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1 de outubro de 2022
Uma Nova Classificação Ideológica dos Partidos Políticos Brasileiros
31 de dezembro de 2013
os porquês do voto obrigatório
The Big Picture]
A eficácia de votar
Gazeta do Povo, 31 dez. 2013
Luiz Domingos Costa
Segundo o filósofo da ciência Karl Popper, as Ciências Sociais têm como missão identificar as consequências não intencionais de ações humanas planejadas. Assim, muitas ações pensadas para a obtenção de certos objetivos caminham para resultados não esperados, que produzem estruturas e modos de ação que se perpetuam sistematicamente. Um exemplo é a própria democracia representativa. Quando tentamos retirar o poder das mãos dos príncipes, produzimos os políticos profissionais, eles próprios árduos lutadores pela manutenção do poder.
Essa concepção serve perfeitamente para avaliar um dos bons argumentos a favor da extinção do voto obrigatório. Há argumentos ruins. Especialmente um que domina a discussão no Brasil, consiste em desmerecer a qualidade dos eleitores “desinteressados”. O defeito seria obrigar pessoas sem vontade a tomar uma decisão eleitoral. Todavia, se ignora que o interesse por política é ele próprio produto do tipo contexto socioeconômico e político aos quais os indivíduos estão expostos.
Como qualquer preconceito, o argumento acima difunde o ódio contra os eleitores menos escolarizados, mas ignora evidências básicas. Não existe relação de causa e efeito entre o tipo do voto (se livre ou compulsório) e o nível de democracia e desenvolvimento de um país. Tanto o é que temos voto obrigatório em países apontados como desenvolvidos, tais como Austrália, Bélgica e partes da Suíça; e também temos voto facultativo em países subdesenvolvidos, como Zâmbia, Tailândia e Colômbia.
Por outro lado, o bom argumento a favor do voto facultativo se refere simplesmente à liberdade de escolher participar da comunidade política durante as eleições. Numa sociedade democrática e livre, nada mais justo que o voto seja um ato de livre arbítrio, sem coerção estatal. Temos um objetivo pleno de conotações positivas: aumentar a liberdade e diminuir a interferência estatal na vida individual.
Entretanto, pesquisas da Ciência Política mostram que o comparecimento eleitoral ostensivo – cujo maior propulsor é a obrigatoriedade do voto – produz maior “sentimento de eficácia política” na população como um todo. Esse sentimento é definido como a sensação individual de interferir nos rumos da comunidade, difundindo entre os cidadãos a noção de responsabilidade sobre o destino de sua sociedade. Embora haja outras formas de participação política possíveis, quanto mais pessoas votam de modo regular, mais se obtém sentimento de eficácia política, de que cada um pode contribuir para aprimorar as instituições que organizam e a sociedade em que vivem. Assim é que eleitores aprendem a premiar governos e a punir governos, porque entendem que sua decisão pode definir os passos seguintes de sua comunidade, na qual viverão seus descendentes.
Assim, chegamos a um resultado não intencional nocivo embutido no aumento da liberdade individual: quanto se libera a decisão ao eleitor de comparecer ou não, há a diminuição do contingente de votantes e, consequentemente, menor difusão do sentimento de eficácia política entre a população. Com isso, produziremos indivíduos cínicos para com a sua própria atividade política. “Já que eu não votei, não me importa se as instituições funcionam e se o governo é bom”. De uma intenção libertadora, pode-se produzir resultados não previstos e perversos. A rotinização da abstenção eleitoral (a recusa de participar) pode sabotar o aprendizado que o ato de votar produz no longo prazo.
Luiz Domingos Costa é professor de Ciência Política do Centro Universitário Uninter e pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política Brasileira (NUSP) da UFPR.
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17 de fevereiro de 2011
o que é o quociente eleitoral?
Rogério Schmitt
congresso em foco
O sistema eleitoral que utilizamos para a escolha dos nossos deputados (e vereadores) não é facilmente compreensível para os eleitores ou sequer para os próprios parlamentares. Em linguagem técnica, trata-se de um sistema de representação proporcional com listas abertas. Esse sistema existe para representar partidos, e não indivíduos.
Em tese, cada partido elegerá uma bancada diretamente proporcional à votação total recebida pela sigla. Uma legenda que tenha recebido 10% dos votos elegerá cerca de 10% dos deputados, e assim por diante. Se um partido ganhou o direito de eleger cinco deputados, serão empossados os cinco candidatos mais bem votados da sigla.
O instrumento matemático utilizado para determinar o número de deputados eleitos por cada partido é conhecido como “quociente eleitoral”. Esse número representa a cota mínima de votos necessária para se eleger um parlamentar. Num estado hipotético com 15 deputados (A) e com 1,5 milhão de votos válidos (B), o quociente eleitoral será de 100 mil votos (B dividido por A).
Assim, um partido que, por exemplo, tenha alcançado 500 mil votos nessa eleição imaginária terá atingido cinco vezes o quociente eleitoral. Portanto, essa sigla elegerá cinco candidatos. Os eleitos serão os cinco que tiverem obtido as melhores votações individuais.
O “quociente eleitoral” virou o vilão da vez. Ninguém parece entender para o que ele serve. Os adeptos mais ardorosos da reforma política atribuem ao quociente eleitoral a responsabilidade por todas as imperfeições do nosso sistema representativo.
Mas o quociente eleitoral é justamente o mecanismo que possibilita a conversão dos votos dos eleitores em cadeiras legislativas. É ele que assegura, na prática, que essa conversão seja feita de modo proporcional – como manda, aliás, o nosso texto constitucional.
Com um pouco de atenção, podemos facilmente perceber que o quociente eleitoral num sistema de representação proporcional é o equivalente funcional do “distrito” num sistema de representação majoritária. Ambos cumprem exatamente o mesmo papel. O distrito é uma circunscrição geograficamente definida antes das eleições. O quociente é uma espécie de distrito informal que resulta da apuração de votos espalhados por todo o estado.
Autores clássicos do século XIX como John Stuart Mill e o nosso José de Alencar corretamente denominavam os quocientes eleitorais como “distritos voluntários”. Por esse sistema, eleitores distribuídos em diferentes partes de um mesmo território poderiam espontaneamente combinar os seus votos para eleger deputados que compartilhassem das mesmas opiniões políticas. Na época, era uma idéia revolucionária. Creio que continua sendo extremamente atual e democrática.
O quociente eleitoral nada mais é, portanto, do que um distrito não territorial. Será que alguém ainda se anima a defender essa boa idéia?
fonte:
http://www.congressoemfoco.com.br/noticia.asp?cod_canal=14&cod_publicacao=36106
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22 de outubro de 2010
“Fui absolvido pelas urnas”
1999. José Bassit.
A sentença santificada das urnas
“Fui absolvido pelas urnas”. A frase, declamada pelos políticos que foram denunciados pelo Ministério Público por improbidade administrativa e que conseguiram gloriosamente reeleger-se no último dia 3, dá o que pensar. Apesar de todas as reportagens, depois de tantas matérias, logo quando se procurou incentivar o voto consciente e informado, por que isso acontece e acontece assim?
Comentaristas de noitadas eleitorais na TV, oráculos de revistas semanais e profetas de rádio jornal tendem a concordar em um ponto: o povo, infelizmente, ainda não sabe votar direito. Por mais que ensinemos. Ora se menciona o abominável incentivo do clientelismo (bolsa-família e outras pragas “assistencialistas”), ora se discute a inextinguível capacidade de manipulação dos políticos diante dos seus fiéis. A terminologia varia de veículo para veículo, mas o sistema de razões acaba sempre voltando ao mesmo ponto. Os reeleitos, por sua vez, acham essas lições irrelevantes. E, de boa ou má-fé, realmente acreditam que a voz do povo é a voz de Deus e da sua infinita capacidade de perdoar.
Para tentarmos entender esse fenômeno, eu arriscaria duas hipóteses. Hipóteses são, recordem-se, conjecturas, suposições, enfim, palpites sobre que fatores poderiam esclarecer um problema. A ordem em que os fatores explicativos são apresentados aqui não tem necessariamente a ver com a importância que eles assumiriam na realidade. Uma compreensão menos apressada e menos improvisada das causas da recondução de políticos que estiveram por semanas na pauta dos jornais exigiria, talvez, uma pesquisa caso a caso.
Em primeiro lugar é preciso considerar que os critérios de julgamento dos eleitores são muito variados. E que todos eles são igualmente legítimos (já que há a tentação em achar os nossos mais sábios, mais ponderados, mais racionais).
Pode-se avaliar um político por seus compromissos com causas, programas e ideias. Simplificando, esse seria o “voto ideológico”. Ele tem a ver com visões de mundo. Por comodidade incluímos aqui o “voto ético”, ou seja, aquele que se preocupa com a honestidade, a honradez do representante. Em geral, essas duas orientações aparecem juntas sob um rótulo um tanto pomposo: “voto consciente”. O voto consciente é orientado pelo que na literatura de Ciência Política chamamos de valores pós-materialistas: a preocupação com níveis de corrupção, a preservação do meio ambiente, os direitos das mulheres, a necessidade de aumentar o envolvimento dos cidadãos nas decisões do governo, etc. Esses valores alimentam uma taxa considerável de participação política e uma expressiva capacidade de reflexão e crítica por parte dos membros da comunidade. Eles são típicos de sociedades onde os níveis de desenvolvimento econômico são altos.
Por outro lado, pode-se avaliar um político por sua capacidade de trazer ou não benefícios públicos para sua base. Por oposição, esse seria o “voto pragmático”. O candidato é medido em função do seu potencial de realizações. Isso vale tanto para o seu desempenho no passado (“obras”) como para a expectativa depositada nas suas ações no futuro (“promessas”). A escolha eleitoral é guiada aqui por valores materialistas: renda, emprego, segurança, inflação, etc. Simplificando, este seria o voto mais racional. O eleitor é capaz de distinguir seus interesses e, em razão disso, recomendar o candidato que pareça bancar melhor seus objetivos concretos: uma escola, uma creche, um ônibus escolar.
Pois bem. Pesquisa recente do cientista político Emerson Cervi, da UFPR, demonstrou que a taxa de sucesso na reeleição de um político da Assembleia Legislativa do Paraná (ALEP) está diretamente ligada ao seu comprometimento em obter recursos junto ao executivo estadual para realizar políticas no seu reduto eleitoral. Quanto mais localizada sua produção legislativa, maiores seus percentuais de votos regionalizados e, assim, mais seguras são as chances de ser reconduzido ao cargo. (O fato de o candidato a deputado estadual mais votado ter sido um dos personagens do drama de escândalos da ALEP coloca não um, mas dois problemas a serem investigados: por que ele foi tão bem votado; e por que, apesar das denúncias, ele foi tão bem votado).
A segunda hipótese que eu formularia para entender o baixo impacto eleitoral da série de reportagens da RPC/Gazeta do Povo sobre os “diários secretos” com nomeações de funcionários fantasmas na Assembleia Legislativa, e mesmo da repercussão muito localizada (no tempo e no espaço) do movimento “O Paraná que Queremos” contra o esquema de desvio de recursos envolvendo diretores e deputados, tem a ver com a confusão entre oferta de informação e habilidade para processá-la.
Salvo engano, nunca antes na história deste estado uma investigação jornalística foi tão insistente e tão eficiente. Tão profissional e tão pedagógica. É natural então que os setorialistas de política se perguntem o que deu errado (ou melhor, porque não teve enfim os resultados que se esperava).
É preciso atentar que o percentual bastante alto de oferta de informação política esbarra em duas dificuldades. O custo para ter acesso a essa informação e o aparato indispensável para entendê-la, ou o que o cientista político A. Downs chama de “conhecimento contextual” (que não tem nada a ver com cultura formal).
Tomar decisões eficientes (no caso, votar “bem”) não é uma questão de vontade. É preciso estar informado, isto é, possuir dados atualizados sobre os fatores que influenciam determinados processos, casos, acontecimentos; e é preciso pôr essa informação no seu devido contexto, isto é, interpretá-la. Essa interpretação está ligada à capacidade do eleitor em estabelecer relações causais (“isso determina aquilo”). Informação sem conhecimento contextual é praticamente inútil – tanto é que posso ser muito bem informado sem entender realmente nada.
Tanto a obtenção de conhecimento contextual quanto de informação objetiva tem um custo bastante elevado em termos econômicos e em termos de tempo despendido (é preciso ter tempo para escrever este artigo e tempo para lê-lo). Por isso eles não estão disponíveis de maneira idêntica a todos. Essa assimetria faz com que a capacidade de julgar politicamente os políticos fique comprometida. (Se eles são culpados ou não é uma questão da Justiça).
Conclusão: possivelmente as duas explicações contribuem para perceber porque os personagens comprometidos com os escândalos da Assembleia saíram politicamente intactos das últimas eleições. Falta determinar o peso de cada uma dessas explicações ou, caso queira, matutar outras tantas hipóteses para resolver esse problema. Só assim, creio, podemos passar do “absolver” para o “entender”.
Adriano Codato é professor de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná.
[versão editada
aqui]
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6 de outubro de 2010
Ainda o racismo de classe e as eleições
Vale do Jequitinhonha, MG
Marco Mendes.
Dois pesos...
Maria Rita Kehl
O Estado de S.Paulo
2 out. 2010
Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apoia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela Presidência da República. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.
Se o povão das chamadas classes D e E - os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil - tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política. Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa-esmola.
Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por "uma prima" do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da Bolsa-Família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés de chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela Bolsa-Família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. R$ 200 é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.
Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso. Passava-se fome, na certa, como no assustador Garapa, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias. Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A Bolsa-Família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da "esmolinha" é político e revela consciência de classe recém-adquirida.
O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da Bolsa-Família, que apesar de modesta, reduziu de 12% para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem ideia de quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de R$ 200? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou esse efeito de "acumulação primitiva de democracia".
Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do País. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.
Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do País, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática, parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.
28 de setembro de 2010
A intoxicação mediática na batalha eleitoral
São Paulo, SP.
João Wainer.
De caso pensado (porque bobos não são), os donos dos jornais e os plumitivos a seu serviço confundem o poder de imprimir com a liberdade de expressão. Nos jornais em que eles mandam, só se escreve o que eles deixam, só se expressa o que eles permitem. As “notícias” que divulgam são tão manipuladas quanto a escolha de seus articulistas e colunistas. A maioria destes defende compactamente, alguns agressivamente, o ponto de vista e os interesses da direita liberal/pró-imperialista. Como porém a importância de um jornal está diretamente relacionada com o número de seus leitores, os magnatas da mediática “abrem espaço” para opiniões diferentes, persuadindo os ingênuos de que são “pluralistas”. Entre os colaboradores mais ou menos (em geral mais para menos do que para mais) “alternativos” figuram dois políticos defensores do verde: F. Gabeira e Marina Silva, articulistas da Folha dita branda.
Mas o apoio unânime que Marina tem recebido por parte do cartel mediático não há de ser principalmente motivado pelo desejo de proteger os micos-leões dourados, lobos-guará e outras espécies em extinção. Mesmo porque ela é, como dizem os gringos, “only the second best” da direita bicéfala (PSDEMB). O problema é que o candidato desta, “the first best”, continua sem fôlego para subir a serra de um eventual 2º turno; a última esperança da direita é que a candidata da “onda verde” arranque uns pontinhos suficientes para deixar Dilma aquém de 50,01% dos votos válidos, impedindo-a de ser eleita logo no primeiro turno.
Explica-se assim o caráter crescentemente provocador, em alguns casos no limite da histeria, assumido pela campanha do bloco neoliberal. O senador ultra-reacionário Borrausen (ou coisa parecida), que há alguns anos atrás queria “acabar com a raça do PT”, agora mandou Lula “lavar a boca”, num ato evidente de projeção psicopatológica, já que é ele o especialista em vomitar impropérios. Mas o ataque mais compacto vem da tropa de choque mediática. Criptofascistas, “democratas” tartufos, bonecos de mola da direita cavernícola, às ordens dos donos da Veja, da Folha, do Estadão, da Rede Globo et caterva, aceleram a escalada das baixarias e intensificam o fustigamento da candidata apoiada por Lula.
Na campanha presidencial de 2002, Serra apelou sem sucesso para o argumento do medo: se Lula vencesse, voltaria a hiperinflação e com ela o caos econômico e as convulsões sociais. Lula venceu, sem que nenhuma das previsões catastróficas dos urubus da direita tenha se verificado. Em 2010, o candidato da reação neoliberal começou a campanha evitando recorrer ao mesmo método. Mas diante da derrota iminente, ele e sua tropa, com forte apoio dos profissionais da intoxicação mediática, partiram para o ataque histérico. Dez dias antes das eleições de 3 de outubro, esses ventríloquos do medo promoveram duas iniciativas, uma no Rio de Janeiro, outra em São Paulo, com objetivos sombriamente convergentes.
No Rio, o Clube Militar, “preocupado com o panorama político brasileiro”, deu um rosnado de alerta, promovendo um “Painel” com tema sugestivo: "A democracia ameaçada: restrições à liberdade de expressão". Em geral esse Clube se manifesta para defender a impunidade aos torturadores e elogiar o golpe de 1964. Teria mudado de atitude? Infelizmente, não. O ele que pretende é atribuir ao "Foro de São Paulo" a “intenção” de restringir a liberdade de expressão nos países latino-americanos, inclusive no nosso”. Os “processos de intenção” têm atrás de si uma longa e tenebrosa história, boa parte da qual nos porões da ditadura. Quanto ao fundo, não surpreende que os militares reacionários chamem liberdade de expressão o monopólio exercido sobre os grandes meios de comunicação pelos magnatas da desinformação. Afinal, não são ingratos: não esqueceram do decisivo apoio que esses magnatas prestaram ao golpe de 1964.
Em São Paulo, um pelotão composto, segundo o Estadão (que lhes esposou a causa, se é que não a estimulou) de "juristas, acadêmicos e artistas, além de políticos tucanos", mas integrado também por jornalistas e outros intelectuais da direita, lançou um Manifesto em Defesa da Democracia, que se abre em tom grandiloquente: “Em uma democracia, nenhum dos Poderes é soberano. Soberana é a Constituição, pois é ela quem dá corpo e alma à soberania do povo”. A primeira frase chafurda no óbvio. A segunda apenas exibe a mesquinharia liberal do Manifesto. Contrariamente ao que pretende a direita (tanto a pós-moderna quanto a cavernícola), é o povo que é corpo e “alma” da Constituição. Ele é a fonte de todos os poderes, inclusive o poder constituinte originário, o mais fundamental de todos, que é anterior a toda e qualquer instituição. Consta que um dos manifestantes, o jurista Miguel Reale Júnior, chegou a afirmar que "Lula age como um fascista". Que ironia! Nos anos 1930, Miguel Reale Sênior foi um dos principais teóricos do integralismo, versão brasileira do fascismo. Foi nomeado em 1941, em pleno Estado Novo, sob protesto dos estudantes anti-fascistas, catedrático de Filosofia do Direito da mesma Faculdade em que se reuniram os “democratas” do medo.
É exatamente no momento em que o povo se prepara para exercer pelo sufrágio universal a autoridade suprema que lhe cabe sobre a coisa pública que o bloco militar/mediático/liberal faz ressoar as trombetas do Apocalipse. Comprova-se que a única ameaça à democracia provém dos que se consideram ameaçados pelo veredicto das urnas.
* Professor universitário, pesquisador do marxismo e analista político.
fonte: portal vermelho
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26 de setembro de 2010
Tiririca e outras pragas
Campo Mourão, PR.
Orlando Azevedo.
A esta altura do campeonato, acho que ninguém ignora mais a candidatura do palhaço Tiririca pelo indescritível PR de São Paulo a deputado federal. A sequência de suas inserções no Horário Eleitoral, editadas juntas no YouTube, já foram acessadas mais de 4 milhões de vezes, se o contador está correto. Tiririca tornou-se o nome mais lembrado na pesquisa espontânea para deputado federal e as projeções são que ele seja o mais ou um dos mais votados em 3 de outubro.
Bastou isso, somado às declarações que Tiririca faz nos spots de menos de 30 segundos, para provocar a ira dos bem-pensantes e o escândalo dos que acham que só os bacharéis têm o direito legítimo à política. Para quem gostaria de imaginar o mundo político como a extensão de um clube aristocrático de especialistas em leis, nada mais insolente. Mesmo o Ministério Público entrou no picadeiro: processou o comediante por falsidade ideológica.
Apresentar-se fantasiado de palhaço de circo tem o efeito grotesco e constrangedor das piadas sem graça. É, dizem, uma extravagância que uma democracia compenetrada não pode aturar. E suas frases são, de fato, desconcertantes. “Por isso que eu quero ser deputado federal: para ajudar os mais necessitado (sic), inclusive a minha família”. “O que é que faz um deputado federal?... Na realidade, eu não sei. Mas vote em mim, que eu te conto”. E o clássico: “Vote no Tiririca. Pior do que tá não fica”. [veja os vídeos aqui]
A opção eleitoral por Tiririca deve repetir o fenômeno usual do voto contra a política institucional e contra os políticos profissionais. Essa seria, paradoxalmente, a opção mais politizada: contra a degeneração da política, voto conscientemente na figura exemplar do político degenerado. Há também a opção debochada pela anti-política: a política institucional chegou a um ponto que só fazendo graça dela. Afinal, são todos uns palhaços, só que sem a graça dos profissionais do ramo.
Penso, entretanto, que esse caso merece ser lido em outro registro. Por que Francisco Everardo Oliveira Silva não poderia apresentar-se aos eleitores? Em nome de que critérios requintados eu posso ter mais direito que qualquer um? A pretensão de Tiririca é legítima como qualquer outra. Insistir nesse ponto é chover no molhado. Sua candidatura exemplifica, pelo lado mais caricatural e grosseiro, um fenômeno corrente e considerável: a crescente popularização da classe política brasileira. Nunca antes na história deste país o recrutamento político foi tão aberto, em que pese o custo indecoroso das campanhas eleitorais. Hoje mais do que nunca é usual verificar a presença, nos legislativos, de professores de ensino médio, sindicalistas, líderes de associações populares, etc. Isso não é nem bom nem mau em si mesmo. Mas é um índice de mudanças importantes na estrutura de oportunidades políticas no Brasil e da consolidação de uma democracia de massas onde capital (político, cultural) herdado conta, mas não mais como antes. Para escândalo daqueles que gostariam que o mercado da política fosse restrito aos proprietários e aos procuradores legítimos da cultura legítima.
Isso posto, sugiro que se olhe para o fenômeno Tiririca de outro modo. Sua encenação como (futuro) político profissional é mais útil e mais didática do que parece a primeira vista. Ela tem a vantagem de revelar, para aqueles que estão fora do jogo (nós), as regras implícitas do jogo (político), que não podem ser ditas, sob pena de colocar a legitimidade do jogo em risco e a credibilidade dos jogadores (os profissionais da política) em xeque. Isso só é possível de ser feito por alguém que não está (ainda) comprometido com a santidade das técnicas de ação e expressão do campo político. E que pode, por isso mesmo, zombar delas.
Esse é o efeito prático e indesejável da candidatura de Tiririca. Não o seu objetivo. Sua inscrição no PR obedece à velha tática do gênero: uma figura popular ou popularesca que, graças à sua notoriedade, traga votos para a legenda e/ou para a coligação e puxe assim para cima outros candidatos da lista. A receita básica da exploração oportunista das oportunidades que a legislação faculta. Ora, é precisamente como puxador de votos que esse arremedo de candidato pode revelar – positivamente – uma das leis menos explícitas e mais rocambolescas do sistema eleitoral nacional. Mas há mais, já que esse é o exemplo mais óbvio desse jogo oportunista entre profissionais e profanos.
Dizer com todas as letras que uma das utilidades práticas do cargo de deputado federal é ajudar a si e à própria família não é o cúmulo da cara de pau e da sinceridade fingida? Expor a própria ignorância sobre o que afinal faz um deputado não é traduzir, da maneira mais gozadora possível, o caráter distante e misterioso do mundo político, que muitas vezes só faz sentido para quem vive nele? Um trambiqueiro processado protestando contra o trambique da política não é uma ironia imperdível diante daqueles profissionais que fazem, a sério, exatamente o mesmo? Mas talvez o momento mais sensacional desses spots seja aquele em que Tiririca começa uma daquelas arengas enfeitadas sobre “o Brasil” para terminar num tatibitate incompreensível e sem sentido. Fazer troça da complexidade da linguagem dos políticos denunciando o caráter fátuo desses discursos não vale como crítica involuntária ao palavrório douto daqueles que gostariam que os víssemos como mais sérios e mais sinceros do que de fato são? O incômodo maior diante da pantomima encenada por Tiririca é que sabemos que ele está representando, ao contrário dos outros, onde a produção profissional dos discursos tende a apagar o caráter dissimulado (e por isso mesmo mais eficaz) da representação. Quanto mais mequetrefe o teatro, menos crível ele é.
Votar em Tiririca não é um protesto. É uma demissão voluntária das próprias responsabilidades. Escandalizar-se com o fato dele poder apresentar-se ao eleitor é, além de uma mania elitista, falta de percepção sobre o que, mesmo de maneira impensada, pode estar em jogo.
13 de junho de 2010
Voto econômico nas eleições de 2010
Robert W Kelley. Life]
Autor(es): Rafael Cortez e Bernardo Wjuniski
Valor Econômico, 7/6/2010
Resultados econômicos desagregados por região oferecem evidências da janela de oportunidades à disposição da candidatura governista.
Há duas variáveis que explicam o potencial da candidatura governista nas eleições presidenciais. A primeira variável é de natureza política e decorre da capacidade de transferência de votos do presidente Lula e da construção de palanques estaduais fortes para mobilizar o nome de Dilma Rousseff por todo País. O segundo pilar decorre do voto econômico. Eleitores tendem a premiar governantes que aumentaram seu bem-estar individual.
O efeito destas duas variáveis não se dá de forma homogênea no Brasil, mas é filtrado pelas fortes diferenças entre as regiões. A seguinte análise tem como objeto discutir as possibilidades eleitorais de Dilma em função dos resultados econômicos discriminados por região. A ideia é identificar janelas de oportunidades para o crescimento da candidatura governista.
As pesquisas eleitorais mais recentes apontam para a influência destas variáveis. O último levantamento do Datafolha mostrou que, embora a candidatura Serra tenha crescido, a comparação com o início dos levantamentos é favorável à candidata do governo. Nossa perspectiva aponta que o resultado final da corrida presidencial será determinado pela capacidade de Dilma em crescer nas regiões Sul e Sudeste. As duas regiões respondem por 58,4% do eleitorado. Se conseguir se aproximar do desempenho de Lula em 2006, Dilma ganha o Planalto.
Do ponto de vista geográfico, as eleições de 2010 devem mostrar a mesma dinâmica estabelecida nas eleições anteriores: controle governista nas regiões Nordeste e Norte contra domínio da oposição na região Sul e Sudeste. A última pesquisa Datafolha mostra que Dilma já ultrapassou Serra na região Nordeste (44% versus 33%), mas ainda tem um fraco desempenho nas regiões Sudeste (-7%) e no Sul (-3%). O crescimento de Dilma se explica pelo comportamento nestas duas regiões. Dilma ganhou 7 pontos no Sudeste e 9 pontos no Sul.
Os dados referentes à massa salarial dos trabalhadores deixam esse cenário ainda mais evidente. Este indicador é importante, pois mede de forma acurada o bem-estar individual. No primeiro mandato do governo Lula, a massa salarial nas regiões Sul e Sudeste cresceu bem abaixo da outras regiões, sugerindo que, de fato, o aumento de renda das regiões Norte e Nordeste se deu essencialmente através das políticas de transferência. Entretanto, no segundo governo, com a retomada muito mais expressiva do crescimento econômico, a forte criação de empregos nas regiões Sul e Sudeste permitiu um forte crescimento da massa, elevando significativamente a média nacional. Esse cenário indica que, apesar da desvantagem atual de Dilma nessas regiões, o discurso baseado na economia tem um apelo maior nestas regiões, quando comparado à eleição anterior. O eleitor não consegue entender que os resultados econômicos não são propriedades de determinado governo, mas resultado de mudanças institucionais de longo prazo. Desta forma, há janela de oportunidades eleitorais para a candidatura governista.
A importância dessa janela para a candidatura governista fica ainda mais clara quando comparados os mesmos resultados com os obtidos nos governos do PSDB. Na primeira eleição de Lula, o fraco desempenho tanto da massa salarial nas regiões Sul e Sudeste facilitaram o discurso de oposição por parte do petista. O peso de variáveis econômicas não foi suficiente para minimizar o desgaste fruto do mensalão. Os resultados do segundo governo Lula dão base para o voto econômico destas regiões. No segundo mandato, entretanto, o resultado econômico nessas regiões foi significativamente pior, o que também contribui para a derrota do partido no pleito presidencial. Nessa linha, os números do segundo governo Lula sugerem que a candidatura governista tem uma situação bem mais favorável do que possuía FHC no final de seu segundo mandado, novamente indicando que o espaço para crescimento de Dilma é mais significativo.
Essa análise não pressupõe um determinismo econômico. Estes resultados precisam ser explorados politicamente para transformar o discurso econômico em votos. O PSDB tem um papel ativo na blindagem deste eleitorado por meio das estratégias políticas. O partido comanda três Estados da região (São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul) e ainda conta com palanques importantes em Santa Catarina e no Paraná. Há, ainda, o peso do componente pessoal na disputa. Dilma precisa se mostrar uma candidata capaz de garantir a manutenção e a continuidade dessas conquistas, e sua capacidade política de realizar essa sinalização será sua maior dificuldade ao longo da campanha.
fonte: https://conteudoclippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2010/6/7/voto-economico-nas-eleicoes-de-2010
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18 de janeiro de 2010
A política no Haiti
São Paulo. Júlio Bittencourt.
Folha de S. Paulo, 17 jan. 2010
FOLHA - Como avalia a situação do Haiti antes do terremoto e o que pode mudar agora?
ROBERT FATTON JR. - A situação política havia se estabilizado, a violência havia diminuído, mas a situação como um todo ainda era muito precária. Eleições estavam programadas para este ano [legislativas em fevereiro e presidencial em novembro], mas não imagino que possam ser realizadas. O terremoto pode ser um desastre completo ou uma oportunidade para mudar algo. O fato de que todos os haitianos estão diante da catástrofe pode levar a um contrato social diferente, numa sociedade muito dividida. Do seu lado, a comunidade internacional precisa mudar algumas políticas, que em última instância limitaram a capacidade do Estado haitiano. Hoje, nas operações de socorro, você pode ver que não há instituições nacionais, só ONGs. Espero também que a ajuda internacional dê mais ênfase à área rural. Embora ela não tenha sido tão afetada pelo tremor, 60% da população ainda vive lá. O fato de quase 3 milhões de pessoas se aglomerarem em Porto Príncipe em condições terríveis é consequência de não haver política agrícola.
FOLHA - Uma das críticas à política dos EUA para o Haiti é a de que, quando Jean-Bertrand Aristide foi reconduzido à Presidência com apoio militar americano (1994), uma das condições foi que ele implantasse uma política econômica liberalizante. Isso teria dizimado a agricultura. É uma crítica correta?
FATTON - Isso é absolutamente verdade. Mesmo antes da volta de Aristide, os militares começaram a abrir a economia, em particular para o arroz americano. Esse arroz, que é subsidiado, era vendido muito mais barato do que a produção local, que entrou em declínio. Quando Aristide voltou, ele assinou um acordo com o FMI e o Banco Mundial consolidando o projeto neoliberal. A abertura teve um impacto devastador na produção de comida e nas pequenas indústrias que produziam para o mercado interno. A estratégia continua sendo a mesma, voltada para a criação de núcleos urbanos de confecção de produtos baratos para exportação aos EUA, principalmente têxteis.
FOLHA - Como as maquiladoras mexicanas?
FATTON - É o modelo. Na minha visão, não funciona. Já foi tentado sob [o ditador] Jean-Claude Duvalier [1971-1985] e levou a uma catástrofe. Não é que o Haiti não tenha que ter uma base exportadora, mas ela não deve ser o motor do desenvolvimento do país. Se esse rumo for mantido, haverá pequenos encraves, com trabalhadores mal pagos, e o campo continuará negligenciado.
FOLHA - O Haiti é dependente de ajuda internacional. Por que esse dinheiro não produziu resultados na redução da pobreza, por exemplo?
FATTON - Se você olhar os últimos 15, 20 anos, muito dinheiro foi enviado ao Haiti, mas boa parte dele ligado a companhias americanas. Há um círculo vicioso, porque o dinheiro volta para os EUA. Em meados dos anos 90, os EUA davam anualmente US$ 3 bilhões ao Haiti, mas uma parte significativa ia para os soldados americanos que estavam lá, para os assessores americanos e para a compra de produtos americanos. As doações também evitavam o Estado e eram dadas a instituições não governamentais, porque a premissa era a de que o governo era corrupto e ineficaz. O problema é que ONGs em geral têm base local, e suas atividades não são filtradas através de um programa nacional abrangente. E, apesar de haver ONGs que prestam ótimos serviços a pessoas pobres, há outras que são igualmente corruptas. E não se sabe o quanto do que recebem vai de fato para ajuda ao desenvolvimento.
FOLHA - A debilidade do Estado é fenômeno recente no Haiti ou sempre foi assim?
FATTON - A ideia de um Estado fraco é complicada. Sob os Duvalier [1957-1985] havia um Estado incompetente e corrupto, mas forte na repressão. Após a queda da ditadura, houve uma série de crises, com eleições fracassadas e golpes, que minaram o Estado por dentro. Essa tendência se agravou sob a orientação dos principais doadores, que viam o Estado como um problema. Agora, se a comunidade internacional tem intenções sérias de reconstruir o país, deve contribuir para a implantação de um serviço público efetivo. Do contrário, haverá alívio, mas não desenvolvimento.
FOLHA - Como avalia o trabalho da Minustah, a força de paz da ONU?
FATTON - Se não fosse pela Minustah, o país estaria sob caos ainda maior. Goste-se ou não, ela é elemento essencial da situação atual. Foi criticada às vezes por ser muito violenta, outras vezes por não ser violenta o suficiente. Não é surpreendente que os haitianos tenham uma relação de amor e ódio com a Minustah. Não gostamos de tropas estrangeiras em nosso solo, mas sabemos que não podemos ficar sem ela. O ponto-chave é como fazer a transição da Minustah para uma força local.
FOLHA - Países como o Brasil, com posição de comando na Minustah, podem influenciar políticas de instituições multilaterais para o Haiti?
FATTON - Tenho a esperança de que possam mover os EUA para uma orientação diferente da política econômica prescrita para o Haiti. Se têm o poder para fazer isso, é outra questão. A Minustah é em grande parte um assunto latino-americano, com o Brasil no centro. Os EUA gostam disso, porque não precisavam mandar seus próprios soldados. Isso dá peso ao Brasil. Mas, pelo discurso de [Barack] Obama [na última quinta-feira], haverá de novo um enorme envolvimento americano no Haiti.
FOLHA - O senhor disse que o terremoto poderia produzir um novo contrato social no Haiti. Por quê?
FATTON - O terremoto afetou a todos, pobres e ricos. Claro que muitos dos ricos têm mais condições de reagir à catástrofe, mas há outros que perderam tudo. Acho que isso pode forçar a minoria rica a ver a situação do país com olhos diferentes, com mais simpatia pelos haitianos comuns. Claro, a experiência histórica não recomenda otimismo, mas a catástrofe é tão grande que talvez possa mudar percepções e a maneira como as pessoas se tratam.
FOLHA - A clivagem entre pobres e ricos é a principal na sociedade haitiana?
FATTON - Certamente, é a chave. Estamos falando de 5% a 10% da população com algum recurso, 5% que vão muito bem e 70%, 80% que não têm nada. Temos divisões de cor, mas elas são menores se comparadas à clivagem entre pobres e ricos.
FOLHA - Mas os ricos ainda controlam o sistema político?
FATTON - Agora não há mais sistema político, não há governo. A comunidade internacional está no comando, o aeroporto está sob controle dos americanos. Antes do terremoto, apesar de o governo ter algumas tendências populistas, a situação estava claramente nas mãos da minoria rica.
FOLHA - Grupos ligados a Aristide haviam sido excluídos das eleições deste ano. Como vê isso?
FATTON - Acho que o presidente [René] Préval conseguiu dividir o Lavalas [movimento de Aristide] de tal forma que ele não pode mais mobilizar grandes segmentos da população. Aristide continua sendo popular, mas o movimento foi dizimado. Ao mesmo tempo, é improvável que as principais potências, EUA e França, aceitem a volta de Aristide.
FOLHA - E isso o senhor considera positivo ou negativo?
FATTON - Difícil dizer. Aristide é uma figura muito carismática, mas ao mesmo tempo há hoje uma forte oposição a ele, que não vem só da elite, mas de setores que costumavam apoiá-lo. Seu poder diminuiu. Por outro lado, o terremoto pode dar a ele uma chance de se reafirmar, o que vai depender do resultado da operação de socorro e do que virá depois dela. Se a operação for mal administrada, pode haver uma reemergência do Lavalas, se não necessariamente da figura de Aristide.
FOLHA - Se Préval foi tão hábil em dividir o Lavalas, por que seu governo é instável, já no terceiro premiê?
FATTON - O governo se tornou instável depois dos distúrbios contra o aumento do preço dos alimentos [em março de 2008]. Foi um momento de crise. Mas não acho que você deva olhar para as trocas de primeiro-ministro como sintoma de instabilidade. Elas geralmente significam apenas transferir pessoas para novos cargos, mas não mudam a estrutura.
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21 de dezembro de 2009
Como funciona o parlamento brasileiro?
A discussão política no Brasil, em especial quando trata dos legislativos, tem se fixado num único (e importante) problema: a corrupção.
Se nós não quisermos permanecer prisioneiros desse assunto, e das soluções que não solucionam nada, já que ao apostar em saídas milagrosas (políticos virtuosos), mágicas (o “amadurecimento da democracia”) ou simplesmente mistificadoras (a reforma política salvadora) só contornam o problema, um primeiro passo é saber como as coisas funcionam. Será que já sabemos o suficiente?
Uma forma de entender o comportamento político dos parlamentares é através do modelo distributivista. Conforme essa visão, a ação dos políticos de carreira seria sempre clientelista, guiada pela lógica “meramente” eleitoral.
Se o objetivo essencial de um político é reeleger-se, então suas preferências, atitudes e comportamentos só serão inteligíveis a partir desse único objetivo. Para atingi-lo, o parlamentar deve apoiar decisões do governo e lutar para trazer recursos que favoreçam sua base eleitoral, que pode ser uma cidade, uma região ou uma clientela específica. O foco principal da disputa política é o Orçamento. O trabalho legislativo consiste, assim, em pendurar o máximo possível de emendas “clientelistas” na peça orçamentária. Como essa prática nunca é tranquila, pois todos querem a mesma coisa para seus respectivos redutos, as relações entre os congressistas só podem se dar em função de barganhas recíprocas, de trocas.
Esse tipo de explicação supõe que a unidade de análise sejam os interesses egoístas dos parlamentares, que os eleitores sejam bastante pragmáticos na hora de decidir em quem votar (e não “ideológicos”), e que, por tudo isso, os partidos fiquem sempre em segundo plano nos cálculos políticos de ambos os agentes.
As implicações desse modo de ver as coisas estão claras. O legislativo seria a fonte de políticas de tipo distributivo, a “conexão eleitoral” (fórmula do cientista político norte-americano David Mayhew que designa relação entre os representantes e o eleitorado) seria o fator determinante na elaboração de políticas de governo, e, considerando a separação do trabalho entre Parlamento e Presidência, a tomada de decisões políticas estaria convenientemente dividida e equilibrada.
A conexão eleitoral só funcionará, todavia, se o parlamentar mantiver-se sempre em evidência, falando em nome das bases e cultivando uma relação estreita com elas; se ele conseguir projeção institucional, ocupando cargos importantes no Legislativo, se tomar posições claras em assuntos polêmicos, mas sempre de acordo com as opiniões do “seu” eleitorado; e se, e isso é o fundamental, conseguir levar o crédito pela liberação de recursos para obras na “sua” comunidade.
Assim resumido, esse modelo parece explicar melhor o Congresso norte-americano que o Parlamento brasileiro. Num regime onde o voto é distrital, é natural que deputados procurem levar benefícios (“obras”) para suas respectivas circunscrições.
No entanto, alguns analistas têm apresentado quatro argumentos a favor da validade desse tipo de explicação para compreender o comportamento dos congressistas do Brasil.
O sistema eleitoral (proporcional de lista aberta), porque incentiva a personalização do voto, favorece um comportamento muito individualista dos parlamentares. Além disso, examinando-se o padrão de votos nos candidatos, o que se vê é a criação de pequenos distritos informais. O candidato vitorioso tende a ter uma votação concentrada em determinados municípios (e não dispersa pelo estado todo) e, nos municípios em que ele é o mais votado, ele vence seus concorrentes com grande maioria. Ele domina o colégio eleitoral. Uma vez no Parlamento, o deputado pode seguir cultivando sua clientela, pois as emendas individuais ao Orçamento permitem o sucesso quase indefinido dessa estratégia. Para completar, as relações Executivo-Legislativo legitimam e ampliam essa prática, já que os deputados podem trocar apoio ao governo pela execução das suas propostas.
Por outro lado, quando se analisam empiricamente os dados disponíveis, as coisas não são tão certas assim. É o que estipula o “modelo partidário”.
Primeiro: as taxas de reeleição não são particularmente altas. Pouco mais de 50% voltam à Câmara a cada legislatura. Examinando-se a geografia eleitoral, o que se constata é que metade dos deputados que tentam uma cadeira no parlamento federal não tem uma votação distritalizada (concentrada e dominante). Para completar, é difícil determinar, num pleito, quantos votos são pessoais, quantos votos são partidários, em função do sistema de coeficiente eleitoral.
Segundo: a Carta de 1988 deu muito poder ao Executivo em matéria orçamentária. Estima-se que o peso das emendas individuais ao Orçamento que são efetivamente executadas seja muito baixo, em torno de 20% do total. Também não se encontrou ainda dados suficientes que corroborem a correlação entre a taxa de apoio ao Executivo e a execução de emendas, embora se possa supor que ela não deve ser desprezível.
Terceiro: o comportamento dos parlamentares parece, segundo vários estudos, determinado mais pela organização interna da Câmara dos Deputados (isto é, seu sistema de regras) do que por qualquer outra coisa. O expediente de votações simbólicas comandadas pelos líderes dos partidos (e não por deputado), o poder dos caciques para indicar quem pode fazer parte das comissões (condição essencial para aparecer politicamente), tudo impede que o parlamentar avulso tenha algum poder de fato. Além disso, não se acumula muito poder graças à ocupação de cargos nas comissões, e sim cultivando redes de influência junto à burocracia dos ministérios.
Por último, e ligado a isso, dado que o Executivo é o centro de gravidade do sistema político, o objetivo dos parlamentares brasileiros dificilmente é reeleger-se, mas eleger-se para algum cargo executivo, uma vez que o gasto efetivo capaz de agradar eleitores é decidido nesse âmbito.
Conclusão: como a Ciência Política não dispõe ainda de um modelo seguro que permita dizer como o parlamento nacional funciona, nem prever as estratégias e as ações dos legisladores, é muito difícil propor (e por em prática) instrumentos de fiscalização e controle sobre os políticos. Mas nem por isso devemos desistir de estudá-los e de comandá-los.
A política frequentemente é menos simples do que parece, ou do que nós gostaríamos que ela fosse.
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10 de maio de 2009
O voto obrigatório como benefício coletivo

http://www.traumambiente.de]
Luiz Domingos Costa
A defesa do voto voluntário ou facultativo pode apresentar uma gama variada de argumentos. Entretanto, cabe destacar os seguintes como forma de sintetizar boa parte do corpo de idéias embutidas nesta plataforma de certos grupos e eleitores:
1. Trata-se de excessiva interferência do Estado na vida individual, já que o voto, sendo um direito de cada cidadão, deve ser abdicado por aqueles que não estejam com disposição em de exercê-lo. Não deve ser, por esta visão, uma obrigação formal perante a lei.
2. Quanto mais voluntária a decisão de votar, melhor a qualidade do voto: candidatos e partidos devem convencer os eleitores a comparecer às seções eleitorais.
3. O voto facultativo diminui o número de eleitores desinteressados, diminuindo o voto orientado pelo escárnio, repulsa ou por motivações mesquinhas (como a busca de dinheiro ou bens materiais de toda ordem).
4. A maioria dos países desenvolvidos e com democracia consolidada adotam o voto facultativo. Ou, numa versão negativa desta: regimes autoritários que forçaram o voto tiveram alto comparecimento eleitoral e nem por isto se caracterizavam como democráticos.
A ordem dos argumentos não é casual, pois entendo que a qualidade dos argumentos decresce na medida em que se avança na lista. Ou seja, o argumento mais importante é o primeiro e aquele que parece mais infeliz, o quarto e último.
Aqui me aterei apenas aos dois primeiros, por considerá-los suficientes para ensejar o raciocínio a favor do voto obrigatório no Brasil.
leia o post completo no blog do Grupo de Análise de Conjuntura Política do
Núcleo de Pesquisa
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26 de outubro de 2008
A política na "Província Esquecida": partidos e eleições no Paraná
CODATO, Adriano & SANTOS, Fernando José dos (orgs.). Partidos e eleições no Paraná : uma abordagem histórica. Curitiba : TRE, 2006.
Rev. Sociol. Polit. , Curitiba, v. 16, n. 30, jun. pp. 313-318, 2008.
por
O estado do Paraná tem a sexta população do país e é a quinta economia entre os estados (IBGE, 2008). Sua representação política é respeitável, contando com 30 deputados federais, além dos três senadores. Possui uma posição geopolítica crucial, pois faz divisa com países importantes – Argentina e Paraguai – para as relações internacionais brasileiras. Em seu território, está a maior hidrelétrica do mundo, a usina de Itaipu, e, em seu litoral, está o segundo maior porto do Brasil, o de Paranaguá. Apesar disso, suas lideranças não assumem um papel mais relevante no cenário político nacional. O senso comum apregoa que as causas seriam certa singularidade política e o conservadorismo dos paranaenses. Será?
11 de outubro de 2008
Capital político e transferência de votos

Adriano Codato
Folha de Londrina, 10 out. 2008
[Foto: Congresso Nacional. Marcel Gautherot, da coleção do Instituto Moreira Salles]
Análises eleitorais correm sempre o risco de dizer o óbvio. Quem ganhou, quem perdeu, quem fez mais votos, quem fez menos, quantas prefeituras novas foram conquistadas por partido, etc. Para evitar uma paráfrase da realidade, é preciso pensar menos conjunturalmente. Se a disposição de forças políticas que sairá daqui pode (enfatizo: pode) influenciar as eleições nacionais em 2010, 2008 precisa, por sua vez, ser entendido na devida perspectiva. Para ficarmos em um só aspecto que essas disputas revelaram, tomo aqui a questão da capacidade de transferência de prestígio e capital político de um político a outro - a partir do caso de Curitiba.
De fato, Lula não influenciou as decisões dos eleitores como alguns imaginavam (ou apostavam) porque, efetivamente, seu prestígio, popularidade e aceitação junto ao eleitorado é mais pessoal (ou exclusivamente pessoal) do que institucional. Poucos identificam o governo federal como ‘‘o governo do PT’’ - o que, de resto, é bastante correto. Basta pensarmos não na composição das equipes políticas, o que é evidente, já que se trata de um governo de coalizão entre muitas forças, mas nas plataformas históricas do partido, prudentemente aposentadas em nome do realismo e da lógica eleitoral. Esse processo de derretimento do PT e de sua mística, que começou em 2002, só tende a se radicalizar. Nesse contexto em que parece não haver mais, tanto quanto antes, uma assimilação imediata de Lula ao PT, a maioria dos concorrentes tem de contar com a própria sorte; quando muito, com a máquina do partido, onde ela existe.
A capacidade de influência de Lula sobre o voto do cidadão médio foi barrada também pela municipalização das campanhas. Esse é um aspecto interessante, em geral apresentado sob o chavão do ‘‘amadurecimento da democracia brasileira’’. O que ocorre? Não só as eleições vão ficando rotineiras (o que aposenta outra imagem tola: a da ‘‘festa da democracia’’), mas o eleitor vai ficando cada vez mais pragmático (ou ‘‘racional’’, como queiram). Não se trata agora, como nos anos 1980, de escolher entre ideologias (democrática ou autoritária; socialista ou capitalista, etc.); nem de alinhar-se, como nos anos 1990, a identidades partidárias (o PT, o PSDB); ou simplesmente seguir, como de hábito, uma liderança carismática (Maluf, Brizola, etc.). Trata-se de saber o que o prefeito pode e deve fazer na prática, e com o orçamento disponível, pelo meu bairro, pelo meu posto de saúde, pelo transporte que me afeta, etc. Nesse contexto, fica muito reduzida a influência do presidente da República, por maravilhoso que ele seja.
A outra forma de transferência de capital político pode ser indireta. Em parte, ainda que em pequena parte, o sucesso de Beto Richa (77% do eleitorado!) pode ser atribuído à habilidosa reconstrução da figura política do pai. O sobrenome importa aqui menos pelos feitos atribuídos a José Richa e mais pelas idéias que ele resgata (ou inventa). Como político profissional, o filho procurou durante a campanha neutralizar a imagem de técnico em nome da imagem de ético.
Por fim, a questão não é apenas se um político pode transferir votos a outro, mas se ele deve, ou mais exatamente: se ele deseja. Roberto Requião, governador bem avaliado e, como Lula, uma liderança altamente personalista, tem barrado sistematicamente o surgimento de novas lideranças, de sucessores, até mesmo de continuadores. Uma evidência, ainda que paradoxal, da força política do governador junto ao eleitorado e da natureza da sua estratégia, onde o que menos conta é a transferência de capital político, foi a imposição, ao PMDB, de um candidato fraco, desconhecido e recém-chegado: o ex-reitor da UFPR Carlos Moreira. Este fez menos de 2% dos votos em Curitiba. Com esse desempenho, não seria eleito sequer para deputado estadual.
Referência:
CODATO, Adriano. Capital político e transferência de votos. Folha de Londrina, Londrina - PR, p. 4, 10 out. 2008.
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5 de outubro de 2008
Opinião - O eleitor juiz

[The line of light shows how the blind
man walked around obstacles guided
by echoes of his footsteps. Austria, 1953.
Ralph Crane. Life]
Jornal do Brasil
05 de julho de 2008
Luciana Fernandes Veiga
PROFESSORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ E PESQUISADORA DO LABORATÓRIO DE COMUNICAÇÃO POLÍTICA E OPINIÃO PÚBLICA DOXA/IUPERJ
Mais uma vez, assistimos os eleitores se comportarem como juízes, dando um cartão verde ou vermelho ao prefeito que busca a reeleição ou que indica um substituto para a empreitada a partir da avaliação que fazem de sua gestão. O político que conta com uma administração bem avaliada tende a receber os louros no dia 26 de outubro ou mesmo no dia 05. Já o político mal avaliado deverá ser recusado nas urnas. De Sul a Norte, tem-se a tendência.
Em Curitiba, o atual prefeito Beto Richa (PSDB), cuja administração conta com a aprovação de mais de 80% da população, provavelmente sairá eleito das urnas ainda hoje. Caso semelhante tem-se em Maceió, em que Cícero Almeida (PP) ruma para a vitória ainda no primeiro turno com aproximadamente 80% de intenções de voto e uma taxa semelhante de aprovação de sua gestão. Na mesma linha, segue o desempenho de Íris Rezende, em Goiânia. Resguardadas as diferenças nas trajetórias e perfis dos candidatos aqui considerados, um par de argumentos predomina na justificativa para o voto de seus eleitores: satisfação com as melhorias urbanas, que beneficiam as vidas das pessoas, e o anseio de continuidade. E as campanhas reforçam com seus jingles: "O trabalho continua e é assim que tem que ser, Curitiba quer mais quatro anos com você". E ainda: "O que é bom a gente quer de novo", em Maceió.
Em Recife, João Paulo (PT) não pode se candidatar novamente e aproveita o seu prestígio, decorrente de uma administração bem avaliada para ajudar eleger João da Costa (PT). Em Belo Horizonte, Pimentel (PT) e Aécio (PSDB) – ambos bem avaliados – emprestam prestígio para Márcio Lacerda (PSB). Os dois apadrinhados lideram a disputa.
Mas o inverso também se aplica. No Rio de Janeiro, Cesar Maia (DEM), desgastado, não demonstra o desempenho enquanto padrinho de outrora, quando conseguiu eleger Luiz Paulo Conde. Sua candidata Solange Amaral demonstra um resultado ruim nas pesquisas de opinião, estando, de verdade, fora do páreo.
Em duas capitais, prefeitos que não obtiveram grandes resultados em suas gestões na avaliação da população, agora, correm em busca de votos para chegarem ao segundo turno e tentarem a reeleição. Em Salvador, João Henrique (PMDB) enfrenta a liderança de ACM Neto (DEM) e o máximo que obteve até agora foi 20% de intenções de voto, podendo chegar ou não ao segundo turno. Em São Paulo, Gilberto Kassab (DEM) deve conseguir chegar em segundo lugar no primeiro turno, garantindo a sua participação em 26 de outubro contra Marta Suplicy (PT), embora não tenha atingido ainda nem 30% de intenções de voto em pesquisas.
Todos esses casos apontam para o efeito da percepção da qualidade da gestão municipal em uma disputa para prefeitura. Que os próximos prefeitos entendam o recado das urnas: a melhor propaganda é uma boa administração. Pois diante do cálculo "o que o prefeito atual fez por mim nessa gestão?" e, ainda, "o que ele poderá fazer por mim se continuar por mais quatro?" não há milagre de marketing por parte da oposição que resista. E, por sua vez, é preciso entender a necessidade de a oposição atuar no decorrer dos quatro anos e não apenas a partir de agosto do ano eleitoral.
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3 de outubro de 2008
Que Curitiba sairá das urnas no domingo?

Personalities, 1950.
Mark Kauffman]
Sexta-feira, 03/10/2008
Emerson Urizzi Cervi
Para responder objetivamente à pergunta do título, pode-se afirmar que em se concretizando as previsões das pesquisas, o próximo domingo deve produzir um recordista de votos da cidade, pelo menos desde o período da redemocratização. Beto Richa, candidato à reeleição, pode terminar a campanha com cerca de dois terços dos votos válidos, fato inédito por aqui desde 1985, quando as capitais de estado voltaram a ter eleição direta para prefeito. Isso, claro, se o eleitor não decidir mudar o voto na última hora.
Apenas para lembrar, em 1985 Roberto Requião foi eleito prefeito de Curitiba com 45% dos votos válidos; em 1988, Jaime Lerner elegeu-se com 57%; em 1992, Rafael Greca obteve 52%; em 1996, Cassio Taniguchi fez 54% e em 2000 obteve 44% dos votos válidos no primeiro turno. Em 2004, Richa ficou com 35% dos votos válidos em Curitiba no primeiro turno.
Dois elementos chamam a atenção na comparação de eleições anteriores com a atual. O primeiro é que se Beto Richa concretizar o desempenho previsto pelas pesquisas, praticamente dobrará o porcentual de votos obtidos no primeiro turno de 2004. O segundo é que pela primeira vez existem chances reais de um candidato a prefeito de Curitiba ultrapassar a votação obtida por um ícone recente da administração local – Jaime Lerner. Se acontecer, teremos um indicador material – além da retórica dos grupos políticos – apontando para um processo de substituição do perfil tecnocrático lernerista na preferência dos eleitores, porém, sem se identificar com o discurso populista do requianismo.
Estaremos no limiar de um perfil de liderança política em Curitiba que alia o argumento técnico à participação relativa do “povo” no processo de tomada das decisões públicas. Mas o que explica tal mudança de preferência quanto ao perfil da elite política? Creio que a explicação não está na elite. A diferença no número de eleitores no período mostra isso. Em 1988, na eleição de Jaime Lerner com 57% de preferência, votaram em Curitiba cerca de 600 mil eleitores. No próximo domingo, teremos cerca de 1 milhão de votos válidos na cidade: em duas décadas praticamente dobramos o número de participantes das votações, algo que tem conseqüência no perfil, no imaginário e nas demandas do eleitor. Portanto, é legítimo que as características da elite política reproduzam a nova realidade.
Mais importante neste momento é tentar apontar as motivações para o crescimento tão significativo da preferência eleitoral por Beto Richa nos últimos quatro anos. Um erro comum em candidatos que alcançam grandes porcentuais de aceitação é julgar que o resultado deve-se exclusivamente a atos administrativos e/ou decisões políticas. O processo de decisão do voto sempre é comparativo; nunca absoluto. Ou seja, o eleitor decide votar em um candidato após compará-lo com as demais opções, o que significa que votar em alguém depende também da não-escolha dos demais – em especial nas disputas majoritárias. Nesse sentido, o perfil dos opositores a Beto Richa na disputa, às vezes muito próximo dele (neste caso, pensa o eleitor, para que mudar?) e às vezes muito distante das demandas que realmente interferem na decisão do voto, explica em grande parte o desempenho do atual prefeito.
O professor Morris Fiorina tentou sintetizar o processo de decisão de voto ao se considerar a experiência mais recente na avaliação geral (chamado de voto retrospectivo) com a seguinte frase: o eleitor olha para todas as alternativas e pergunta: “O que você andou fazendo por mim nos últimos tempos?” Diante desse questionamento, as posturas da atual administração e das oposições recentes em Curitiba ajudam a explicar.
O grupo político de Beto Richa começou a construir o desempenho eleitoral de agora há cerca de dois anos, quando um dos principais partidos de oposição na cidade, o PMDB, ficou sem bancada na Câmara Municipal. Os quatro vereadores peemedebistas eleitos em 2004, que deveriam fazer oposição à administração local, migraram para partidos da base do governo. A ineficiência de oposição durante o mandato fez com que muitas críticas surgidas na campanha fossem desacreditadas pelo eleitor comum.
Outra medida política com importantes efeitos no desempenho eleitoral de Beto Richa foi a “neutralização” do PPS de Rubens Bueno que, ao abrir mão de lançar candidato próprio em 2008, gerou condições necessárias para uma disputa polarizada – o que quase sempre favorece governos bem avaliados. O partido que também deveria fazer oposição ao governo municipal, PT, preferiu dirigir energias à defesa do governo Lula, tentando vincular líderes locais à forte aceitação do presidente da República. Estratégia legítima, porém válida apenas em disputas municipais federalizadas. Nas eleições dominadas por temas locais – creches, metrô, transporte coletivo –, o impacto eleitoral da proximidade ao presidente da República tende a ser baixo.
Chegamos, assim, ao cenário em que o atual prefeito tem ampla vantagem na preferência dos eleitores pela quase ausência de oposição ao longo de todo o governo e, em conseqüência, por falta de legitimidade da oposição na própria campanha. Há grande chance de experimentarmos um resultado inédito para a cidade, porém, que não pode ser creditado exclusivamente às qualidades dos tucanos locais, sob pena de simplificarmos explicações que devem ultrapassar o período eleitoral. Mais relevante neste momento é tentar identificar até que ponto a mudança de perfil na preferência do eleitor será consistente ao longo do tempo.
Emerson Urizzi Cervi, cientista político, é pesquisador na UFPR.
1 de outubro de 2008
Os candidatos e suas agendas

Em eleições onde não há polarização ideológica efetiva (esquerda x direita, por exemplo), é difícil distinguir propostas e candidatos. Tudo é muito, muito parecido. Via de regra, um postulante assume a agenda de governo do outro, só que numa versão melhorada, segundo eles mesmos.
Para desenredar essa trama, é preciso olhar o panorama não em função das campanhas atuais, mas a partir da história eleitoral recente. Desse ponto de vista, percebem-se mudanças importantes, (des)continuidades, momentos críticos onde foi útil incorporar o assunto e o perfil dos adversários. Relacionar grupos/partidos e discursos/agendas é um bom exercício para pensar como e por que, em Curitiba, estamos diante de políticos cada vez mais semelhantes e que, curiosamente, lutam para ficar cada vez mais idênticos.
Após anos de supremacia de Lerner e sua confraria à frente da prefeitura de Curitiba, o discurso da racionalidade técnica e da competência administrativa foi desafiado, na eleição de 2000, pelo slogan “a cidade quer ser gente”, inventado pela campanha de Ângelo Vanhoni, do PT. Menos a frase e mais o que ela prometia – uma administração “humana”, isto é, voltada para o bem-estar das “pessoas” – foi responsável pela mais severa contestação da aliança política que, com os devidos ajustes, ocupa hoje a prefeitura. Cassio Taniguchi (PFL) disputou o segundo turno correndo sério risco de perder a eleição para um partido relativamente pequeno e para um desafiante até então pouco conhecido.
Com o crescimento do PT na cidade (em 2000, elegeu seis vereadores, a segunda maior bancada na Câmara Municipal) e a entronização de Vanhoni como alternativa eleitoral viável, a assessoria de Beto Richa cunhou, para a eleição de 2004, o slogan “a cidade da gente”, em clara alusão ao lema petista anterior. Deixando de lado sua conotação bairrista, que estigmatizava os demais candidatos e partidos como estrangeiros, no limite intrometidos e, portanto, indesejáveis, o fraseado pretendia incorporar, no plano discursivo, um assunto até então ausente nas campanhas dessa turma: a assistência social. Aparentemente, o cardápio de idéias da gestão lernista estava esgotado e a elite no poder viu-se impelida a adicionar à imagem tradicional – uma administração técnica, racional, voltada para a construção de uma cidade-modelo a partir das diretrizes científicas do planejamento urbano – a preocupação com “o social”. A estampa de Richa como engenheiro civil, ainda presente e sempre muito útil, mesclou-se à do político. Herdeiro da mitologia recém-edificada em nome do pai, ele pôde, como pode agora, apresentar-se não como mais um “técnico”, mas como o “ético”. Não era precisamente o PT que pretendia ter o monopólio nessa área?
Em Curitiba, a tecnocracia (seja o grupo político, seja a idéia política) já foi bem mais forte. Em 2008, ela é muitíssimo menos valorizada eleitoralmente. Nenhum candidato, todavia, pode abrir mão de proclamar o cuidado com o ordenamento e o desenvolvimento urbano da cidade. Trata-se de um valor local enraizado. Por outro lado, a questão social entrou de fato na agenda pública municipal. Essa foi, possivelmente, a principal mudança no plano das idéias e dos discursos.
Não é preciso acompanhar todos os programas eleitorais para perceber que a ênfase dos dois principais candidatos sobre esse ponto produziu um curto-circuito tanto na imagem como na mensagem do PT. Até por isso, a figura maternal de Gleisi Hoffmann, prometendo “cuidar das pessoas”, nada menos é do que a radicalização um tanto piegas daquela disposição assistencial, e teve de ser complementada pela exibição (e exaltação) do seu currículo profissional: técnica em orçamento público, especialista em finanças, secretária de governo etc. O drama é que nos últimos quatro anos seu oponente incorporou, de forma bem mais pragmática, essa inclinação para as questões sociais, sem abrir mão do figurino circunspecto de administrador.
Esse é um exemplo muito simplório de como ideologias, plataformas e programas partidários acabam se mesclando. Em função do apelo eleitoral, candidatos tendem a mudar de posição, ajustar discursos e compartilhar agendas. Em certas eleições, as diferenças estão muito bem dispostas diante do eleitor. Em outras, nem tanto. Procurar as origens dessa miscigenação é importante para desembaralhar o cenário político. Promover todos os assuntos, assumir o estereótipo mais rentável e ostentar quaisquer bandeiras parece ser em todo o lugar a lógica subjacente às estratégias dos candidatos, mesmo que isso possa minar a identidade dos partidos. Movimento perigoso, já que depende da dose. Ela oscila entre o que uma agremiação pretende incorporar e aquilo de que não pode abrir mão. Recuar um pouco no tempo para atentar não só para diferenças, mas para como as distinções foram se borrando e as propostas perdendo substância pode ser um antídoto para esse sintoma da política contemporânea.
Luiz Domingos Costa (ldomingosc@uol.com.br) é editor do Blog de Análise de Conjuntura Política da UFPR (http://gac-nusp-conjuntura.blogspot.com).
Adriano Codato (adriano@ufpr.br) é professor de Ciência Política na UFPR.
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