Tomemos um exemplo bastante circunstancial. Se nós ficarmos no mundo das milhares de siglas do Estado brasileiro, considere o seguinte fato: o presidente Geisel (1974-1979) criou, nos anos setenta, o Conselho de Desenvolvimento Econômico justamente para influir sobre o processo decisório; o presidente Lula parece ter criado o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, que nada mais é que uma câmara de notáveis, cuja função é «cumprir o papel de articulador entre governo e sociedade, para viabilização do processo de Concertação Nacional » (seja lá o que isso signifique de fato), para não influir no processo decisório.

Minha diferença então com a análise de Armando Boito é a seguinte: a idéia segundo a qual haveria uma classe detentora de posições no sistema estatal (simplificadamente: os ‘petistas’) que seria a executora da política da fração hegemônica (simplificadamente: os ‘banqueiros’) não nos reenvia para o mesmo determinismo estrutural, que agora ao invés de ser econômico é social? A idéia de classe detentora não enfatiza demais as restrições estruturais do sistema, disfarçando ou ocultando o lugar e o papel da elite da elite do Estado – e, justamente, sua função de mediação na reprodução?

* Trabalho apresentado no Seminário O neoliberalismo e suas reformas, na sessão “O neoliberalismo e o poder” (debate com Armando Boito Junior (UNICAMP) e Renato Monseff Perissinotto (UFPR)). Instituições promotoras: Associação dos Auditores Fiscais do Trabalho do Paraná/Sindicato dos Funcionários do Banco Central/Sindicato dos Servidores do IBGE-PR/Sindicato Nacional dos Auditores-FIscais da Receita Federal - DS Curitiba/Associação dos Professores da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 19 nov. 2004. Foi conservado o tom oral.

[1] Paulo Arantes, Zero à esquerda. São Paulo: Conrad, 2004, 312 p.; Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; O ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003, 150 p.; Armando Boito Jr., A hegemonia neoliberal no governo Lula. Crítica Marxista. São Paulo, n. 17, 2003; e A ilusão da elite sindical no paraíso. Entrevista à Gazeta Mercantil, 13 out. 2004, p. A-6.

[2] Fim de jogo. Entrevista à Folha de S. Paulo, 18 Jul. 2004, p. A12.

[3] Cronicamente Inviável. Drama. Brasil, 2000. 101 minutos. Direção: Sergio Bianchi; Roteiro: Gustavo Steinberg e Sergio Bianchi; Estúdio: Agravo Produções.

[4] Cf. Francisco de Oliveira, Crítica à razão dualista; O ornitorrinco, op. cit., p. 121-150.

[5] Em Curitiba, como em São Paulo, os números são eloqüentes. O candidato do PT (Angelo Vanhoni) só superou seu oponente do PSDB (Beto Richa) na zona sul da cidade, justamente a região mais ‘carente’. V. ‘Efeito feriadão’ : índice de abstenções é o maior desde 1992. Gazeta do Povo, 1 nov. 2004, p. 4.

[6] Cf. Nicos Poulantzas, Pouvoir politique et classes sociales. Paris : Maspero, 1968.

[7] A ilusão da elite sindical no paraíso. Entrevista à Gazeta Mercantil, 13 out. 2004, p. A-6.

[8] Cf. Ralph Miliband, The State in Capitalist Society. London: Weidenfeld and Nicolson, 1969.


Referência:
CODATO, Adriano Nervo. A elite estatal no governo dos trabalhadores. Revista Espaço Acadêmico, Maringá - PR, v. 44, 06 jan. 2005.