artigo recomendado

Bolognesi, B., Ribeiro, E., & Codato, A.. (2023). A New Ideological Classification of Brazilian Political Parties. Dados, 66(2), e20210164. Just as democratic politics changes, so does the perception about the parties out of which it is composed. This paper’s main purpose is to provide a new and updated ideological classification of Brazilian political parties. To do so, we applied a survey to political scientists in 2018, asking them to position each party on a left-right continuum and, additionally, to indicate their major goal: to pursue votes, government offices, or policy issues. Our findings indicate a centrifugal force acting upon the party system, pushing most parties to the right. Furthermore, we show a prevalence of patronage and clientelistic parties, which emphasize votes and offices rather than policy. keywords: political parties; political ideology; survey; party models; elections

31 de dezembro de 2009

novo ano...





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29 de dezembro de 2009

textos fudamentais - revista de sociologia e política


[Escola Kayapó,
Aldeia Djetuktire,
1991, Pará.
Milton Guran.
Pirelli/MASP]

Em 2008, a Revista de Sociologia e Política inagurou a seção "Textos fundamentais".

São dois artigos essenciais para o estudo da Ciência Política.

POLSBY, Nelson W. A institucionalização da câmara dos deputados dos Estados Unidos. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2008, vol.16, n.30, pp. 221-251.

O artigo analisa como se deu a institucionalização da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, desde seu início, no final do século XVIII, até meados do século XX. Esse processo é analisado a partir de três variáveis fundamentais: 1) a delimitação funcional em relação a outras organizações, particularmente políticas; 2) a relativa complexidade da instituição, ou seja, até que ponto suas funções são internamente separadas em alguma base regular e explícita; 3) o universalismo e o automatismo nos procedimentos adotados para conduzir seus diversos assuntos internos. Cada uma dessas variáveis é sucessivamente examinada do ponto de vista histórico ao longo do artigo; a título de conclusão, apresentam-se algumas observações especulativas sobre causas, conseqüências e possíveis lições que se pode tirar da institucionalização da Câmara.

MARCH, James G. e OLSEN, Johan P. Neo-institucionalismo: fatores organizacionais na vida política. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2008, vol.16, n.31, pp. 121-142.

As teorias políticas contemporâneas tendem a retratar a política como um reflexo da sociedade; os fenômenos políticos como as conseqüências agregadas do comportamento individual; a ação como o resultado de escolhas baseadas no interesse pessoal calculado; a história como sendo eficiente no alcance de desfechos singulares e adequados e a tomada de decisões e a alocação de recursos como os focos centrais da vida política. Entretanto, um pensamento teórico recente na Ciência Política combina elementos desses estilos teóricos com uma preocupação mais antiga a respeito das instituições. Esse neo-institucionalismo enfatiza a autonomia relativa das instituições políticas, as possibilidades de ineficiência na história e a importância da ação simbólica para um entendimento da política. Tais idéias possuem uma razoável base empírica, mas não se caracterizam por formas teóricas poderosas. Entretanto, pode-se identificar algumas direções para a pesquisa teórica nas concepções institucionalistas da ordem política: esse é o nosso objetivo neste artigo.
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25 de dezembro de 2009

natal...

23 de dezembro de 2009

Apresentação da candidatura de Claude Lévi-Strauss à cadeira de Antropologia Social


[Cipós na Entrada da
Gruta Azul,
1988.
Iraquara, BA.
Zé De Boni.

Pirelli/MASP]


Maurice Merleau-Ponty
(trecho)

Estudos avançados, São Paulo, v. 23, n. 67, 2009.

Assembleia dos professores do Collège de France, 15 de março de 1959


Sr. diretor, meus caros colegas,

FOI RECENTEMENTE que a Antropologia Social, entre sociologia e etnologia, conquistou sua autonomia. Os trabalhos do Sr. Claude Lévi-Strauss são quase os únicos na França a seguir precisamente essa linha. Ao tentar descrevê-la diante dos senhores, tomarei deles quase tudo, e, para apresentar hoje a candidatura do autor à nova cadeira, praticamente só me resta mostrar de que maneira uma vocação precisa e uma série meditada de trabalhos o levaram ao conjunto de métodos e de ideias cuja importância foi reconhecida ao ser criada a cadeira de Antropologia Social.

O Sr. Lévi-Strauss é formado em Filosofia e até mesmo lecionou durante dois anos após a formatura em liceus do interior. Mas, tão logo teve a oportunidade, partiu para o Brasil e aproveitou essa temporada para visitar, em condições difíceis e mesmo arriscadas, populações do interior. Pertencendo a uma geração muito próxima da dele, posso dizer como essa iniciativa era então original: um universitário de 26 anos precisava ter a mais firme vocação para passar sem transição dos quatro anos de estudos filosóficos a um trabalho de campo que nenhum dos grandes autores da escola francesa, que eu saiba, praticou.

É que já nesse momento, à pergunta "O que é um homem?" ou "Que pode um homem diante da Natureza e dos outros homens?", o Sr. Lévi-Strauss buscava a resposta, não, à maneira dos filósofos, pelo estudo do exemplar humano disponível no lugar onde se está, mas no encontro efetivo com as variantes extremas do ser humano, tão diversas quanto possível da que somos. Absolutamente diferentes e, no entanto, compreensíveis para nós, contanto que entremos na vida delas, as outras sociedades nos ensinam a reconhecer uma lógica de suas instituições, uma verdade de suas crenças, que sublinham as opções originais da nossa cultura. No intervalo entre elas e as outras possíveis, entrevemos o que se poderia chamar seu projeto fundamental e, ao mesmo tempo, que esse não é senão uma das maneiras de ser homem. É o sentimento de uma humanidade mais diferente e mais próxima de nós do que a sociologia podia fazer supor, sentimento de um estranho parentesco humano, que conservamos dos documentos brasileiros publicados pelo Sr. Lévi-Strauss.

Mas ainda existe aí apenas um sentimento. Ora, o antropólogo não é somente um etnólogo. Essa comunicação que obteve com populações arcaicas, ele quer pensá-la, explicá-la. Fixado em Nova York durante os anos da guerra, o Sr. Lévi-Strauss prepara a obra teórica que publicará ao retornar à França, As estruturas elementares do parentesco. Perguntar, como ele faz, se a quantidade de regras e instituições relativas ao casamento e ao parentesco são pensáveis como variantes de algumas leis fundamentais é colocar na ordem do saber o problema que o etnólogo encontra na prática, quando busca entrar numa sociedade à qual não pertence. E as soluções, nos dois planos, são paralelas. No plano teórico, o Sr. Lévi-Strauss - antes de justificar a hipótese pela análise dos fatos australianos, chineses, hindus - propõe considerar os sistemas de parentesco como diferentes modos do fenômeno central da troca, característico da sociedade, já que ele institui, pela proibição do incesto, relações de reciprocidade entre os grupos biológicos que fazem parte dela, as alianças sendo doravante impossíveis no interior de cada um desses grupos. Mas, na floresta brasileira, foi esse mesmo fenômeno de troca que permitiu ao etnólogo entrar numa sociedade desconhecida como se aprende uma língua estrangeira pelo método direto. Bem mais prática em sua sociedade de origem, e nessa, a troca permanece em essência a mesma, ela é o fermento de universalidade que torna o homem compreensível para o homem.

No ano seguinte à publicação desse livro, por ocasião de um longo estudo sobre Marcel Mauss, o primeiro a ter uma intuição do papel da troca, o Sr. Lévi-Strauss dá ao fenômeno todo o seu alcance doutrinal ao identificá-lo com a função simbólica. O que sacraliza a interdição do incesto, criando no primitivo o sentimento do mana, não é senão o mesmo poder humano que sustenta a linguagem: o de considerar um som, um gesto, um ser, não apenas por si mesmo, mas como símbolo de outra coisa, segundo um certo valor de emprego, ficando entendido que o circuito assim aberto será fechado, que essa espécie de abstenção será compensada, que a significação instituída passará a ser definitiva pela conduta simétrica dos outros membros do grupo que respondem e exprimem o que receberam. Essa análise ligava costumes aparentemente irracionais à mesma função que fundamenta entre nós a racionalidade, e cumpria assim a promessa da Antropologia Social, que é abrir um campo comum às culturas, ampliar nossa razão reconduzindo-a às suas fontes e torná-la assim capaz de compreender o que não é ela.

Após esses anos de trabalho teórico, seguindo o ritmo de alternância que é exigido por sua ação, o Sr. Lévi-Strauss retorna em 1950 à experiência etnográfica com uma temporada no Paquistão e na fronteira da Birmânia - depois novamente à teoria com trabalhos relativos à objetividade em antropologia e à noção de modelo. Trata-se sempre de transformar em consciência a experiência direta: a construção de modelos é o método intelectual que nos permite compreender o pressentimento forte e confuso que tivemos do valor emocional dos símbolos no relato mítico ou no desenrolar do ritual.

Os trabalhos presentes do Sr. Lévi-Strauss e os que ele prepara a seguir procedem evidentemente da mesma inspiração, mas ao mesmo tempo a pesquisa renova-se a si mesma, dá um novo salto sobre suas próprias aquisições. No trabalho de campo na Melanésia, ele espera recolher uma documentação que permitiria, na teoria, uma passagem às estruturas complexas do parentesco - ou seja, àquelas relacionadas, em particular, ao nosso sistema matrimonial. Ora, ele percebe desde agora que isso não será uma simples extensão dos trabalhos precedentes e que lhes dará, ao contrário, um outro alcance. Os sistemas modernos de parentesco - que dão ao condicionamento demográfico, econômico ou psicológico a determinação do cônjuge - deveriam ser definidos, nas perspectivas iniciais, como variantes "mais complexas" da troca. Mas a plena compreensão da troca complexa não deixa intacto o sentido do fenômeno central da troca e possibilita o seu aprofundamento decisivo. O Sr. Lévi-Strauss não pretende assimilar dedutiva e dogmaticamente os sistemas complexos aos sistemas simples. Ao contrário, pensa que não podemos prescindir em relação a eles da abordagem histórica, através da Idade Média, através das instituições indo-europeias e semíticas, e que a análise histórica irá impor a distinção de uma cultura que proíbe absolutamente o incesto - e é a negação simples, direta ou imediata da natureza - e de uma outra cultura - a que está na origem dos sistemas contemporâneos de parentesco - que usa de astúcia com a natureza e às vezes contorna a proibição do incesto. É precisamente esse segundo tipo de cultura que se mostrou capaz de um "corpo a corpo com a natureza", de criar a ciência, a dominação técnica do homem e o que foi chamado de história cumulativa. Portanto, do ponto de vista dos sistemas modernos de parentesco e das sociedades históricas, a troca como negação direta ou imediata da natureza se mostraria como o caso-limite de uma relação mais geral de alteridade. Somente aí será definitivamente decidido o sentido último das primeiras pesquisas do Sr. Lévi-Strauss, a natureza profunda da troca e da função simbólica. No nível das estruturas elementares, as leis da troca, que envolvem completamente a conduta, são suscetíveis de um estudo estático, e o homem, mesmo nem sempre as formulando numa teoria indígena, obedece a elas quase como o átomo observa a lei de distribuição que o define. Na outra extremidade do campo da antropologia, em alguns sistemas complexos, as estruturas explodem e, no que se refere à determinação do cônjuge, se abrem a motivações "históricas". Aqui a troca, a função simbólica e a sociedade não funcionam mais como uma segunda natureza, tão imperiosa como a outra e que a apaga. Cada um é convidado a definir seu próprio sistema de troca; por isso mesmo, as fronteiras das culturas se esfumam e pela primeira vez uma civilização mundial está na ordem do dia. A relação dessa humanidade complexa com a natureza não é nem simples, nem nítida: a psicologia animal e a etologia revelam, na animalidade, não certamente a origem da humanidade, mas esboços, prefigurações parciais e como que caricaturas antecipadas. O homem e a sociedade não estão exatamente fora da natureza e do biológico: antes distinguem-se dela por reunirem as "apostas" da natureza e por arriscá-las todas juntas. Essa mudança significa ganhos imensos, possibilidades inteiramente novas, e também perdas que devemos saber avaliar, riscos que começamos a constatar. A troca e a função simbólica perdem sua rigidez, mas também sua beleza hierática; a mitologia e o ritual são substituídos pela razão e pelo método, mas também por um uso muito profano da vida, aliás acompanhado de pequenos mitos compensatórios sem profundidade. É levando em conta tudo isso que a antropologia social se encaminha para um balanço do espírito humano e para uma ideia do que ele é e pode ser...

Assim a pesquisa se alimenta de fatos que lhe parecem de início estranhos; ao progredir, ela adquire novas dimensões, reinterpreta seus primeiros resultados pelas novas pesquisas que eles mesmos suscitaram. A extensão do domínio abrangido e a compreensão precisa dos fatos crescem simultaneamente. Eis aí um sinal dos trabalhos de primeira ordem. Ao propor que o Sr. Claude Lévi-Strauss seja apresentado como primeiro nome à escolha do ministro, tenho consciência de recomendar à atenção dos senhores uma bela, uma grande tentativa intelectual.


Publicado em Hors Série - La Lettre du Collège de France, Claude Lévi-Strauss - Centième anniversaire, Novembre 2008. Tradução de Paulo Neves. O original em francês - "Présentation de la candidature de Claude Lévi-Strauss à la chaire d'Anthropologie sociale (extrait)" - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

Maurice Merleau-Ponty foi um filósofo fenomenólogo francês. Lecionou na Universidade de Lyon e na Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne). Em 1952 assumiu a Cátedra de Filosofia no Collège de France.
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22 de dezembro de 2009

A volta da mobilidade social

[Série Mar de Homens, 2001.
Redonda, CE.
Roberto Linsker.
Pirelli/MASP]

MARCIO POCHMANN

Folha de S. Paulo
18 dez. 2009.

A mobilidade social representou um dos principais charmes do desenvolvimento capitalista no Brasil. Desde a década de 1930, observa-se que a maior expansão econômica acabou sendo acompanhada por importante movimento de ascensão social. Mas isso não significou, porém, um processo homogêneo para toda a população. Ainda que desigual, a mobilidade social inter e intrageracional permitiu que, em geral, a maior parte da população registrasse melhoras relativas no padrão de vida.

Uma boa imagem da ascensão social desigual do passado pode ser a da subida de pessoas em um determinado edifício, com uma parcela pequena tendo acesso pelo elevador e a maior parte subindo gradualmente pela escada. Assim, os filhos dos ricos ficavam mais ricos que seus pais, bem como os filhos dos pobres se tornavam menos pobres que seus pais.

Tudo isso, contudo, sofreu forte impacto a partir da crise da dívida externa (1981-1983), quando o país abandonou o projeto de industrialização nacional. O resultado foi o ingresso numa nova fase de baixo dinamismo econômico que terminou impondo, por consequência, o descenso na antiga trajetória de mobilidade social.

A década de 1990 estabeleceu, de forma intensa, a maior dificuldade da progressão social, tornando complexa a reprodução dos filhos em melhores condições do que seus pais. Nesse sentido, a expressão de um país com a estrutura social congelada ganhou maior dimensão.
Essa trajetória de relativa imobilidade apresentou significativa inflexão a partir de 2005, quando a ascensão social voltou a fazer parte da vida de milhões de brasileiros. Com isso, a estrutura social brasileira recuperou novamente o movimento de passagem de segmentos sociais de baixa renda para estratos de rendimentos intermediários e superiores.

Entre 2005 e 2008, por exemplo, o segmento de baixa renda, que representava quase 33,7% da população nacional, passou para apenas 26% dos brasileiros. No estrato de rendimento intermediário, registra-se a passagem de 34,9% para 37,4% da população, enquanto o segmento de renda superior saltou de 31,5% para 36,6% no mesmo período de tempo.

Destaca-se também que o desempenho recente da mobilidade social ainda se manifesta de forma desigual. Mais de dois terços dos que ascenderam socialmente são majoritariamente não brancos, residentes na região Nordeste e em pequenas cidades, com emprego assalariado, não necessariamente formal, e de baixa escolaridade. Também tem importância o acesso aos mecanismos de garantia de renda, que têm permitido melhorar a condição de vida das faixas etárias precoces e mais avançadas.

Para quase um terço da população com maior avanço social, contudo, as características pessoais se apresentaram diferenciadamente. De maneira geral, os segmentos populacionais mais beneficiados são brancos, moradores da região Sudeste, sobretudo em regiões metropolitanas, com emprego assalariado formal, maior escolaridade e pertencentes à faixa etária de 25 a 44 anos de idade.

Ademais da distinta caracterização pessoal dos segmentos populacionais incluídos pelo movimento de ascensão social, observa-se a importância de quesitos habitacionais presentes entre os indivíduos mais dinâmicos.

Nota-se, por exemplo, que entre os diferentes segmentos populacionais com acesso ao saneamento e à habitação própria estão os mais dinâmicos.

Outro aspecto que acompanha o movimento recente de ascensão social tem sido a ampliação do consumo de massa. No caso de bens de consumo duráveis com maior valor unitário, como no caso da geladeira, fogão, televisão e telefone, observa-se o sentido da homogeneização do padrão de consumo, salvo ainda pela diferenciação na posse de automóvel, máquina de lavar e telefone celular. Este último, por sinal, registrou mais forte difusão entre a população.

A volta da ascensão social no Brasil aponta para uma sociedade de consumo de massa, ainda que constrangida pela desigualdade na mobilidade. De todo modo, o Brasil deixa para trás os sinais de uma estrutura social piramidal para assumir cada vez mais a figura de uma pera. A formação de novas elites, como aquelas de raça não brancas, indica a força do protagonismo de sociedade plural em movimento.

MARCIO POCHMANN, 47, economista, é presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e professor licenciado da Unicamp.
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21 de dezembro de 2009

Como funciona o parlamento brasileiro?

[croquis do Congresso
Nacional.
Oscar
Niemeyer. 1957]



Adriano Codato

A discussão política no Brasil, em especial quando trata dos legislativos, tem se fixado num único (e importante) problema: a corrupção.

Se nós não quisermos permanecer prisioneiros desse assunto, e das soluções que não solucionam nada, já que ao apostar em saídas milagrosas (políticos virtuosos), mágicas (o “amadurecimento da democracia”) ou simplesmente mistificadoras (a reforma política salvadora) só contornam o problema, um primeiro passo é saber como as coisas funcionam. Será que já sabemos o suficiente?

Uma forma de entender o comportamento político dos parlamentares é através do modelo distributivista. Conforme essa visão, a ação dos políticos de carreira seria sempre clientelista, guiada pela lógica “meramente” eleitoral.

Se o objetivo essencial de um político é reeleger-se, então suas preferências, atitudes e comportamentos só serão inteligíveis a partir desse único objetivo. Para atingi-lo, o parlamentar deve apoiar decisões do governo e lutar para trazer recursos que favoreçam sua base eleitoral, que pode ser uma cidade, uma região ou uma clientela específica. O foco principal da disputa política é o Orçamento. O trabalho legislativo consiste, assim, em pendurar o máximo possível de emendas “clientelistas” na peça orçamentária. Como essa prática nunca é tranquila, pois todos querem a mesma coisa para seus respectivos redutos, as relações entre os congressistas só podem se dar em função de barganhas recíprocas, de trocas.

Esse tipo de explicação supõe que a unidade de análise sejam os interesses egoístas dos parlamentares, que os eleitores sejam bastante pragmáticos na hora de decidir em quem votar (e não “ideológicos”), e que, por tudo isso, os partidos fiquem sempre em segundo plano nos cálculos políticos de ambos os agentes.

As implicações desse modo de ver as coisas estão claras. O legislativo seria a fonte de políticas de tipo distributivo, a “conexão eleitoral” (fórmula do cientista político norte-americano David Mayhew que designa relação entre os representantes e o eleitorado) seria o fator determinante na elaboração de políticas de governo, e, considerando a separação do trabalho entre Parlamento e Presidência, a tomada de decisões políticas estaria convenientemente dividida e equilibrada.
A conexão eleitoral só funcionará, todavia, se o parlamentar mantiver-se sempre em evidência, falando em nome das bases e cultivando uma relação estreita com elas; se ele conseguir projeção institucional, ocupando cargos importantes no Legislativo, se tomar posições claras em assuntos polêmicos, mas sempre de acordo com as opiniões do “seu” eleitorado; e se, e isso é o fundamental, conseguir levar o crédito pela liberação de recursos para obras na “sua” comunidade.

Assim resumido, esse modelo parece explicar melhor o Congresso norte-americano que o Parlamento brasileiro. Num regime onde o voto é distrital, é natural que deputados procurem levar benefícios (“obras”) para suas respectivas circunscrições.

No entanto, alguns analistas têm apresentado quatro argumentos a favor da validade desse tipo de explicação para compreender o comportamento dos congressistas do Brasil.

O sistema eleitoral (proporcional de lista aberta), porque incentiva a personalização do voto, favorece um comportamento muito individualista dos parlamentares. Além disso, examinando-se o padrão de votos nos candidatos, o que se vê é a criação de pequenos distritos informais. O candidato vitorioso tende a ter uma votação concentrada em determinados municípios (e não dispersa pelo estado todo) e, nos municípios em que ele é o mais votado, ele vence seus concorrentes com grande maioria. Ele domina o colégio eleitoral. Uma vez no Parlamento, o deputado pode seguir cultivando sua clientela, pois as emendas individuais ao Orçamento permitem o sucesso quase indefinido dessa estratégia. Para completar, as relações Executivo-Legislativo legitimam e ampliam essa prática, já que os deputados podem trocar apoio ao governo pela execução das suas propostas.

Por outro lado, quando se analisam empiricamente os dados disponíveis, as coisas não são tão certas assim. É o que estipula o “modelo partidário”.

Primeiro: as taxas de reeleição não são particularmente altas. Pouco mais de 50% voltam à Câmara a cada legislatura. Examinando-se a geografia eleitoral, o que se constata é que metade dos deputados que tentam uma cadeira no parlamento federal não tem uma votação distritalizada (concentrada e dominante). Para completar, é difícil determinar, num pleito, quantos votos são pessoais, quantos votos são partidários, em função do sistema de coeficiente eleitoral.

Segundo: a Carta de 1988 deu muito poder ao Executivo em matéria orçamentária. Estima-se que o peso das emendas individuais ao Orçamento que são efetivamente executadas seja muito baixo, em torno de 20% do total. Também não se encontrou ainda dados suficientes que corroborem a correlação entre a taxa de apoio ao Executivo e a execução de emendas, embora se possa supor que ela não deve ser desprezível.

Terceiro: o comportamento dos parlamentares parece, segundo vários estudos, determinado mais pela organização interna da Câmara dos Deputados (isto é, seu sistema de regras) do que por qualquer outra coisa. O expediente de votações simbólicas comandadas pelos líderes dos partidos (e não por deputado), o poder dos caciques para indicar quem pode fazer parte das comissões (condição essencial para aparecer politicamente), tudo impede que o parlamentar avulso tenha algum poder de fato. Além disso, não se acumula muito poder graças à ocupação de cargos nas comissões, e sim cultivando redes de influência junto à burocracia dos ministérios.

Por último, e ligado a isso, dado que o Executivo é o centro de gravidade do sistema político, o objetivo dos parlamentares brasileiros dificilmente é reeleger-se, mas eleger-se para algum cargo executivo, uma vez que o gasto efetivo capaz de agradar eleitores é decidido nesse âmbito.

Conclusão: como a Ciência Política não dispõe ainda de um modelo seguro que permita dizer como o parlamento nacional funciona, nem prever as estratégias e as ações dos legisladores, é muito difícil propor (e por em prática) instrumentos de fiscalização e controle sobre os políticos. Mas nem por isso devemos desistir de estudá-los e de comandá-los.

A política frequentemente é menos simples do que parece, ou do que nós gostaríamos que ela fosse.
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14 de dezembro de 2009

Para salvar a teoria econômica

[Delfim Netto,
por
Toni D'Agostinho]

Delfim Netto

Valor Econômico,
01.12.09

Creio que pelo menos alguns economistas que dominam brilhantemente as "modelagens" matemáticas (se forem um pouco menos cínicos do que o prêmio Nobel Robert Lucas) devem repetir para si mesmos a pergunta que a rainha Elizabeth II fez aos professores da famosa London School of Economics em novembro de 2008: "Como foi possível que, depois de mais de um século de estudos, os senhores foram incapazes de prever a crise que colocou em risco a economia mundial?" O fracasso da macroeconomia em matéria de "previsão" é fato passado em julgado. E (com razão ou não) muitos acadêmicos garantem que "prever" não é obrigação dos economistas e não é a finalidade da teoria econômica "científica", o que não parece fora de propósito. O fato curioso é que eles mesmos, quando assumem o papel de "analistas" no mercado financeiro (a serviço de bancos, fundos e "tutti quanti"), não fazem outra coisa a não ser "prever", para induzir "cientificamente" os compradores de seus papéis. Aquela atitude defensiva, entretanto, não poupa a teoria econômica. De um "cientifismo equivocado" que lhe deu imensa visibilidade e prestígio, há pouco mais de uma década, ela hoje é vista com desconfiança, quando não desmoralizada.

O sentimento de frustração é geral. Todas as tribos que constituem a confederação dos economistas sentem esse rebaixamento da opinião pública com relação às suas aspirações de sugerir políticas capazes de manter a economia num estado de equilíbrio dinâmico interno e externo. Em resposta à sua incômoda pergunta, a rainha recebeu duas cartas. Uma assinada por um grupo de economistas "neoclássicos", encabeçada pelo professor Tim Besley, da British Academy. Outra de economistas relativamente fora do "mainstream", encabeçada pela professora Sheila Dow, da University of Stirling.

A primeira é um relato das conclusões de um fórum realizado em 17/6/2009 na British Academy (especialmente para responder à perplexidade da rainha). Dele participaram homens de negócios, especialistas do mercado financeiro (da City), reguladores, professores de economia e membros do governo. Ela desfila uma longa lista de dificuldades e justificativas. Em resumo diz a carta:

1) muitos economistas previram a possibilidade da crise, mas não o momento de sua eclosão. O BIS, entretanto, chamou sistematicamente a atenção dos governos e do mercado para tal risco

2) apesar da imensidão de analistas (apenas um banco inglês que hoje é do governo tinha um time de 4.000!), os riscos eram considerados isoladamente usando "as melhores mentes matemáticas nacionais e estrangeiras", mas ignorando uma visão global

3) apesar dos avisos, a maioria estava convencida de que "os bancos sabiam o que estavam fazendo". Estavam crentes que o "mercado" mudara. Banqueiros e economistas estavam encantados por ele. Os modelos pareciam prever os pequenos riscos no curto prazo, mas poucos economistas estavam equipados para dizer o que aconteceria se as coisas dessem erradas como deram

4) havia um consenso que seria melhor lidar com as "bolhas" depois que houvessem ocorrido do que explodi-las preventivamente. Como a inflação permanecia baixa, a taxa de juros foi mantida muito baixa por muito tempo, estimulando a ação dos agentes.

Prometendo um novo Fórum da Academia no futuro, a primeira carta termina dizendo: "Tudo isso, combinado com uma psicologia de rebanho e o mantra dos gurus financeiros e governamentais, conduziu a uma receita perigosa. Pequenos riscos individuais podem ter sido estimados corretamente, mas os riscos (não percebidos) do sistema global eram imensos."

A segunda carta ratifica essas críticas, mas sugere que "a preferência pelas técnicas matemáticas com relação à substância do mundo real desviou os economistas da análise do todo". Termina dizendo que o que fez falta foi "uma sabedoria profissional informada por seguros conhecimentos de psicologia, das estruturas institucionais e dos precedentes históricos".

A mesma discussão se processa no mundo inteiro. Não se trata, entretanto, de abolir a matemática. Pelo contrário, ela é indispensável, mas deve ser combinada com a história, a geografia, a psicologia etc., com inteligência, moderação e respeito à realidade. Esta não é a primeira vez que o desencanto com as promessas da ciência econômica acontece. Já em março de 1892, W. Cunnigham, num artigo publicado no "Economic Journal", dizia que "se existe uma coisa que mais do que qualquer outra tem imposto sofrimento à economia política (o velho, sério e modesto nome da atual teoria econômica) é o fato que o público formou uma opinião exagerada do que ela pode realmente fazer e, portanto, desapontou-se porque ela não foi capaz de satisfazer tais expectativas".

A despeito disso é mais do que evidente que o conhecimento econômico é fundamental para uma administração pública que deseje estimular o crescimento com alguma Justiça social e equilibrios interno e externo, e que ignorá-lo tem custos sociais imensos. O exemplo mais claro é a obediência às identidades da Contabilidade Nacional que governos mais sanguíneos tentam frequente e inutilmente violar e pagam caro por isso.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras no jornal Valor Econômico.
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13 de dezembro de 2009

Sobre o regionalismo do modernismo paulista


[Mário de Andrade, c. 1938.
Benedito Junqueira Duarte.

Pirelli / MASP]





Mário de Andrade, conferência lida no Salão de Conferências da Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, no dia 30 de abril de 1942:

“Quanto a dizer que éramos, os de São Paulo, uns antinacionalistas, uns antitradicionalistas europeizados, creio ser falta de subtileza crítica. É esquecer todo o movimento regionalista aberto justamente em São Paulo e imediatamente antes, pela ‘Revista do Brasil’; é esquecer todo movimento editorial de Monteiro Lobato; é esquecer toda a arquitetura e até o urbanismo (Dubugras) neocolonial, nascidos em São Paulo. Desta ética estávamos impregnados. Menotti Del Picchia nos dera o ‘Juca Mulato’, estudávamos a arte tradicional brasileira e sobre ela escrevíamos; e canta a cidade materna o primeiro livro do movimento [Paulicéia Desvairada, 1922]. Mas o espírito modernista e as suas modas foram diretamente importados da Europa.”

O movimento modernista. In: ANDRADE, Mário. Aspectos da literatura brasileira. São Paulo: Martins Fontes.
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12 de dezembro de 2009

política brasileira - manual introdutório

[Espírito Santo, 1972.
Bina Fonyat.

Pirelli / MASP]


No início de 2010 publicaremos por uma editora de livros de vídeo-aulas um manual introdutório em dez capítulos sobre a política brasileira.
O livro, editado pelo IESDE, foi escrito por um conjunto de pesquisadores do NUSP. O texto abaixo é a introdução que redigi para o livro.

Cientistas políticos são quase unânimes em afirmar que o Brasil é uma “poliarquia institucionalizada”. Isso significa que o regime político democrático – um nome menos preciso e mais normativo que poliarquia – tornou-se a forma de governo incontestada entre nós.

Conforme a definição clássica de Robert Dahl, um país será tanto mais democrático, ou poliárquico, quanto melhores forem as condições que garantam o direito à oposição (que Dahl chama de “contestação pública”) e o direito à participação em eleições e cargos de direção política.

Alguns dados brutos são suficientes para ilustrar as mudanças do país nas últimas décadas nessa direção.

Desde a promulgação da Constituição de 1988 e da eleição para Presidente da República, em 1989, houve um processo contínuo e crescente de institucionalização democrática. O total de eleitores inscritos para votar em 2006 era muito próximo de 126 milhões de pessoas. O poder legislativo abriu-se à expressão de minorias e garantiu seu poder de veto. O sistema partidário tornou-se complexo e passou a contar, em 2007, com 21 partidos representados no Parlamento. A efetiva separação entre o poder Executivo e o poder Legislativo se não garantiu integralmente o preceito da autonomia mútua e da fiscalização recíproca, ao menos dividiu as funções governativas, ainda que de maneira desequilibrada, entre os dois ramos principais do sistema estatal. As eleições tornaram-se razoavelmente competitivas, embora persista (e cada vez se amplie mais) o desequilíbrio entre candidaturas mais e menos opulentas. A legislação garantiu consultas políticas através de plebiscitos e referendos e o direito de propor leis de iniciativa popular. Foram criados inúmeros conselhos setoriais de políticas de governo com participação da “sociedade civil”. O direito de greve foi garantido.

Comparando com o período imediatamente anterior, da ditadura militar, ou com o regime da Constituição de 1946, é certo que hoje há muito mais garantias aos direitos de associação e expressão, muito mais condições para a formação de partidos e organizações políticas, maior igualdade perante a lei, maior controle sobre os governos, maior tolerância diante do conflito.

Essas liberdades liberais clássicas foram responsáveis por uma mudança importante na composição e no perfil das lideranças eleitas, aumentando assim o grau de inclusão de outros grupos sociais nas arenas políticas e, com isso, a variedade de interesses representados. As políticas governamentais de caráter social – cada vez mais importantes na agenda pública – ilustram isso. Houve mesmo uma relativa popularização da classe política e uma importante profissionalização da elite estatal em alguns domínios específicos. Os próprios partidos tiveram de adaptar-se às novas condições de competição por eleitores, ajustando seu programa e sua retórica a valores mais pluralistas. As ideologias autoritárias perderam a audiência e a popularidade que já tiveram no passado. Democracia parece gerar, ainda num grau insuficiente, é certo, crenças e atitudes mais democráticas e mais tolerantes.

Essas condições para a poliarquia não foram criadas do nada. O processo histórico que conduziu o país até o grau presente de desenvolvimento institucional supôs certas sequencias históricas. Ao longo do século XX vários foram os fatores socioeconômicos e ideológicos que influenciaram o mundo político.

O livro que o leitor tem em mãos procura expor e explicar o difícil caminho para a institucionalização da poliarquia à brasileira. Compreender a persistência do clientelismo, da patronagem, da corrupção, do grau desmesuradamente alto de irresponsabilidade governamental, de autonomia dos representantes políticos, dos desequilíbrios do poder econômico e do poder social implica em compreender a via peculiar do país para a democracia realmente existente entre nós. Assim, oferecemos aqui duas coisas num mesmo volume: um resumo das precondições históricas do regime atual e uma caracterização sumária e didática das suas características principais.

Adriano Codato
Curitiba, primavera de 2009.
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3 de dezembro de 2009

o conceito de elite (I)

[Nina Leen. 1943.
Life]

Adriano Codato

As posições de comando no espaço social – ao menos as posições políticas – estão repartidas entre as classes economicamente dominantes e as classes politicamente dirigentes.

A elite política, ou a “classe política” (tomadas aqui como sinônimos, portanto), são, conforme a distinção tradicional proposta por Gaetano Mosca em Sulla teorica dei governi e sul governo parlamentare, apenas uma parte daquele conjunto designado comumente pelo nome “classe dirigente”.

Apesar do emprego ambíguo dos dois termos por Mosca, como James Burnham notou (1) , a expressão ‘classe dirigente’ englobaria também, além da elite política, todos aqueles agentes que estão fora do Estado e fora do governo, mas que poderiam influenciar as decisões políticas, sem exercer diretamente, como a primeira, o poder.

Esse grupo incluiria várias “minorias” (politicamente desiguais entre si, note-se), como as econômicas, as religiosas, as intelectuais, as sociais. A classe política, ou a elite política, seria, por sua vez, uma subespécie da classe dirigente: é a parte da classe dirigente que estaria incumbida da tarefa de governar (2) .

Tal como eu penso que deva ser utilizada, a noção de elite (política) não substitui o conceito de classe (dominante), já que não são termos intercambiáveis (3) ; nem o emprego da expressão “classe política” deve significar, necessariamente, uma adesão do analista a todos os pressupostos teóricos da “teoria das elites” (ou do autor aos princípios normativos dos elitistas).

Notas:

1. Ver James Burnham. Los maquiavelistas: defensores de la libertad. 2ª. ed. Buenos Aires: Emecé, 1953, p. 99.

2. Ver James H. Meisel, The Mith of the Ruling Class: Gaetano Mosca and the “Elite”. Michigan: Ann Arbor Paperbacks; The University of Michigan Press, 1962, p. 37 e p. 160-161. Ver também Ettore A. Albertoni. Doutrina da classe política e teoria das elites. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 68.

3. Ver Tom B. Bottomore, As elites e a sociedade. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974, p. 14 e segs. Para a mesma ideia, conferir Anthony Giddens, A estrutura de classes das sociedades avançadas. Rio de Janeiro: Zahar, 1975, p. 145 e segs.
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o conceito de elite (II)

[Nina Leen. 1943.
Life]

Adriano Codato

Esses dois termos – ‘classe’ e ‘elite’ – apenas assinalam, com nomes diferentes, coisas diferentes. Eles também não precisam ser opostos ou incompatíveis (4) .

Uma forma produtiva de evitar o ecletismo teórico e acatar a coabitação das duas ideias num mesmo discurso científico (ou mais propriamente, das duas dimensões da realidade social que os dois vocábulos delimitam e descrevem: estratificação social, no primeiro caso, e hierarquia política, no segundo), é ter presente, na análise dos processos de recrutamento para posições de elite e na análise dos processos de tomada de decisões por parte dessa elite, aquilo que Anthony Giddens designou por “mediação institucional do poder”, isto é, a forma geral do Estado (o “jurídico-político”, na terminologia dos marxistas) e o estado geral da economia (o “econômico”, idem) e suas influências sobre o exercício do poder (5) .

Essa exigência implica em considerar na análise tanto do alistamento quanto do comportamento da classe política, uma série de assuntos incontornáveis já devidamente enfatizados, entre outros autores, por Offe e Wiesenthal.

As condições sociais de acesso a postos de elite, o controle desigual de recursos de poder e o grau variável de influência de um grupo político específico estão condicionados (ainda que não exclusivamente) por sua posição na estrutura social (6) .

Em termos “geográficos”: esses grupos podem estar em posições mais altas ou mais baixas na estrutura social; mais próximos ou mais distantes dos centros de poder político, dentro ou fora dos sistemas de propriedade econômica etc. Isso determina de antemão a estrutura de oportunidades políticas (7) e qualifica desde logo quem pode e quem não pode ascender a posições de elite.

Por outro lado, nem todos aqueles que fazem parte da “classe dominante” integram a “classe política”. Essas diferenciações podem ser ora pressupostos da análise, ora objeto de uma demonstração lógica ou empírica.

Notas:

4. Para uma análise da relação entre o conceito de elite e o conceito de classe dominante, tanto no marxismo “elitista” (T. Bottomore, R. Miliband), quanto no elitismo renovado (Wright Mills, G. W. Domhoff) ver Danilo Enrico Martuscelli, Para uma crítica ao marxismo elitista. Paper apresentado no 31º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu (MG), 2007, p. 14-19.

5. Ver Anthony Giddens, Preface. In: Stanworth, Philip e Giddens, Anthony (eds.), Elites and Power in British Society, op. cit., p. xi-xii.

6. Ver Claus Offe e Helmut Wiesenthal, Duas lógicas da ação coletiva: anotações teóricas sobre classe social e forma organizacional. In: Offe, Claus. Problemas estruturais do Estado capitalista. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 56-118.

7. Para a expressão, ver Sidney Tarrow, Power in Movement: Collective Action, Social Movements, and Politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.
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o conceito de elite (III)

[Nina Leen. 1943.
Life]

Adriano Codato

O uso recorrente no discurso científico da palavra “elite” – e da expressão “elite política”, ou mais raramente, “classe política” – pode ter um sentido apenas descritivo.

Com elas, o cientista social refere-se a uma unidade empírica sujeita a observação e medição (8) .

Através desse termo, cujo sentido traz (e trai) consigo três ideias: a de minoria, a de hierarquia e a de distinção (no sentido sociológico, não social), eu penso que se deva designar o grupo especializado de políticos profissionais (se se quiser, os políticos de carreira) que controlam recursos políticos (posições institucionais no Estado, por exemplo), comandam organizações políticas (partidos, por exemplo) e exercem as funções de governo (no Executivo e no Legislativo).

Eles têm na atividade política seu meio de vida e o poder político como seu objetivo exclusivo, como Max Weber já definiu (9) .

Ainda que esteja de acordo com o mais singelo senso comum, não custa lembrar que “alguém que participe ativamente da política luta pelo poder e pode fazê-lo de duas maneiras: como um meio para atingir outros fins (que podem ser altruístas ou egoístas), ou como um meio de alcançar o ‘poder pelo poder’, isto é, para desfrutar da sensação de prestígio que decorre da sua posse” (10) .

O poder pode ser um meio, como na relação de representação, ou um fim, como na situação, mais frequente do que se imagina, de auto-representação.

Em ambos os casos, os profissionais da política são uma unidade de análise (um grupo funcional) ligados às classes, camadas ou categorias sociais (por suas “origens”), mas separados delas por suas funções e papéis no sistema de dominação.

Michel Offerlé possivelmente exagera um pouco, mas não contradiz o aspecto que quero ressaltar aqui, ao afirmar que as posições políticas “não são mais analisáveis a partir das propriedades [sociais] de seus ocupantes, mas pelas propriedades posicionais e situacionais que permitem defini-las” (11) .

Notas:

8. Ver Ricardo Cinta, Estructura de clases, élite del poder y pluralismo político. Revista Mexicana de Sociologia, vol. 39, n. 2, abr.-jun. 1977, p. 443.

9. Anthony King propõe uma definição mais melodramática: “políticos de carreira par excellence” são “homens e mulheres que comem, dormem e até sonham com política”. Ver The Rise of the Career Politician in Britain and its Consequences. British Journal of Political Science, vol. 11, n. 3, jul. 1981, p. 269.

10. Max Weber, The Profession and Vocation of Politics. In: Lassman, Peter & Speirs, Ronald (eds.), Weber: Political Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 1994, p. 311.

11. Michel Offerlé (dir.), La profession politique, XIXe-XXe siècles. Paris: Belin, 1999, p. 10.
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2 de dezembro de 2009

Dossiê "Internet e Política" - novo número da Revista de Sociologia e Política


[Model of a crystal
used to studying
micro-electonics.
1960. Fritz Goro.
Life]

Dossiê "Internet e Política"
Sumário
Rev. Sociol. Polit. vol.17 no.34 Curitiba out. 2009



· Apresentação: uma amostra das novas possibilidades de pesquisa sobre as relações entre as NTICS e a política
Braga, Sérgio; Chaia, Vera




· Parliamentary functions portrayed on European parliaments' websites
Leston-Bandeira, Cristina




· "Politics 2.0": a campanha online de Barack Obama em 2008
Gomes, Wilson; Fernandes, Breno; Reis, Lucas; Silva, Tarcizio




· Cyberpolitics in political party websites: experiences in the 2008 Spanish presidential elections within the context of transnational tendencies
Dader, José Luis




· Redes de políticas públicas e de governança e sua análise a partir da websphere analysis
Procopiuck, Mario; Frey, Klaus




· Lutas por reconhecimento dos surdos na Internet: efeitos políticos do testemunho
Garcêz, Regiane L. O.; Maia, Rousiley C. M.




· Novas dimensões da política: protocolos e códigos na esfera pública interconectada
Silveira, Sergio Amadeu da




· A internet e as eleições municipais em 2008: o uso dos sítios eletrônicos de comunidades na eleição paulistana
Coutinho, Marcelo; Safatle, Vladimir




· The Spanish general elections of 2008: "antagonistic bi-polarization" fomented by political and media interests and new technologies
Sampedro, Víctor; Pérez, Francisco Seoane




· Internauta brasileiro: perfil diferenciado, opiniões indiferenciadas
Schlegel, Rogerio




· Metodologia de pesquisa de blogs de política: análise das eleições presidenciais de 2006 e do movimento "cansei"
Santos, Marcelo Burgos Pimentel dos; Penteado, Cláudio Luis de Camargo; Araújo, Rafael de Paula Aguiar




· Os partidos políticos brasileiros e a internet: uma avaliação dos websites dos partidos políticos do Brasil
Braga, Sérgio Soares; França, Andressa Silvério Terra; Nicolás, María Alejandra




· Crônica política sobre um documento contra a "ditabranda"
Toledo, Caio Navarro de

25 de novembro de 2009

a ciência política e o Nobel de economia

[Pavilhão Mercedes-Benz do Brasil
Exposição Industrial, 1960.
Hans Günther Flieg.

Pirelli/MASP]


Fábio Wanderley Reis
Valor Econômico,
19 out. 2009

O prêmio Nobel de economia tem sido outorgado a especialistas de perfil diverso quanto às perspectivas adotadas sobre o instrumental analítico da disciplina e suas consequências para as relações com disciplinas afins. Um perfil se ilustra com Gary Becker (1992), talvez o melhor exemplo de economista a tratar simplesmente de estender os postulados e instrumentos da análise neoclássica tradicional a novas áreas temáticas e a buscar a teoria econômica do crime, da família ou do comportamento humano em geral. Ele contrasta fortemente, por exemplo, com George Akerlof (2001), empenhado em trazer à análise tradicional intuições sociológicas (e psicológicas, antropológicas: fazer uma "psycho-socio-anthropo-economics", como formula ele próprio em texto de 1984), ou com Daniel Kahneman (2002), um dos principais responsáveis pela introdução do que se tornou conhecido como a "economia comportamental", atenta às dificuldades envolvidas na adesão ao postulado de racionalidade dos agentes.

Este ano, a balança pendeu claramente para o lado inclinado a revisões e reorientações. Além de Oliver Williamson, economista que, contra os neoclássicos, salienta os "custos de transação", contrapõe hierarquias a mercados e se dedica a problemas de "governança", temos Elinor Ostrom, que, além de mulher (a primeira a ganhar o prêmio), não é sequer economista, e sim cientista política. Seu trabalho se insere numa linha que, incluindo profissionais de várias áreas e pretendendo mesmo eventualmente unificar as "ciências do comportamento", tem permitido, internamente à ciência política, a oposição criativa à intensa penetração do campo pelos supostos e instrumentos da economia neoclássica ocorrida no último meio século, com a difusão da chamada abordagem da "escolha racional". Um artigo recente ("Policies That Crowd out Reciprocity and Collective Action", 2005) dá acesso, em forma sintética, a aspectos salientes da empreitada.

O ponto crucial pode ser posto em termos de questionar o que se tornou conhecido, desde um trabalho de Mancur Olson que se inscreve entre os pioneiros na afirmação do "imperialismo" da economia ("A Lógica da Ação Coletiva"), como o "dilema da ação coletiva": indivíduos descritos às vezes como "egoístas racionais", aptos ao cálculo orientado pelo interesse próprio, especialmente interesses materiais, tenderão a não agir de maneira condizente com o interesse coletivo, e a realização deste exigiria que eles fossem expostos a "incentivos seletivos" (ou remunerados ou coagidos, em particular pelo Estado) para se obter a conduta apropriada. Em contraste, a perspectiva de Ostrom e outros sustenta que a melhor suposição para explicar o comportamento humano não seria a referida à mera disposição à maximização de ganhos ou utilidades, mas sim a de que existem múltiplos tipos de indivíduos ou agentes. Teríamos especialmente, ao lado dos egoístas racionais, gente guiada pela "lógica da reciprocidade", que manifestaria o que os autores chamam de "reciprocidade forte", ou seja, a disposição, por um lado, de cooperar, mesmo a algum custo pessoal, com outros que mostrem disposição análoga, mas também, por outro lado, a disposição de punir os que violam a norma de cooperação, igualmente mesmo se a punição envolver custos pessoais. Essa lógica é encontrada em operação em variados estudos de campo e investigações experimentais, particularmente em ambientes distintos dos de mercados altamente competitivos. Ela é afim às comunidades caracterizadas por relações face a face, em que os indivíduos podem cada qual observar o comportamento dos outros e em que se têm condições propícias ao surgimento de regras e instituições autônomas, criadas pelos próprios agentes envolvidos. E destaca-se que a intervenção do Estado, que a lógica do dilema da ação coletiva torna fatal, surge aqui como incerta em seus efeitos: ela pode ocasionalmente estimular o ânimo de colaboração, se percebida como complementar e convergente com os mecanismos comunitários, mas pode também opor-se a ele e eventualmente extingui-lo, concorrendo, por exemplo, para colocar em dúvida a disposição cooperativa dos demais.

A perspectiva geral, especialmente em sua articulação com disciplinas como a biologia evolucionária e em suas ambições multidisciplinares ou transdisciplinares, é com certeza promissora. Mas mesmo esta brevíssima apresentação de algumas de suas sugestões já permite visualizar também as dificuldades. Em particular, o problema de escala e certos desdobramentos dele. O dilema da ação coletiva de Olson é formulado com referência explícita a grupos de grandes dimensões, denominados grupos "latentes", onde a impossibilidade da informação e do controle sobre o comportamento dos demais coloca um insolúvel problema de coordenação em que, no limite, se torna também impossível para cada um agir de maneira que viesse a ser coletivamente racional. Se os problemas se dão em escala que ultrapasse a da comunidade de relações face a face, como resolver a dificuldade de chegar a apreender cognitivamente se os outros estão fazendo a sua parte para aplicar a solidariedade condicional da lógica da reciprocidade? Se a disposição confiante que a colaboração exigiria depende de expectativas, com seu componente informacional ou cognitivo, como condicionar expectativas para começar a implantar a confiança em circunstâncias em que a própria lógica da reciprocidade não justificaria presumi-la?

Talvez infelizmente, não há como evitar que o desafio seja justamente o de assegurar que o mercado definido por relações entre estranhos seja também uma comunidade, como quis Max Weber. E se o Estado é o instrumento indispensável disso, tampouco há como escapar, fechando o círculo complicado, do condicionamento do próprio Estado por um substrato de relações mercantis e de enfrentamento de interesses.

Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais.

cit. a partir de http://www.bresserpereira.org.br/view.asp?cod=3594
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13 de novembro de 2009

regionalismo: a ideologia da paulistanidade


["O Semeador"
Sao Paulo, 1947.
Dmitri Kessel. Life]




Adriano Codato

Em São Paulo, o regionalismo assumiu a forma da ideologia da paulistanidade – uma mitologia destinada a convencer e a convencer-se da superioridade material e moral do estado.

Uma definição sucinta dessa fantasia arrebatadora seria provavelmente a seguinte: a paulistanidade é “a ideologia afirmadora da superioridade étnica, econômica e política dos naturais do estado de São Paulo” (1) .

Essa faculdade deveria ser o motivo e o fundamento da autoridade política da classe dirigente nativa sobre as outras “unidades da federação”, que era como eles chamavam, com eufemismo, o Brasil. O próprio “modernismo” literário (Menotti del Picchia, Mario de Andrade, Oswald de Andrade, a Revista do Brasil etc.) e seu louvor à industrialização e à urbanização, à “modernidade”, enfim, são, antes de qualquer coisa, uma exaltação de São Paulo, de sua majestade e de sua produtividade (o progresso, a riqueza, a racionalidade, o trabalho etc.), e não simplesmente do mundo “moderno” (ou seja, o desenvolvimento capitalista nacional), como é bom lembrar.

Monica Velloso ressalta que, “ao defender o espírito pragmático, o poeta-educador e o soldado, o culto da operosidade e do progresso, o grupo” dos verde-amarelos, uma facção do modernismo paulista que militava ideologicamente no Correio Paulistano, “na realidade está apontando São Paulo como o modelo da Nação. Pelo alto grau de desenvolvimento industrial e pela vanguarda de intelectuais que produziu, o estado deve necessariamente exercer o papel de líder” (2) .

A comemoração da supremacia paulista é um tópico interessante, inda mais quando se conhece o seu futuro político sob o varguismo.

Produzida pelos intelectuais da oligarquia (historiadores, principalmente, mas também ensaístas, romancistas e polímatas, profissionais e amadores), a “paulistanidade” pretendia rigorosamente inventar uma identidade social e cultural regional, onde o valor básico fosse, antes de tudo, o pertencimento ao estado (e não a grupos, a classes, a partidos, a clãs etc.). Essa imagem, construída a partir de uma versão romantizada e amena da sua história regional desde a Colônia até a II República, exigia um complemento doutrinário para que fosse fixada na consciência coletiva como memória social e depois transmitida a todos os paulistas como autêntica “tradição”. Daí a fabricação de uma explicação oficial do passado oficial capaz de conectar, por mais estranho que possa ser, os fatos das Entradas dos séculos XVI e XVII aos atos da “Revolução” de 1932. As figuras dos tempos coloniais e, em primeiríssimo lugar, o bandeirante mítico era aí apresentado não só como o ancestral dos paulistas, antepassado, patriarca e herói civilizador, mas como um tipo ideal (e idealizado) a ser perseguido e imitado (3) .

Os manuais escolares ensinados em São Paulo entre as décadas de 1930 e 1960, e inspirados diretamente nessa historiografia glorificante – que contava com valores e obras tais como: Memórias de um revolucionário (de Aureliano Leite), A nossa guerra (de Alfredo Ellis Jr.), História geral das bandeiras paulistas (de Afonso Taunay) –, pretendiam fixar as características daquilo que era “ser paulista”.

Baseada nos grandes feitos dos grandes homens, essa versão didática do mundo juntava uma visão elitista da política, reservando os direitos de cidadania somente para os mais educados, uma visão hierárquica da sociedade, e uma visão racista da nacionalidade, racismo esse ligado não às pretendidas teorias científicas sobre a cor, mas ao desprezo pelos brasileiros que não tinham o privilégio de haver nascido em São Paulo, terra do progresso, do trabalho etc. A ginástica mais difícil desses relatos estava na obrigação de juntar o passado heroico das expedições pelo sertão nos séculos XVI e XVII com a “ideia do paulista como defensor nato da Lei e da Ordem”, a fim de glorificar 1932 como uma epopéia do Direito e da Liberdade (4) .

Por isso, as explicações ad hoc desse discurso, a variação de ênfases e a seleção arbitrária de evidências a fim de ajustar o passado ao presente e vice-versa.

Notas:
1. Jessita Maria Nogueira Moutinho, “Civil e paulista”: um interventor para São Paulo; a política estadual de 1930-1934. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade de São Paulo. São Paulo (SP), 1988, p. 110.

2. Monica Pimenta Velloso, A brasilidade verde amarela: nacionalismo e regionalismo paulista. Revista de Estudos Históricos, vol. 6, n. 11, 1993, p. 98.

3. Ver Danilo José Zioni Ferretti, A construção da paulistanidade: identidade, historiografia e política em São Paulo (1856-1930) Tese (Doutorado em História). Universidade de São Paulo. São Paulo (SP), 2004.

4. Luis Fernando Cerri, Non Ducor, Duco: a ideologia da paulistanidade e a escola. Revista Brasileira de História, v. 18, n. 36, 1998, p. 116-117. [A divisa “Non ducor, duco” significa: “Não sou conduzido, conduzo”].
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negros e política (1888-1937), Flávio Gomes (Jorge Zahar)


trata-se de um bom estudo, ainda que curto, sobre a Frente Negra Brasileira (1931) e a Legião Negra (1932). São organizações políticas ao estilo da década de trinta.

sinopse da editora:

Narrativas historiográficas cristalizaram a imagem do negro como personagem social pouco mobilizado e excluído dos processos de participação política. Esse livro, ao contrário, apresenta várias organizações negras que propuseram políticas públicas e inserção institucional, dialogaram com setores da elite e com visões de cidadania e nação nas primeiras décadas do século XX.
cv lattes do autor

Uma boa continuação dessa história é o artigo:
SILVA, Joselina da. A União dos Homens de Cor: aspectos do movimento negro dos anos 40 e 50.
Estud. afro-asiát., Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, 2003.
cique aqui

8 de novembro de 2009

cidadania plena para o americano negro? um problema sociológico


[Juqueri, 1989-1990.
Franco da Rocha, SP.
Claudio Edinger.
Pirelli/MASP]
Talcott Parsons

Este artigo foi publicado originalmente, sob o título "Full citizenship for the negro american", na revista Daedalus. Journal of American Academy of Arts and Sciences, vol. 94, n .° 4. out. 1965.

Tradução: Luiz Pereira*

A designação "cidadão de segunda classe" tem sido usada muitas vezes, e com justiça, para descrever o status do negro na sociedade americana. Como demonstrou com especial clareza o sociólogo britânico T.H. Marshall, a cidadania é um assunto complicado, que de forma alguma se esgota com os significados mais literais do termo "direitos civis". Gostaria de começar esta discussão com uma análise do significado do conceito de cidadania, apoiando-me bastante na obra de Marshall, mas tentando ir além dela em certos aspectos. Tentarei, pois, analisar algumas das condições que se fizeram necessárias para explicar o progresso até agora feito pelo negro no sentido de alcançar a cidadania plena - e ao mesmo tempo pela sociedade, no sentido de incluir o negro naquele status - e ainda outras condições que precisam ser preenchidas para que o processo chegue ao final. Ao realizar essa análise, dedicarei especial atenção à comparação entre o status do negro e o de outros grupos que, de várias maneiras semelhantes, têm sofrido discriminação na sociedade americana. Espero que tal análise revele uma combinação de semelhanças e diferenças que venha trazer luz aos aspectos relevantes do caso do negro. Como os outros grupos têm progredido muito mais que o negro até agora, no sentido de conseguir uma inclusão total, a experiência desses grupos talvez nos forneça algumas diretrizes para consideração do caso do negro. Também discutiremos a relação entre a mudança interna de status do americano negro e o problema da cor nas questões mundiais.

O conceito de cidadania, da forma que é aqui usado, refere-se à participação plena naquilo que chamarei de "comunidade societária". Esse termo se refere àquele aspecto da sociedade total como um sistema, que forma uma Gemeinschaft, sendo esta o foco de solidariedade ou de lealdade mútua entre seus membros e que constitui a base do consenso que sustenta a sua integração política. Essa participação como membro é primordial para compreender o que significa ser definido como "americano" no caso de nossa própria nação e por isso justifica a ordem das palavras do título do presente número de Daedalus, indicando que se trata do americano negro e não do negro americano. O escravo negro podia ser chamado, como realmente era, de negro americano: era um residente dos Estados Unidos e propriedade de cidadãos americanos, mas não fazia parte da comunidade societária no presente sentido.

Em termos filosóficos gerais talvez John Rawls tenha definido com mais clareza que qualquer outro a maneira como a cidadania plena implica uma igualdade fundamental de direitos - não uma igualdade em todos os sentidos, mas no sentido com que nos referimos aos direitos de participação com status de membro da comunidade societária.

Do ponto de vista da unidade, a comunidade societária é uma categoria que supõe o compromisso dos membros para com a coletividade em que estão associados e de uns para com os outros. É o foco das lealdades que não precisam, e de fato não podem, ser absolutas, mas que requerem alta prioridade entre as lealdades a que se obrigam os membros. Para ocupar essa posição, a estrutura associativa deve estar de acordo com os valores comuns à sociedade: os membros mantêm compromisso com ela porque ela não apenas fortalece os seus valores como também organiza os seus interesses em relação a outros interesses. Neste último contexto, a base de definição das regras do jogo de interesses é que torna possível a integração, impedindo que os inevitáveis elementos de conflito conduzam a círculos viciosos que corroam radicalmente a comunidade. É também a base de referência dos padrões de destinação de recursos móveis disponíveis nas comunidades complexas.

Em todas as sociedades "avançadas" a comunidade societária está ligada à organização política, mas diferencia-se dela. Embora todas as sociedades avançadas sejam "politicamente organizadas", esse aspecto de sua organização a que ordinariamente nos referimos como governo, em nível societário, não é idêntico ao aspecto de comunidade no presente sentido. Precisamente quando esses dois aspectos entram em algum tipo de conflito é que podem surgir situações revolucionárias.

[leia o artigo integral aqui]

* Luiz Pereira (1933-1985) foi professor no Departamento de Sociologia
da USP de 1963 a 1982.
*

5 de novembro de 2009

ação afirmativa: é necessária uma nova Abolição?


[African American student
Ernest Green.

Little Rock, AR, US
.
May 1958.
Grey Villet, Life]


por Muniz Sodré
Observatório da imprensa
27 out. 2009

Há uma questão atravessada na garganta de grupos empenhados na defesa das políticas afirmativas da cidadania negra. Trata-se de saber por que os jornalões (nome talvez mais palatável do que “grande mídia impressa”) brasileiros não dão voz alguma a quem se manifesta favorável a medidas como a instituição das cotas ou ao Estatuto da Igualdade Racial. Como bem se sabe, esses jornais vêm dando largo espaço a jornalistas e intelectuais decididos a demonstrar que as ações afirmativas constituem uma nova forma de racismo, já que raça não existe e, ademais, como a população brasileira é predominantemente miscigenada, todos os nossos concidadãos teriam a sua cota de negritude. Logo, não faria qualquer sentido ficar procurando saber quem é negro ou branco para proteger o primeiro.

Foi essa a questão debatida nos dias 14 e 15 de outubro, durante o seminário “Comunicação e Ação Afirmativa: o papel da mídia no debate sobre igualdade racial”, realizado na Associação Brasileira de Imprensa por entidades como Comdedine, Cojira e Seppir. É bem sabido que há vozes discordantes das opiniões oficiais dos jornalões, por parte de jornalistas de peso, alguns dos quais pertencentes aos quadros desses mesmos jornais. É o caso de Elio Gaspari, Miriam Leitão e Ancelmo Gois. Estes dois últimos, aliás, foram palestrantes no seminário.

Na mesa sobre “a responsabilidade social da mídia e o debate sobre raça” – que dividi com a jornalista Márcia Neder, da revista Claudia –, comecei afirmando que há certas visibilidades que nos cegam. O sol, por exemplo, se tornado excessivamente visível (olhado de frente), nos impede de enxergar. Mas há também objetos sociais que, se tornados visíveis demais, podem bloquear a visão de quem antes acreditava ver. Parece-me ser este o dilema da cor, do fenótipo escuro, na atualidade brasileira, onde vislumbro um caso de cegueira cognitiva.

De fato, a questão vem sendo tratada como ser pró ou contra o racialismo. A maioria dos favoráveis a propostas como o Estatuto da Igualdade Racial, cotas para universitários etc., lastreia os seus argumentos com as razões do anti-racismo; os desfavoráveis, embora reconhecendo a existência episódica e anacrônica de incidentes racistas, tentam fazer crer que vivemos no melhor dos mundos em termos de conciliação das diferenças étnicas e que seria, portanto, um retrocesso civilizatório racializar a população. Curioso é que esses mesmos argumentos desfavoráveis, sem que seus autores se dêem conta, são racialistas em última análise, ao apelarem para as noções de miscigenação biológica.

Por outro lado, de modo geral, todos se habituaram a pensar na escravidão ora como uma mácula humanitária, ora como um anacronismo, uma instituição retrógrada na história do progresso. Vale, entretanto, apresentar uma opinião de outro matiz, a de Alberto Torres, autor de O Problema Nacional Brasileiro. Foi um dos grandes explicadores do Brasil entre o final do século 19 e início do 20.

Conservador em termos sociais (refratário à urbanização e à industrialização), propugnador de uma República autoritária, Torres revela-se, entretanto, interessante em termos metodológicos e teóricos. Diz em seu livro que “a escravidão foi uma das poucas coisas com visos de organização que este país jamais possuiu. (…) Social e economicamente, a escravidão deu-nos, por longos anos, todo o esforço e toda a ordem que então possuíamos e fundou toda a produção material que ainda temos”.

Torres era, insisto, autoritário e conservador. Gerou epígonos como Oliveira Vianna, esse mesmo que chegou a justificar em sua obra o extermínio do “íncola inútil”, isto é, do habitante das regiões empobrecidas do país. Era, entretanto, um conservador diferente: discordava das teses sobre a inferioridade racial do brasileiro, não era racista. Sua frase sobre a escravidão é algo a ser ponderado, principalmente quando cotejada com o dito de Joaquim Nabuco: “A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. (…) Ela envolveu-me como uma carícia muda toda a minha infância” (Minha Formação).

É célebre essa passagem sobre a memória afetiva da escravidão – a saudade do escravo. Ela é a superfície psicológica do fato histórico-econômico de que as bases da organização nacional foram dadas pelo escravismo. Por isso, vale perguntar que apreensão os brasileiros fazem desse fato, pouco mais de um século depois da Abolição.

Alguns pontos devem ser considerados:

1. A palavra “apreensão” não diz respeito a concepções intelectuais, e sim, à incorporação emocional ou afetiva do fenômeno em questão. No interior de uma forma social determinada, nós apreendemos por consciência e por hábito o seu ethos, isto é, a sua atmosfera sensível que nos diz, desde a nossa mais tenra infância, o que aceitar e o que rejeitar.

2. A reinterpretação afetiva da “saudade do escravo”, que envolve (a) as relações com empregadas domésticas e babás (sucedâneas das amas-de-leite); (b) o afrodescendente como objeto de ciência (para sociólogos e antropólogos); (c) imagens pasteurizadas da cidadania negra na mídia.

Diferentemente da discriminação do Outro ou do racismo puro e simples, a saudade do escravo é algo que se inscreve na forma social predominante como um padrão subconsciente, sem justificativas racionais ou doutrinárias, mas como o sentimento – decorrente de uma forma social ainda não isenta do escravagismo – de que os lugares do socius já foram ancestralmente distribuídos. Cada macaco em seu galho: eu aqui, o outro ali. A cor clara é, desde o nascimento, uma vantagem patrimonial que não deve ser deslocada. Por que mexer com o que se eterniza como natureza?

Nada, portanto, da velha grosseria racista, da velha sentença de “pão, pano e pau” proferida pelo padre Antonil a propósito dos negros. Não há mais lugar histórico para o “pau” desde a Abolição, ou melhor, desde a Lei Caó. O argumento explicitamente racista não leva ninguém a lugar algum no império das tecnologias do self incrementadas pelo mercado e pela mídia.

Mas é imperativo para o senso comum da direita social que as posições adrede fixadas não se subvertam. O escravismo é mais uma lógica do lugar do que do sentido. É dele que, de fato, têm saudade os que acham um escândalo racial proteger as vítimas históricas da dominação racial. E os jornalões, intelectuais coletivos das classes dirigentes, não fazem mais do que assim se confirmarem ao lhes darem voz exclusiva em seus editoriais e em suas páginas privilegiadas, ao se perpetuarem como cães de guarda da retaguarda escravista. É oportuno prestar atenção à letra da canção de Cartola (“Autonomia”) em que ele afirma a necessidade de “uma nova Abolição”.
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