26 de setembro de 2006

Crise política e senso comum

[croqui do Congresso Nacional, O. Niemeyer]

Adriano Codato
Gazeta do Povo, Curitiba (PR),
7 nov. 2005, p. 8.


É provável que tenha sido Luis Fernando Veríssimo quem observou ser a discussão política entre nós uma disputa de par ou ímpar. Sempre há, segundo essa lógica, duas alternativas. Excludentes entre si. Não é o que se passa quando se lê quase todos os diagnósticos sobre Lula e seu governo? Ou se é a favor (do Presidente, do PT, dos políticos de esquerda etc.), ou se é contra. A partir disso...

Impossível desconhecer o fato óbvio que política é tomada de posição. Mas uma análise objetiva da crise política atual deve necessariamente partir daí? Sendo a imparcialidade um princípio inalcançável (e, nesse caso, indesejável: como pensar a política sem pensar politicamente?), o dever de casa dos intelectuais não é só “falar” ou “não falar”. Há, claro, o risco de ouvir aqueles profetas que Louis Pinto reprovou, num artigo recente em L'Humanité, que fazem pouco do trabalho empírico dos sociólogos, dos economistas, dos historiadores, dos cientistas políticos, e se contentam em proferir generalidades sobre “mutações”, “rupturas”, “desencaixes” etc. O ponto fundamental, julgo eu, é tentar mostrar – a partir da crise presente – o que se passa, hoje, com a Política em geral, principalmente quando há uma descrença difundida da Política.

Para quem acompanha a conjuntura pela imprensa, ou por ouvir dizer, a crise se resume à crise “do governo do PT” e essa se resume quase que à descoberta diária dos trambiques dos funcionários pagos do Partido, e às suas justificativas inacreditáveis. Essa visão factual, embora guarde o mérito de reportar o funcionamento miúdo do sistema político brasileiro, possui, por outro lado, certos problemas.

O primeiro é que não dispõe os eventos (aqueles que dão manchete e causam escândalo) numa cadeia causal. Quando o que se vê é uma sucessão aleatória de acontecimentos, ou melhor, quando os acontecimentos são apresentados sem qualquer ordem reconhecível, perde-se a idéia de processo político e junto some até mesmo, ou por causa disso, o passado recente. Vivemos um presente absoluto e somos levados a crer que o mundo social é o resultado simples dos feitos e malfeitos dos indivíduos. A análise política é então pouco mais que a descoberta das intenções ocultas dos primeiros e o comentário minucioso dos fatos do dia anterior. (Com alguma maldade, Charles Tilly sugeriu que “somente os locutores esportivos e os repórteres televisivos chegam perto de fazer observação e análise simultaneamente”). Nesse registro, a cena política é preenchida por “declarações”, que logo se convertem em “revelações”, e os analistas passam a correr atrás dos lances dos atores (alguns, atores mesmo...) na expectativa de descobrir e depois reportar suas “táticas políticas”.

Ora, quando o que interessa mais é o jogo e os jogadores ao invés daquilo que está em jogo (como enfatizou Pierre Bourdieu na sua análise sobre a televisão), o segundo problema é que desaparece o contexto mais amplo onde a ação política se dá (junto com a série de constrangimentos postos diante de quem deve decidir). Se no primeiro caso a atenção é desviada para os personagens do drama, tomados isoladamente e a cada instante, aqui a crise de governo não se liga a nada que não diga respeito à corrupção do governo. É natural, portanto, que os discursos sobre a “ética” façam às vezes de explicação e quanto mais indignados seus autores, mais inteligentes pareçam. O sumiço da idéia de política como processo se casa agora, no senso comum, com o esquecimento de todas as circunstâncias, e essa complicação adicional implica em aceitar um raciocínio peculiar que ignora a economia internacional (mesmo quando se fala em “globalização”), a sociedade tradicional (mesmo quando se reconhece a famosa “herança colonial”) e as rotinas do sistema político nacional junto com seu cortejo de “disfunções”: populismo, clientelismo, patrimonialismo etc. Cada um desses elementos tem um papel e um peso na explicação da natureza da crise, das suas origens e das saídas possíveis. Por que não discuti-los?

Por último, quando a lógica do campo político captura o campo jornalístico, promovendo feitos em fatos e transformando indivíduos quaisquer em atores racionais; e quando a lógica do campo jornalístico captura o campo político, tornando o conflito político uma disputa pela melhor imagem e convertendo essa imagem despolitizada em fetiche, o resultado é um baralhamento das coisas tal que o universo político aparece sem lógica alguma: um caos, para resumir. Essa confusão só é compreensível, conforme se crê, pela corrupção a serviço da disputa egoísta do poder. Não é exatamente assim que é “explicada”, por exemplo, a interminável troca dos deputados de um partido a outro? O que passa despercebido é que se o “marketing político” (essa lucrativa invenção) dissimula justamente as diferenças reais entre os programas, criando candidatos intercambiáveis, a mudança de legenda que vem em seguida às eleições não passa de um detalhe menos notável desse processo de indiferenciação, já que, afinal, “são todos iguais”. O sucedâneo disso é o desencanto geral com a Política, a desconfiança nos partidos e a descrença (também pudera) nos próprios políticos. Resultado: toda saída está bloqueada e tanto a idéia de representação política, quanto seus mecanismos de delegação estão em xeque. Fim da Política?

Esse talvez seja o fio a puxar dessa meada. É necessário, por isso mesmo, repolitizar o debate sobre a crise atual, recusando a visão atomizada dos eventos e uma compreensão a-histórica dos processos. Essa operação, que é também uma luta ideológica, não significa apenas restituir a autoridade da ciência da sociedade sobre a sociedade. Mais do que “mostrar o outro lado das coisas”, há uma verdadeira disputa simbólica para (re)pensar a política. Assim, a análise sociológica da política não está excluída dessa disputa maior que se dá com e contra o próprio campo político e o campo jornalístico, que produzem e impõem um sentido próprio aos acontecimentos.

Um começo possível para essa discussão poderia ser o seguinte: a crise do governo Lula, no que ela tem de paradigmático, descontando-se ao menos por ora os negócios ilegais dos “dirigentes históricos”, gira em torno de quatro grandes eixos. Um estritamente político, um social, um econômico e um utópico. Esses eixos não têm raízes só locais, mas dizem respeito, antes, às dificuldades da própria Política contemporânea. Dando um passo atrás para enxergar o tamanho do quadro e o desenho em suas devidas proporções, há um conjunto de problemas devidamente intrincados. Listo-os sem qualquer hierarquia: o problema da governabilidade do sistema político (como obter apoio?) e da governança do sistema estatal (como ser eficiente e controlável?); o problema da legitimidade dos atores políticos e da representatividade dos movimentos sociais (em nome de quem eles ainda podem falar?); e o problema da soberania dos Estados capitalistas (até onde vai a autoridade da potência hegemônica?) e do poder dos governos nacionais (qual sua capacidade decisória efetiva?); e, por fim, o problema do modelo de civilização que se deseja (estatal, social, liberal?) e do agente político capaz de formular esse projeto e sustentar esse modelo. Não está aí, afinal, o sentido último da “crise da esquerda”?

Certamente quando se faz isso há mais questões que respostas, sendo esse um programa ambicioso de estudos e debates sobre um mundo muito complexo. Ainda que não seja indiferente ao governo petista, e aos seus inúmeros “contratempos”, para ser educado, seria prudente focalizar, ao mesmo tempo, a crise do governo e a crise da Política contemporânea. Para começo de conversa.

Referência:
CODATO, Adriano Nervo. Crise política e senso comum. Gazeta do Povo, Curitiba - PR, v. 1 cad., p. 8, 7 nov. 2005.
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